O soneto e a emenda
Nas câmaras a bordo dos navios, nos trânsitos das vedetas
pelo Tejo e noutros ócios navais, havia muito quem contasse histórias, umas
vividas, outras ouvidas e quem sabe se algumas apenas imaginadas. Acredito que
ainda seja assim.
Era aos mais velhos – claro – que cabia a função; e aos mais
novos a tarefa de ouvir com atenção, para repetir aos vindouros e manter vivo o
encadeado.
O protagonista desta história chegou à Marinha trinta anos
antes da minha entrada na Escola Naval.
Ouvi-a contar umas quantas vezes, sempre igual na essência.
Nunca por quem a tivesse testemunhado ou sequer escutado do próprio.
O enrêdo é simples e fácil de relatar. Dar precisão ao
enquadramento não me é possível. Como não posso contar como foi, resta-me imaginar
como possa ter sido. Que me relevem o propósito, aqueles que porventura saibam
outros pormenores ou conheçam o caso com maior rigor.
A coisa deve ter-se passado pouco antes da Guerra Civil de
Espanha.
É prática universal, dar assistência a unidades navais
estrangeiras em portos nacionais. Dessa tarefa é incumbido um oficial – oficial
de ligação – que se lhes apresenta ciente das razões da estadia, informa os
comandos dos pormenores das visitas de cumprimentos mutüos, das facilidades
logísticas, de locais interessantes a conhecer ou eventuais áreas a evitar; e
procura ter resposta para as perguntas suscitadas pela curiosidade de quem
chega.
O jovem tenente foi nomeado oficial de ligação junto de um
navio de guerra estrangeiro que estaria em Lisboa por uma meia-dúzia de dias.
Como às vezes acontece, o embaixador da bandeira do navio
ofereceu um jantar a que se seguiria baile, aos oficiais das duas marinhas e a
personalidades afins. Para o evento, aprazado para a véspera da largada, foi
naturalmente convidado o oficial de ligação.
Providenciou a limpeza da jaqueta, do colete, da calça de
galão e da capa acabada de chegar do alfaiate onde fôra a pôr os ouros da nova
patente na gola. Todas as peças foram passadas a ferro com esmêro. Mudou a
cobertura ao boné e viu que os sapatos de verniz luziam azeitados. Comprou mais
um par de meias de seda preta, novo colarinho de goma de pontas dobradas e
conferiu que não lhe faltavam os atavios de fixação à camisa – botões metálicos
de mola para prender o colarinho ao cós,
atrás e à frente – e botões de punho condicentes com o figurino. A terminar,
não se esqueceu do laço preto de seda nem de limpar com benzovaque as luvas de
pelica branca.
A embaixada ocupava um velho palacete inchado de história. No
átrio, interessante estatueta segurava ao alto uma tocha que alumiava a entrada
da saleta onde eram servidos aperitivos. Em pequenas mesas redondas com toalhas
de um adamascado branco vivo, havia pires com artísticos canapés. Sobre
rodelinhas de pão pròdigamente untadas com maionèse, manteiga ou pàtê, brilhavam
as mais variadas viandas. Criados de libré cirandavam entre os convivas equilibrando
na mão pesadas salvas com copos, garrafas, gêlo e sifão, servindo-os a gôsto.
Ao meio, a uma mesa maior coalhada de garrafas vistosas, um moço todo ele gestos,
servia còqueteiles.
As bebidas desataram as línguas e o bruàá das conversas, a
dois ou pouco mais intervenientes, foi subindo de intensidade. Havia pouco tempo
meros desconhecidos, iam agora a caminho de ser amigos.
Até que se passou ao jantar.
O salão estava um poço de luz e o lustre central um
deslumbre.
Mesa comprida, cadeiras de altura modesta e bonito espaldar
artístico. Toalha rica e baixela invejável. Fazendo jus à fama, a loiça, muito
diplomàticamente, era de Sacavém. Frente a cada lugar um pequeno cartão com o
brasão hospedeiro e o nome completo do convidado. Ao nosso camarada coube ficar
muito próximo da senhora da casa.
Para entrada foram servidos tomates recheados assados no
fôrno.
Disposto com arte sobre o prato pequeno, um tomate bem
escolhido, livre de imperfeições, a que o sol dera o seu colorido, a calote
superior cortada e tapada por um ovo estrelado ajustado ao diâmetro. À volta,
pequenos pedaços de toucinho fumado, tomate e cogumelos que antecipavam o
refogado do recheio; e a alindar tudo isto, ao lado, um pequeno e perfumoso raminho
verde de manjericão. A entrada prometia.
O banho quente e a secagem enérgica do corpo com o bom e espêsso
turco de algodão, o barbear, a massagem com pedra-ume, o talco usado com
fartura, o ajuste lento a cada peça de roupa até se sentir bem vestido, tudo
feito com mais tempo que de costume, somados à viagem, aos dois copos de uísqui
com soda e às conversas de circunstância, esfaimaram-no.
Agora, a visão de todos aqueles tomates coroados de amarelo
pelo ovo, espicaçou-lhe o apetite.
Quando a mulher do embaixador deu sinal de remar, conteve-se
contudo e remou manso. Com dificuldade,
que era homem de mesa farta. Esse domínio sobre a vontade de ingerir e de
fazê-lo depressa, propiciou que tivesse tido tempo de saborear, que se tivesse
concedido tempo para gostar. O agrado
foi grande. Ou por isso, ou tão sòmente por mera cortesia, decidiu tecer loas à
cozinha.
Sobrepondo a sua voz ao surdo ruído dos talheres e das
pequenas conversas que começavam a esboçar-se, sorridente e delicado apontou o
olhar firme à obsequiadora e com sonoridade bem timbrada fez-se ouvir:
- Minha senhora! Que
requinte de entrada… que promessa de jantar... Deliciosos tomates! Cheios… bem
recheados, saborosíssimos… que tomates!? Oh! Que tomates! Que soberbos tomates!
Tão repetido e insistente martelar na mesma dúbia palavra, fez
cessar o zunzum das conversas e as pessoas cruzaram olhares de interrogação,
incrédulas com o teor do discurso.
Também o orador deu pelo silêncio. Sentiu em redor de si o
peso reprovador de todos os olhares. Parou. Percebeu. E rápido, o sorriso
ampliado, cravando a mira na cabeceira da mesa onde se sentava a dona da casa, soltou a pérola:
- Tomates!?...
Frutos!!!
Mezena
23 de Junho de 2015