Um banco a Sul e Sueste
Os bancos
Bancos,
há-os por alamedas, ruas, jardins e avenidas; há-os aos centos, aos miles.
Inteiriços,
às ripas, em ferro, madeira, pedra, há por aí bancos dos mais variados
tamanhos, côres e feitios.
Ganhar
fôlego entre caminhadas, albergar ócios, acoutar velhos, são usanças para que
os bancos se sentem talhados.
E mesmo em
casa, de môchos junto à lareira a escabêlos aos pés da cama; de
bancos-escadotes para alcançar a prateleira de cima a incómodos e quase nunca
usados assentos de ferro, à chuva no quintal, também há uma imensa sorte de
bancos que só ganham número ao fazer-se uma mudança.
Nestes
tempos novos de concentração de lojas em edifícios imensos, com parques
subterrâneos para automóveis empilhados como convèses de navios, escadas e
passadeiras rolantes entre pisos e compridos chãos p’ra caminhar – um cansaço
para os desinteressados nas compras, para diminuídos físicos e para os velhos –
há bancos plantados em lugares bem escolhidos desses chãos – sofás nalguns
casos – que já vou usando por necessidade de dar tempo aos músculos das pernas
de repôrem o nível de oxigénio.
Os bancos soalheiros,
são nos jardins, os mais procurados pelos vèlhinhos que buscam o calor que lhes
vai falecendo no corpo. Cabeça coberta, às vezes os olhos fechados e o queixo
apoiado nas mãos assentes numa bengala que seguram entre as pernas, tomam ali o
seu banho diário de energia.
Mas não se
fica por aqui o papel que os bancos podem ter.
Na alameda
de Faro, sob o caramanchão junto à parede do antigo Liceu João de Deus, havia
uma bancada em alvenaria rematada a azulejo, num recanto de tal modo escondido,
que os namorados em vias de incêndio, iam lá ter sem dar por isso. A atestar
que fôra palco de combate a um fôgo, corria à boca pequena que alguém ali
esquecera umas cuèquinhas de imaculado côr-de-rosa.
Àcerca
destoutro singular e meritório uso dado aos bancos, piorou-se ao passar do fôfo
assento almofadado das carruagens para a secura rija da traseira dos automóveis,
perdendo-se assim, tanto no espaço quanto na macieza dos estofos. Há mesmo
registo da reclamação de damas mais licenciosas que viveram com desgosto a
difícil transição, sem que os seus protestos colhessem junto dos amantes,
inebriados com o novo papel activo de condutores, a fardamenta necessária e o
futuro que a máquina barulhenta prenunciava.
Um banco a Sul e Sueste
A Oeste da
Doca da Marinha havia três grupos de pontões de atracação. Logo ao lado, um
cais para os cacilheiros grandes; depois a estação de Sul e Sueste, dos barcos
de ligação aos combóios no Barreiro; e por fim, a zona dos cacilheiros
pequenos, já perto do Cais das Colunas, onde anteriormente atracavam.
As três
áreas eram bem demarcadas: e a dos cacilheiros pequenos limitada por um muro gradeado
e um portão que se fechava à cidade entre a meia-noite e as seis da manhã.
A uns vintes
metros do portão, um banco de pedra bem enraízado na calçada. Umas quantas
toneladas de mármore branco, branco homogéneo, o encôsto cortado com perfil de
curva sinuosa, uma espécie de éle mal desenhado rematado com volutas, a tentar
reproduzir – sem grande êxito – a forma repousada das nossas costas.
Exposto ao
tempo, perdera o polimento. Baço, de um brilho mate a esconder os pequeníssimos
cristais, era um banco harmonioso de formas que na sua singeleza passava
despercebido a quem não precisasse dele, tal como o irmão gémeo que o olhava
distante, lá do lado do Campo das Cebôlas.
Recebido quando
rapazinho em casa de amigos na Rua do Paraíso e no Bêco do Surra e mais tarde
freguês assídüo dos eléctricos das carreiras de circulação da Graça, que
atravessavam as Escolas-Gerais, tornei-me chegado a Alfama. A isso se deve,
quem sabe, a preferência que dava à Parreirinha quando desafiava a regra do
internato da Escola Naval e trocava o sono justo a que tinha direito no Alfeite
por uma insone noite de fado, temperada a vinhos e petiscos.
Pelas quatro
da manhã o cansaço chegava à sala e bocejo a bocejo ia de uma a outra mesa e
dava conta da gente. Começava a debandada. Esfregando os olhos já mais fechados
que abertos, era também essa a minha hora de saír, trôpego aos primeiros
passos, mas ganhando equilíbrio com o ar frio de inverno que banhava a cidade.
Desperto de
novo, lá descia pelo Jardim do Tabaco à marginal do Infante, antevendo já o
suplício da espera por um barco que me levasse à outra banda. Mas à aproximação
daquele já tão conhecido e quase íntimo banco de outras noites, assomavam de
novo a indolência e o relaxe que precedem o sono.
Estava
vazio. Podia deitar-me ao comprido. Ainda sobrava banco. Deitei-me como sempre
para o lado direito, a cabeça sobre o cotovelo dobrado a fazer de almofada, na
manga aveludada do encorpado moscou inglês do dólman.
Silêncio.
Silêncio que tornava – será possível? – mais frio ainda, o gêlo daquela mole
imensa de mármore que deixara de ver o sol tantas horas atrás. O primeiro
contacto foi de arrepio, mas a quentura dos vinte anos, regulada pela enrugada rijeza
dos balões do termostato, permitiu que as trocas de calor fossem rápidas e tivéssemos
chegado a um entendimento: ele aceitava um pouco do meu calor e eu rejeitava
quanto pudesse o frio que me dispensava.
Não tardou
que a dormência falasse mais alto. Resguardei as mãos, uma prensada entre a
cara e o braço, a outra no bolso das calças, ajustei-me como pude às curvas da
pedra, imaginei como seria melhor estar metido nos lençóis de uma cama quente e
tive um pensamento de respeito e dó pelos desgraçados sem teto. E apaguei.
Como é que em
condições tão adversas, o meu inconsciente terá sido capaz de se pôr a sonhar?
Versos muito
chorosos da Cruz de Guerra na voz da Berta Cardoso, havia pouco ouvidos na
Parreirinha, sublinhados por uma guitarra langorosa, misturavam-se com o toque de
alvorada de um clarim que num crescendo de aproximação à minha camarata calou
tudo o resto.
Há
mecanismos incríveis!
Aquele
clarim acordou-me mesmo a tempo de apanhar o primeiro cacilheiro.
José
Guerreiro
CLV, 9 de
Junho de 2016