9.10.15

Os olhos e o dinheiro




Os olhos


Tinha doze anos quando um oftalmologista esteve no Lubango a examinar os olhos da malta do liceu. Calhou-me em sorte uma miopia incipiente que o tempo agravou e quase me impediu de entrar na Escola Naval.

O uso aturado e intenso que fiz dos olhos a bordo da ‘Diogo Gomes’ nos primeiros meses de 1962, a descortinar as marcas de navegação nas margens dos rios da Guiné, que a distância tornava minúsculas, tornou-me mais pitosga ainda.

Ao chegar a António Enes a potência das lentes já rondava três dioptrias.

Ignorei quanto pude a desvantagem da má visão e desde cedo me tornei um amante de cinema. O prazer colhido desse passatempo era maior nas grandes salas, equipadas com boas máquinas e telas enormes, mas os magros trocos no bolso obrigavam-me aos cinemas de repetição, onde por metade do dinheiro via dois filmes. Em Lisboa, era pelos Lys, Rex, Royal, Chiado Térrasse e Imperial que consumia as tardes, em primeiras ou segundas màtinés e não poucas vezes nas duas. Estudante muito aplicado… Procurava sentar-me em cadeiras vagas nas filas da frente para ver melhor. No Imperial, ali à Praça do Chile, onde a projecção era uma penumbra tão baça que mais parecia feita a velas de estearina, era poiso mandatório.

Pois foi uma versão refinada do Imperial que fui encontrar em António Enes, tal a pobreza da fonte luminosa. Com um senão adicional: em fitas importadas fora do circuito normal, por vezes o celulóide não trazia legendas impressas. Eram projectadas separadamente por uma maquineta onde se metia um rôlo de papel mal transparente, com a tradução dactilografada das falas, que um seguidor do enrêdo fazia rodar à manivela.

Numa noite em que faltou o artista manivelador, pediram-me que fosse substitui-lo. O filme era falado em inglês. Com algum receio embora, acedi, confiante no meu suficiente saber do idioma. Melhor fôra ter valorizado o receio. Não era fácil; e os meus conhecimentos não eram afinal tão apropriados. A certa altura perdi-me. Não sei se adiantado ou atrasado, o que é certo é que por um compridíssimo minuto andei às aranhas fazendo rolar o texto p’rá frente 
e p'ra trás. Grande barraca!


Era pois na primeira fila da sala de cinema do Clube Recreativo que me sentava, a pequena distância das imagens, em rústicos bancos de pau, grandes, pesados e largueirões, onde podia esparramar-me à vontade. Teria menos confôrto, mas via melhor. E via primeiro!...

Não contava com a numerosa freguesia que disputava os lugares, quase sempre vazios em outras salas de cinema, mas não naquela. Tampouco os aficionados do local esperariam ver-me ali, como pude aperceber-me pelos olhares oblíqüos que me faziam sentir. Mas em pouco tempo éramos sócios da mesma sociedade.



O dinheiro


Depois de três anos na ‘Gago Coutinho’, de regresso a Lisboa logo após termos integrado a Stanavforlant, fui nomeado para os Serviços de Marinha de Moçambique a que tinha concorrido; e na primeira quinzena de Outubro de 1970 estávamos em António Enes. Satisfez-me saber que ganharia melhor, pois a coisa ia malíssima: acabado o salário mensal crescia sempre uma semana. Já me tinha socorrido de empréstimos da Cooperativa Militar e dos Serviços Sociais das Forças Armadas que andava a pagar com dificuldade. Havia parte da cabeça dedicada em exclusivo a fazer contas, tão exclusivamente que doía sentir-me feliz.

Tudo pareceu mais luminoso, quando a dias da partida se soube estar aprazado para aquele mesmo mês de Outubro o tão desejado e sempre adiado aumento dos ordenados. Um primeiro-tenente passaria a ter sete contos por mês em vez dos já rançosos quatro contos e quinhentos. Aumento considerável que era o reconhecimento da penúria em que vivíamos.

A grande surpresa tive-a já em Moçambique ao perceber que o decantado aumento era apenas para a Metrópole - só se estendeu ao restante país em 1972.



A descriminação fez crescer de tal modo o descontentamento que um camarada em serviço em Nacala, ao constatar que os dois pilotos sobre que tinha competência disciplinar - mais uma vez aumentados entretanto - passavam a vencer três vezes mais do que ele, sentiu de tal modo a indignidade do tratamento dado à função que sem mais estôfo, se auto-suspendeu. Essa a razão porque , por ordem de Lourenço Marques, acumulei durante três meses Nacala e António Enes.  

É certo que havia complementos financeiros – emolumentos – que me permitiram melhorar o padrão de vida e facilitar o pagamento dos empréstimos. Também, se assim não fôra…

Finalmente recebia mais do que gastava, uma sensação tão nova, surpreendente e saborosa que me prometi nunca mais recorrer a ajudas que não pudesse vir a cobrir. Assim tem sido. Passei a ter algum respeito pelo dinheiro, não lhe dando grande confiança. Trato-o com distanciamento mas sem sobranceria. Temo-nos dado bem, muito por graça da vida modesta que levo. Mas no hoje de 2015, agora não com a aspereza fria do cifrão do escudo, as arestas cada vez mais vivas do euro simbólico de uma nova era por cumprir, já arranham a doer. Parece haver indícios – dizem alguns – de que a curva tende a inflectir…



Os olhos e o dinheiro


As incumbências administrativas na Capitania cabiam ao Escrivão, o Senhor Francisco Sales, figura serena, impenetrável , de olhar esquivo, rigoroso na função e cioso desse rigor. Sempre a tempo, sempre sem falhas, respeitando a compartimentação de verbas tanto como o químico azul e o lápis de tinta, processava tudo o que de papel se tratasse. Era o caso do papel-moeda. Depois dos cálculos feitos, metia em envelopes apropriados as notas e moedas vencidas por cada um em cada mês.

Num dia de um fim de mês deu-me o envelope que me cabia. Na pauta impressa no rosto, entre tracejados e sublinhados, estavam os números de deve e haver que a caligrafia muito cèrtinha do Senhor Sales ali deixara.

Vi quanto era, achei bem, dobrei o envelope e meti-o num bolso de trás das calças.

Corria um filme de aventuras que não escolheria se acaso houvesse escolha, mas decidi-me por vê-lo. À excepção dos ensaios de teatro, em que ambos nos empenhávamos, minha mulher só muito de quando em quando me acompanhava ao clube; e não lhe interessando o filme que era mesmo de pouco interêsse, iria mais uma vez sòzinho.

Depois do jantar – nesse tempo jantava  - caminhei até ao clube e na esquina da varanda sentei-me a uma mesa onde havia parceiros para o dominó. Pedi café, um càlicezinho de aguardente e encetámos a partida. Carrão na mesa. Sempre com graça, os mirones não desperdiçavam a ocasião para dichotes mordazes. Como viam as pedras de todos, armavam-se em espertos. Desde que não revelassem o assassino… era deixá-los.

Entrei pouco antes da sessão e tive vaga mesmo ao centro da primeira fila. Passei o lenço pelas lentes antes de pôr os óculos, ajustei o corpo à dureza da madeira, recostei-me quanto pude, tentei alhear-me das bocas da geral e esperei pelo filme.

Deve ter havido um mau da fita, uma vestal e um herói, como vem nos manuais… não me lembro. Barulho, sim, muito. Descabelamentos houve, porque apareceu uma sabida a disputar o rapaz. Muita punhada, muito amor e ódio. Em suma, um produto classe B, do pior.

Primeira infância todos temos. À segunda nem sempre se escapa. Vítima disso, era-me impossível não fazer côro, ainda que surdo, com as exclamações gritadas pelos cinéfilos mais entusiasmados com a acção, tomando partido a cada murro, a cada cambalhota, a cada pontapé. Sentado a poucos metros do pano, fustigado pela insinuante pontuação musical,  sujeitado o banco ao desencontro de ritmo com que cada um vivia as imagens, empurrava-me contra o encôsto, ou recostava-me sobre o assento, gesticulando também eu, ao sabor do desenrôlo.

Sòzinho, que em direcção ao mar quase ninguém ia àquela hora, gastei devagar os pouco mais de cinqüenta metros de distância a casa e fui encontrar minha mulher inda desperta.

Com preguiça, sentindo o sono que chegava, foi com todo o ripanço que me dei aos preparos para a cama. Ao pousar as calças nas costas da cadeira lembrei-me de ter recebido o patacão. 


Todo lampeiro, sempre a idear gastos para além das posses, joguei mão ao bolso a buscar o envelope.

Não estava. Bolso vazio!

- Deve ter caído no chão ao virar as calças… - Nada!

Rápida busca por todas as algibeiras… nada. Tentei manter-me sereno.

- Será que ficou na Capitania? Não. Lembro-me perfeitamente de o ter pôsto no bôlso direito de trás, onde habitualmente anda o dinheiro pequeno - Só que desta vez era grande…

Cada cabeça tem a sua maneira própria de reagir à desfortuna. Eu… fiquei sêco.

Ninguém iria passar fome, mas perder o ganho de um mês não é receita que algum médico se atreva a passar para aumentar a tensão, fazer latejar as fontes ou – se fôr preciso - acelerar as batidas do coração. Com todos estes sintomas, consegui mesmo assim manter a cabeça fria, não sem a sensação de derrota daquele bolso vazio e a necessidade de extemporâneas e profundas inspirações de ar para acalmia e reposição de ritmo.

- No cinema??? Talvez no cinema.

Vesti-me e saí. No clube, a porta do cinema estava entreaberta. Sob luz mortiça, um homem varria o chão com pachôrra. Falei-lhe, disse ao que ia e estuguei o passo.

Renasceu-me a alma!

Olhando-me com reprovador ar de abandono, lá estava o envelope saltarico.

Ufa!!! … Que grande alívio!



José Guerreiro

CLV, 1 de Julho de 2015