6.11.18


REVOLTA NA BOUNTY



Tem muito de inverosímil o que vou contar. Mas aconteceu.


Mais uma fragata

O navio estava em Alcântara, onde a Lisnave se afadigava nos acabamentos. Navio novo, com cheiro a novo, um brinco, excitava a curiosidade. Assinalados a vermelho, os apetrechos de combate a incêndios, em desusada quantidade, chamavam a atenção. Dia a dia, ia chegando mais pessoal. Encaminhado para as cobertas próprias, escolhia beliche, desferrava a maca, arrumava pertences. Depois chegava-se aos da sua classe, colhia informações àcerca do Serviço:
- Que tal é o chefe?

Em Setembro, ao fim de um ano na Escola de Artilharia Naval a leccionar sôbre a direcção de tiro e armamento associado que equipavam a nova fragata, fui para ali destacado. Novidade interessante, envergar fato-macaco (de càqui, oferecido pelo estaleiro) e acompanhar os operários, observá-los na execução das últimas tarefas, nalguns casos enriquecedora. Muito vaidosos, fizeram questão de nos mostrar soldaduras verticais, em que se haviam especializado na Suécia.

E a menos de um mês do Inverno, a obra foi dada como pronta.

Na Margueira, num estrado coberto de panos bonitos e bem armados, sentou-se imensa gente com parciais responsabilidades na construção. Em destaque, na primeira fila, apenas os dez oficiais da primeira guarnição, em uniforme 3-A, (talim e espada). Acredito que possa ter sentido alguma cagança, ao ver-me actor naquele palco, protagonista do bem urdido cerimonial.

Começou com uma arenga do director do estaleiro que concedeu à fragata uns cinco minutos e gastou os restantes vinte a tentar convencer a Marinha das vantagens de dar à Lisnave a construção das três corvetas em projecto. Porque não saíriam divisas – a concorrência era alemã – como também pela excelência do trabalho, resultante do grande investimento feito na valorização dos operários utilizados nas duas fragatas construídas, não esquecendo o incentivo à construção naval, em risco se não fizesse as corvetas. Seguiu-se o Ministro da Marinha – havia Ministro da Marinha – que sacou do bôlso um maço de papéis e começou a ler. Discurso redondo, adeqüado à circunstância política, mas que a expressão fisionómica do senhor não sublinhava. De repente, com gesto brusco amarrotou os papéis com a mão que os segurava, enfiou-os na algibeira de onde haviam saído, bufou forte e sonoro para o microfone o ar que parecia oprimi-lo, encarou com firmeza a assistência, e cravando os olhos no orador que o precedera, de improviso, encetou novo discurso:
- E agora…
Após estas palavras, usando bastante dureza, verberou tudo quanto o outro dissera a respeito das corvetas, enfatizou que não aceitava que lhe quisessem impôr um rumo… que a Marinha  avaliaria as propostas e decidiria como melhor lhe parecesse. Foi muito aplaudido.
A verdade é que se dizia não ter a construção respeitado nenhum orçamento. À medida que se fazia debitava-se, havendo mesmo notícia de se terem pago obras alheias.
- Põe nas fragatas.   
Os navios tinham-nos ficado caríssimos e ao que parece o orçamento feito para as corvetas era o mais dispendioso.
Acabaram por ser feitas na Alemanha.


Vontade de Bem Fazer

Esta divisa – Talant de bien faire – que o Infante Dom Henrique tomou para si, a Marinha herdou e ilustra o brasão da Escola Naval, deverá ser (pretende-se que seja) o norte de quem serve na Armada.
Tal como as pessoas são diferentes, assim a distinção se estende aos marinheiros. A escolha da guarnição de um navio, reflecte, naturalmente, essa individualidade que nos caracteriza. A isso se acrescentam vários parâmetros envolvidos no processo, começando desde logo pela disponibilidade dentro do pôsto, da classe e da especialização. Os cento e tantos nomes escolhidos hoje não são os mesmos que teriam sido uma semana atrás. A circunstância envolvida, originará uma boa guarnição ou outra  menos boa. No que me cabe, com alguma imodéstia, tivemos a sorte de formar um conjunto que não desmerecia a divisa.
Havia muito boas praças na marinhagem e ninguém se destacava por maus motivos; a Câmara de Sargentos era de bom nível, elevando-se dois ou três acima dos demais; e quanto a nós, mais uma vez imodesto… para ver a média, olharíamos para baixo.

Fomo-nos ajustando à nau, aos serviços, uns aos outros. Estabeleceram-se simpatias, preferências e amizades. Familiarizámo-nos com os equipamentos à custa dos manuais, muitas rotinas de manutenção e a ajuda dos artífices. Conhecer bem o pessoal sob nossa dependência funcional, foi rápido. Estender êsse conhecimento a toda a guarnição demorou o tempo de algumas divisões de serviço de dia.

Passámos ao treino de mar. As coisas não começaram bem. No regresso a Lisboa, à entrada da barra, sob nevoeiro cerrado, para fugir ao Cachôpo Sul, o Comandante empurrou o navio para além do eixo da barra e colidimos de raspão com um paquete da Colonial que saía, dando um eco pouco nítido no radar, a distância imprecisa. Do choque, a nossa proa recuou um metro e amolgou o costado do outro, deixando-lhe o desenho de uma boa dúzia de balizas. Dos autos de averigüações sôbre a colisão não resultou sanção disciplinar. Reencetámos o treinamento e mês e meio depois rumámos a Norfolk, à Base Naval, para alinhamento da bateria. Na primeira reünião com a direcção do estaleiro, esta, tirando partido do nosso deficiente domínio do idioma, estava, sem contraditório, a impôr-nos um programa desfavorável. Presente por sorte nossa, o camarada em funções de Adido Naval, tomou as rédeas da conversa e foi êle que ditou as regras, melhorando consideràvelmente a nossa posição. Desagradara-me, quando o havia conhecido, Governador da Guiné, por o achar vaidoso, mas passei a admirá-lo depois de observar aquela sua actuação, tão ousada como inteligente.

Através de conhecimentos havidos durante o curso de pós-especialização feito dois anos antes nos Estados-Unidos, soube de um estágio de uma semana para treino de artilheiros com as mesmas direcção de tiro e peças do navio, que culminava com fogo real contra uma pequena aeronave telecomandada, um ‘Zangão’. Considerei de grande utilidade para o Serviço facultar o treino ao pessoal e interessei nisso o Comando, obtendo concordância. Uma bordada de cada vez, lá estive duas semanas com os artilheiros em Dam Neck. Resultado excelente, com efeito não só nos desempenhos como no entusiasmo dos homens. Não se contava, ninguém previu que aquele estágio não fôsse oferta graciosa de um país aliado e coligado na OTAN. Mas não foi. Nem sequer barato. À chegada a Lisboa a conta já tinha chegado e o Comandante levou uma rabecada e tanto. Não há borlas na América.

Ao fim do mês previsto no estaleiro, o Comando preparava o regresso a Lisboa; e na minha presença o Imediato alinhavou as primeiras diligências. Não me tinham ouvido. Não tive remédio senão dar nas vistas ao dizer que não aceitava o alinhamento da bateria. Tinha que ser refeito. E foi. Mais uma quinzena, mas ficou perfeito.   

Chegámos a Lisboa no dia um de Agosto; e na companhia da fragata-irmã, primeiro navio da classe, partimos para o Brasil no último dia do mês. A manobras com a Armada Brasileira. Sem grande dificuldade, desempenhámo-nos muito bem. Escalámos três portos e formámos opinião sôbre o imenso país e sua gente.

Por esta altura, numa fase de tomada de consciência política no pequeno mundo naval da nossa Câmara, fomos assistir a uma reünião clandestina (semi-clandestina) de militares, num Ateneu Comercial de Lisboa quase cheio. Sem participação activa, ouvimos vozes brandirem argumentos contra o Estado-Novo, contra as três frentes de guerra, contra a exigüidade dos vencimentos. Saímos carregados de esperança. À distância de seis anos.

Em Janeiro seguinte, durante quinze dias, navegámos num pequeno rectângulo de mar, duzentas milhas a Sul da ilha de São Miguel, com o propósito de colher elementos de propagação do som naquelas águas. Passámos todo o tempo a rebocar o batitermógrafo num mar alteroso. Houve mesmo um dia em que virou tempestuoso. A tal ponto que, às tantas da madrugada fui chamado à ponte pelo Comandante (confiante nas minhas qualidades marinheiras) para ouvir conselho sôbre se devia ou não guinar o navio para o manter dentro do rectângulo pré-determinado de dez milhas por cinco. Estimei em oito metros a altura das vagas – dez foi quanto o meteorologista do Instituto Nacional, embarcado, reportou para Lisboa – , vagas tão desencontradas que tornavam impossível prever o momento asado de fazer leme, sem perigo de atravessamento ao mar. Nada mais se via que uma manta rugosa, branca de espuma, à nossa volta. Claro que desaconselhei a guinada, tendo-se optado por reduzir a velocidade e navegar a um rumo mais safo, tanto quanto possível com vento e mar numa alheta, correndo com o tempo; e aguardar melhoria para voltar à área de trabalho.

Mais um mês em Lisboa, após o que, entre Plymouth, Porto Santo, Funchal e Cádiz, retomámos, com outras marinhas, os nossos treinos de detecção e combate a submarinos.

Até que, a meio do Verão, encetámos afinal, uma viagem diferente. Não esquecendo necessidades operacionais, mais pareceu um cruzeiro de férias. Em companhia da mana número três, fomos à Califórnia, em missão de representação de Portugal no Segundo Centenário da Fundação de San Diego, achada pelo português João Rodrigues Cabrilho ao serviço de Espanha. Próxima a cidade quer da Disneylândia quer do Sea World, visitámos os dois parques, ao tempo únicos. Gostei imenso da imaginação de Disney, numa exibição notável de tecnologia recente, ao serviço de miúdos e graúdos. A celebração do Centenário teve participação de muitos portugueses. Mostrando vestes idas de Lisboa, pisaram a ‘passerelle’, duas moças com que nos relacionámos, uma delas a Ana Maria Lucas, com quem, em San Francisco, a escala seguinte, andei, eu e mais dois camaradas, numa cantina da US Navy, a comprar, calcule-se, meias de lã para o Fernando Tordo – desconhecido de todos – na altura seu namorado.

Voltámos a cruzar o Canal do Panamá, reabastecemos na Martinica (da Chiquita Bàcana, essa mesmo), depois São Vicente (obrigatório) e no primeiro de Novembro estávamos em casa.

Em Fevereiro ainda andámos por Funchal e Porto Santo.

Estávamos prontos para a Stanavforlant.


Oficial imediato

Pouco depois da chegada da América, o Imediato foi para a Alemanha, nomeado Comandante da primeira corveta ainda em construção. Assumi eu as funções desde então. Porém, sendo primeiro-tenente, não satisfazia as condições do cargo. Procurava-se novo oficial para o preencher. Começou a falar-se com insistência num camarada capitão-tenente, cuja possível nomeação causava engulhos a toda a Câmara. Não a mim, que o conhecia de longa data e com quem mantinha um relacionamento, não exactamente de amizade, mas cordial.


Carácter

Nascemos com a marca de nossos pais. Quando os seus gâmetas se fundiram – o espermatozóide mais veloz com o óvulo pronto naquela lua – ficou destinado quem viríamos a ser. Outro tivesse chegado primeiro e não seríamos quem somos.

Há perícias e inaptidões que naquele momento nos são legadas sem apêlo. Depois, a família em que crescemos, as escolas onde aprendemos, os amigos a quem nos chegamos, influenciarão o ser individual em que nos vamos tornando.

Ainda estava na Escola Naval, mas já freqüentava a Messe de Oficiais do Alfeite, onde conheci um jovem segundo-tenente, de quem recebi atenção inesperada – pensei eu, por ser apenas um incipiente cadete. O teor das nossas conversas fugia à banalidade. Com idèias muito firmes sôbre os temas de que falava, ouvia-o com interêsse e pelo meu lado procurava ser um bom interlocutor. Não desconhecia que o acompanhava uma reputação de severidade e isolamento, que, aliás, não senti. Raízes numa estranja austera e educação no Colégio Militar, ter-lhe-ão enformado o carácter, de modo a agir com alguma inflexibilidade perante desvios à norma estabelecida, à lei. Imagem esta, definitivamente cimentada, depois de ter comandado uma Companhia de Fuzileiros na Guiné, em que –dizia-se – poucos homens lhe não tinham merecido castigo disciplinar. 
Porém, muito coerente, sempre exigiu de si próprio, tanto como aos outros. Era êste o camarada de quem se falava para Oficial Imediato do nosso navio. Sem poder evitar a sua nomeação – caso viesse a dar-se – generalizava-se na Câmara a idèia de o não aceitar. Contei-lhes de como tínhamos convivido com agrado e contrapus devermos recebê-lo sem azedume, aguardando-lhe a actuação. Tentei, mas não consegui. Manteve-se o desprazer que tal nomeação ocasionaria. Estava muito em causa a presunção das mudanças e o temor delas – mudanças que iriam decerto operar-se, em relação aos processos do  anterior Imediato, tido por mais maleável e mais companheiro. Éramos uma equipa com mais de dois anos de formação, coesa, conscientemente boa, que se arreceava, em vésperas de uma missão relevante para todos, de vir a ser encimada por um elemento considerado adventício. Mas o destacamento deu-se. Foi aquele nosso camarada que passou a ser o nosso Imediato. Os oficiais – ponho-me de fora – cumpriram a recusa anteriormente manifestada. Poucas palavras, falavam com êle apenas de serviço; e se interpelados, pouco iam além de monossílabos. À mesa, o Imediato não era incluído nas conversas. Só eu lhe dirigia a palavra, procurando compôr o ambiente, reduzir-lhe a frieza. Desde o primeiro momento percebeu o que se passava. Era evidente. Sem arrogância, manteve-se sereno, exercendo o cargo com naturalidade, na linha da sua conhecida conduta, mas sem reagir ao manifesto desprezo da Câmara. Até ver.

E lá fomos para a Stanavforlant (Standing Naval Force Atlantic), que integrámos a 11 de Maio, uma Segunda-feira, em Copenhague.

Saírá do contexto, mas não resisto a contar: tinha terminado na véspera, a 1.ª Feira Internacional de Pornografia. Coisa proïbida em Portugal, onde apenas à socapa e a mêdo circulavam histórias porcas dactilografadas e uma ou outra imagem de mau gôsto, a curiosidade levou muitos de nós a ver os restos – e havia muitos – do que ao tempo chegou a ser badalado como acontecimento cultural.  

O Imediato devia tê-la fisgada: não saiu do navio nos quatro dias de Copenhague, uma capital cheia de interêsses; e logo de seguida, atravessado o Canal de Kiel, voltou a não sair em cinco dias de Antuérpia, cidade igualmente muito chamativa. O Comandante, vendo-o sempre a bòrdo, percebeu que alguma coisa não estava bem. Creio que não soube exactamente o quê. Uma vez mais, chamou-me. Pediu que falasse com o Imediato e procurasse convencê-lo a sair de licença. Foi no camarote que tivemos uma longa e interessante conversa… um bate-papo. Não foram decerto os argumentos que possa ter apresentado, mas o certo é que desistiu da greve. E tudo voltou à anormalidade anterior.


Centro de Informações em Combate (CIC)

Êste serviço era chefiado por um môço, dos mais novos de entre nós, dedicado, muito esforçado, que defendia as causas do seu credo com a fôrça das mandíbulas de um buldogue segurando a prêsa. Estudou com denôdo e persistência os manuais de operações navais tendo chegado a um patamar notável de saber. Para facilitar a vida a quem estivesse de quarto ao CIC, engendrou um esquema numas folhas de quadriculado pequeno, onde em letra miudinha depositou a sua ciência. Uma ordenada e uma abecissa, conduziam-nos à acção adeqüada a cada circunstância. E quando porventura não chegavam duas coordenadas, recorria-se a uma terceira dimensão inventada noutro papel. A coisa funcionava muito bem. Excepção feita à viagem à costa Oeste da América, passámos a vida quase sempre a três quartos. Eu, que fazia quarto à ponte, tive mesmo assim oportunidade de constatar a bondade daqueles quadriculados.

O Chefe do Serviço, muito cioso da responsabilidade que lhe cabia em manobras, mantinha-se no CIC, muito para além da sua obrigação, garantindo que não se fazia feio.

O Comandante, oriundo dos gabinetes do Estado-Maior, não trazia grande familiaridade com exercícios de mar. De resto, tinha para isso um Chefe de Serviço. Mas Comandante é Comandante; e de vez em quando, um bitaite aqui, um palpite acolá,  mexia o navio em desacôrdo com o ATP1 (Allied Tactical Publication 1), ou entre TURN’s (rotação) e CORPEN’s (rotação alinhada), por achar que se navegava muito próximo de outra unidade, tomava um rumo outro, movimento que registado nos radares dos restantes navios da esquadra, traduzia um êrro. O Chefe do Serviço tinha fúrias silenciosas, mas ia agüentando a coisa. Até que uma noite, a meio de um exercício que nos corria lindamente, o Comandante, depois de uma discordância mais acesa com o nosso camarada, impôs a sua soberania e executou uma manobra desajustada, que não tardou a provocar um STATION (vá para a posição), mensagem sempre desagradável para quem a recebe. Foi demais. Partiu o lápis de perspex, atirou-o para o vidro da mesa de registos e desembestou CIC porta fora, lançando fôgo pelas ventas.


A revolta

Seriam duas da manhã quando acordei estremunhado. Atrás da mão que me abanava, divisei um galão de primeiro-tenente.
- Que foi?
- Veste-te. Tens que vir ao CIC.

E saíu do camarote, sem me dar tempo a perguntas.

Fardei-me, subi e lá fui. Encontrei quase toda a Câmara. Não estava o médico, nem os dois guarda-marinhas. Também não vi radaristas – teriam sido afastados. Estava tudo de cara amarrada.  
Primeiro atabalhoadamente, a três ou quatro vozes, depois serenando um pouco o discurso, mas carregando-o de côres sombrias, contaram-me o que atrás relatei.
- Sim… e depois?  
- Depois, que isto não pode ser!... Há que tirá-lo daqui, ou  continuamos a fazer borradas.
- Não exageres, borrada a sério foi só esta…
- Dizes tu… Mas o pior foi ter sido completamente surdo aos nossos argumentos, à leitura da ‘bíblia’. Se tivesses visto a soberba, o desdém com que nos tratou… um verdadeiro déspota – parecia outro. Queremos prendê-lo no paiol da amarra.
- O quê???... Vocês estão doidos!
- É o único processo… E tu tomas conta do navio.

Além de enlouquecer as gónadas, muito tempo de mar ensalitra a massa cinzenta, enruga-lhe a função e anuvia as idèias. Que fôsse tanto, nunca pensei.

- Essa é boa! Eu tomo conta do navio… E o Imediato?
- Não, êsse gajo, não. Prendem-se os dois.
- Vamos lá ver se entendo… Comandante e Imediato no paiol da amarra e eu sou promovido. Presumo que estejam todos de acôrdo? Certo?
- Nem pensar. Eu, não estou.

Havia alguém que estava comigo. Fiquei mais animado.

- Haja Deus!... E que dizemos ao Comando da Stanav?
- Nada. Não tem que saber.
- Quem é que acredita nisso? A guarnição não pode deixar de ver. Aceitará? Ainda que aceite, não tardará a falar para fora… Homógrafo, lanternas Aldis, bandeiras, chave morse… tudo meios incontroláveis. Já pensaram? E mesmo que a Stanav não viesse a saber, qual é o plano para a chegada a Lisboa? Tenham juízo!
- É verdade… és capaz de ter razão… Eh malta, o gajo ‘tá certo.
- Q’esteja. Mas como ficamos nós? Na mesma?
- Pensando melhor, eu também desisto.

Calados embora, a expressão de dúvida que li nalguns, deu-me a certeza de que a coisa se encaminhava no bom sentido. Continuei a malhar no ferro enquanto estava quente. Resultou.

Sentindo que as últimas considerações tinham feito mossa, constituindo-os em minoria, os mais assanhados revoltosos, perderam ânimo e acabaram por jogar a toalha ao tapête. Não tão depressa quanto o diálogo possa dar a entender, mas em boa hora.

Voltei à cama e tive grande dificuldade em adormecer.

Nós não sabíamos, mas tínhamos vivido, intramuros, um curioso e premonitório ensaio de Abril.



Em tempo – Todas as falas do texto, ficcionadas, não são reprodução exacta do que se disse. Tento apenas dar verdade às minhas recordações.

José Guerreiro
CLV, 6 de Novembro de 2018


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