10 de Outubro de 1970
O almoço – xaréu cozido, uma novidade - foi no Hotel Portugal, em Nampula. À sobremesa, papaias muito maduras e mangas temporãs, algumas já abertas sobre pratinhos, outras aguardando escolha dentro do grande cesto-fruteira no meio da mesa, dominavam em absoluto a atenção da Noélia e dos miúdos, noviços por inteiro quanto aos áfricos comeres. Eu rejubilava com a oportunidade de mostrar a minha africanidade de vários anos, ainda que por mais oestes longitudes.
Só que a curiosidade dos iniciandos descambou em
desconfiança. O apetitoso da cor e da textura deixaram-se anular pelo cheiro
das mangas, cuja única referência conhecida jazia na prateleira do meio, na contra-loja da
farmácia da tia Esmeralda, sob a forma de um frasco rotulado de ‘essência de
terebintina’.
Insisti na bondade da coisa, na semelhança da papaia com
o bom melão, nas virtudes defecatórias de sobejo conhecidas e aduzi um punhado
de boas razões para provar o artigo, gostar dele e quiçá repetir. Consegui que
provassem.
Tínhamos chegado três dias antes a Lourenço Marques.
O Sub-Director Provincial dos Serviços de Marinha, tivera
de ir ao aeroporto e aproveitou para me receber. Fiquei então a saber, ser
António Enes o meu destino. A descrição sumaríssima que me fez da terra teria
sido desanimadora, se entre as razões que uma vez mais me levavam a África não
figurassem África ela própria, as grandes distâncias, o exotismo, o calor, as
carências, o muito por fazer à espera de quem quisesse fazer e enfim, algum ainda
remanescente espírito de aventura. Poderia mesmo acrescentar um éde cétera, que me sobravam algumas razões.
Mas a rápida monografia que aquele meu camarada e conterrâneo fez de António
Enes, promovida a cidade havia uma dúzia de dias pode resumir-se assim: ‘uma
povoação com uma rua de areia vermelha e alguns barracões de um dos lados’.
Jantámos nessa quarta-feira em casa da Beatriz e do Zé
Alexandre. Foi grande a satisfação de encontrar amigos em terra estranha; e
creio que o casal, também recém-chegado, terá sentido algo parecido. É que nos
últimos três anos, não passara ainda um mês, ele e eu integrávamos a primeira guarnição
da ‘Gago Coutinho’,
uma das mais recentes sete fragatas. Navegou-se muito,
viveu-se muita tormenta, fez-se muito exercício, conheceu-se muita terra e
muita gente. O último período de manobras, na Stanavforlant, começara para nós
em Maio e acabara em Setembro. Mal tivemos tempo de fazer as malas que levámos
a Moçambique. Mas viajar tornara-se de tal maneira corriqueiro que poucas faltas
houve nas imbambas.
As duas costas da América do Norte, Canadá, Brasil,
Panamá, Martinica, Noroeste da Europa, Islândia, tinham sido entre outros,
destinos nossos. Em alguns portos, os bens de consumo eram significativamente
mais baratos do que em Portugal, além de muitos deles nem sequer serem ainda
conhecidos. Assim, todos de uma maneira geral, cada um fazendo esticar ao
máximo as suas posses, comprava para si e os seus, utensílios, bugigangas,
roupas e ainda mais bugigangas que parecendo o mais das vezes coisas úteis ou
bonitas, com freqüência se revelavam supérfluas ou inadequadas. Ficou no rol
das recordações a compra de camisolas tingidas com tremidas fantasias
circulares aleatórias, de todo novas para nós, mas logo a seguir muito em voga,
compra que fizemos na Escócia e de que só a bordo descobrimos a indicação de
origem: ‘Made in Portugal’. O mais caricato porém – mais tarde soubemos - é que
quem as fizera fôra a mulher de um camarada nosso, para conseguir uns cobres
para alfinetes. Deve ter sido um sucesso o reencontro da camisola com a autora.
Viviam-se os agora tão decantados anos sessenta. Vi o
‘Hair’, a primeira ópera-rock, em Londres e Nova Iorque; e só a não revi no
palco original, em São Francisco, porque me deu uma de poupadinho e achei que os
dez ou onze dólares do bilhete estavam no momento muito para além do
depauperado orçamento familiar; vivi um dia em Greenwich Village; dei umas
passas de marijuana, num ‘be in’, no porto de Nova Iorque; estava na Virginia
aquando do Woodstock; vi ‘hippies’ preguiçando sobre a relva em parques de São
Francisco, tornando-a quase invisível; mas também os vi, por estranho que
pareça, a trabalhar. Bem certo que iam deitados, quase junto ao asfalto, nas
complexas viaturas que pintavam a sinalização rodoviária horizontal . Naquela
bela cidade onde me senti quase em casa, comprei um LP do Carlos Paredes por
menos de metade dos 180$00 do preço de Lisboa. Perto de San Diego, porto-alvo
da nossa ida à Califórnia, visitei com alguns camaradas a Disneylândia e o Sea
World. Ali gastámos um dia inteiro e pudemos, a par de um banho de tecnologia
moderna, regressar à meninice.
Estas vivências não passaram por mim impunes.
Trintão recente, deixei-me embalar no vento que passava,
se bem que nunca fazendo cedência de um certo distanciamento crítico. Foi
cavalgando esse vento que me permiti comprar umas calças Levi’s de bombazina de
veludo azul eléctrico numa cantina da marinha americana em Norfolk; e foi assim
que numa loja Bata em Antuérpia, comprei
umas botas da marca, que derramavam sobre os pés umas farripas de couro ao modo
do tradicional casaco de Buffalo Bill. Tudo coisas discretas! Vá lá que a camisa bège tinha sido
uma manifestação de bom gosto.
Deixem-me agora voltar ao Hotel Portugal.
Como é freqüente, a prova da papaia não foi feliz. Acontece
quando ao palato falta um sabor de comparação. O da Noélia reprovou tudo e a
indisposição que a incomodava desde de manhãzinha, já ampliada pelo voo algo
trepidante do Boeing 737, acabou numa expressão de náusea. A desilusão foi compensada
pelos filhos que a tudo lamberam os beiços.
E lá fomos para o aeroporto reiniciar a viagem.
Surpresa! O avião que nos esperava era um
tradicionalíssimo Dakota cujo aspecto exterior avelhentado contrastava com as
modernas máquinas que até Nampula nos tinham levado e prenunciava o desconforto
de estofos duros, muito barulho, cheiros e outras quejandas virtudes que forçaram
afinal a sua substituição pelos Friendship também naquele percurso, levada a
cabo pouco tempo depois.
A acentuada inclinação do corredor central, a mal-enjorcada rede bagageira à nossa frente, onde as malas
empilhadas a granel tentavam esforçadamente caír, mais o calor pejado de odores
fedorentos no interior do avião, indiciavam uma menor segurança de voo. Devia
ser psicológico. Por outro lado, os hélices, no cotejo com os reactores que nas
primeiras etapas tinham feito a corrida pela pista transmitiam uma sensação,
naturalmente falsa, de falta de força. Mas a coisa descolou e voou. Pelas
janelas mais próximas do chão avermelhado durante a rotação de acêrto do rumo,
viam-se lá em baixo os gigantescos calhaus que rodeiam e assinalam Nampula. O
solo, àquela hora muito quente, facilitava aqui e além a ocorrência de poços de
ar, em cada vertiginosa descida coração e estômago comprimindo-se...
E o que tinha de acontecer, aconteceu: a rede bagageira
não aguentou o esforço, rebentou de supetão e maletas e malões dispararam para
a popa do avião. Pelos olhos que olhei perpassava a côr do medo. Reagi,
minimizei o acontecido para ter comigo a minha gente , arvorei um ar ousado
tipo ‘Ó Cosme, olha nós, hem?’ e
preparei-me para esfolar o rabo da viagem. Foi quando se abriu a porta da
cabina e assomou a hospedeira em voz esganiçada:
- Está tudo bem aí
atrás?
Numa atmosfera mais favorável com a aproximação do mar, o
voar tornou-se ligeiro, equilibrado e elegante. Mas já cansados de uma jornada de
três vôos em dois aviões, iniciada havia montes de horas, suados e catinguentos
da atmosfera quente e viscosa respirada neste último, sem condicionador de ar,
ansiávamos pousar.
E foi assim completamente escalmorrados que pusémos pé em
terras de Angoche, depois de um pouso não muito suave, mas de grande alívio.
Até para a indisposição da Noélia.
Aero Clube de António Enes, podia ler-se na frontaria
semicircular que encimava o pequeno edifício térreo, posto à sombra por uma
placa assente como um avançado sobre colunas e que mais à frente ainda tinha
uma sebe cujo tratamento descuidado não conseguia empobrecer o vermelho das
flores que a pejavam.
Ali decorriam todas as operações próprias de um aeroporto.
Seguiram-se os gestos adequados à circunstância: esticar
o corpo, mirar o local, segurar os miúdos, controlar de longe o desembarque e
movimento da bagagem, uma voltinha de reconhecimento... e foi quando reparei em
três conspícuos senhores espècados ao lado do edifício.
Trajando impecáveis fatos escuros ‘de ver a Deus’, gravatas
de cetim cinzento de casamento sobre o branco-cal das camisas, escorrendo suor
sob um sol que fazia a alegria dos lagartos, tinham o iniludível aspecto de uma
comissão de recepção. Não me dei logo conta de que poderia ser eu o alvo, mas
quando os olhei mais atento vi que me fixavam. Deveriam saber que me deslocava
com mulher e dois filhos e era o único passageiro que se ajustava a tais
parâmetros. Apesar disso, por certo de pé atrás, recusavam-se a sobrepor a idèia
do chefe que esperavam àquele espécime em camisa cor de grão, calças de
bombazina azul gritante e umas botas de camurça cinzenta com franjas quase até
ao chão.
Num ápice tive a presciência da verdade e senti-me corar
por dentro, pelo ridículo da situação que não previra… e deveria tê-lo feito.
Reagi de pronto, dirigi-me a eles, confirmei que não me enganara, apresentei-me
e aos meus e ainda que não saiba como isso se faz, tentei dar de mim a idèia de
alguém que embora com o aspecto exterior de um ‘hippie’ acabado de transplantar,
sei lá?, de Sausalito, era afinal um circunspecto senhor, como eles encasacado,
enroscado numa impecável gravata e calçado nos mais brilhantes sapatos pretos.
Não creio que tenha conseguido. O Bragança e o Queirós ter-se-ão adaptado com
facilidade ao meu inesperado figurino, mas o Sr. Sales, lá no paraíso onde
repousa, ainda me não deve ter perdoado e pensará no seu acento goês: Que raio de gajo nos haviam de mandar!?
Os oito quilómetros até à cidade foram feitos na já vèlhinha
Vanet Chevrolet azul, escutando atentos as ilustrações sobre o que íamos vendo.
Chegados ao cimo da avenida, vi com agrado como era antiquada a idèia que o
sub-director tinha do burgo. Mais ainda quando a casa que mais nos enchera os
olhos, veio a ser aquela em que nos fizeram entrar para ser nossa por dois anos
e meio.
Era o dia
10 de Outubro de 1970,
o nosso primeiro dia de ser macuas.
José Guerreiro
FZ, 16AGO2013