MISTÉRIOS DO PARAPATO
-Uma espécie de crónica serôdia-
O embrião deste escrito foi
criado para o jornal ‘Macua’ e nele publicado há anos.
Nunca me aventurei a discorrer
senão sobre vivências próprias, as que mais conspícua marca inscreveram na
memória.
O tempo tem-se encarregado de
aclarar algumas recordações que a par de ajustamentos semânticos, fui aditando
à escrita; e daí versões sucessivamente diferentes.
Tomou forma neste conjunto de
retalhos, uma súmula da minha viagem de guarda-marinha, efeméride tão importante
neste ofício.
O tema deu guarida aos
mistérios em ‘A Voz da Abita’ conhecido blogue naval que também os publicou.
Entre a inércia mediterrânica
que desde sempre se me cola pegajosa e a tola pretensão de aceder a escrever
alguma coisa porventura interessante, tenho-me balançado descontente,
preocupadíssimo por não participar na feitura do jornal e afinal ansioso por
fazê-lo. Ora imaginando bonitas frases ora caindo na vacüidade dos temas, revivo
a angústia do estudante preguiçoso e cábula que conheci (fui) na juventude.
Ultrapassadas, por agora,
pretensão e inércia, aqui estão os mistérios do Parapato:
Antes do fechamento do Canal
de Suez, as viagens de guarda-marinhas em fim de curso faziam-se de hábito à
volta de África. Era o périplo de África. Depois, passou a descer-se a costa
Oeste, rodear o tormentoso cabo e ir por ali acima até à foz do Rovuma,
inverter rumos e fazer a viagem de volta. Foi assim comigo.
Não fizemos a viagem
desejada. Nunca se faz a viagem desejada.
Desrespeitando as regras,
tinha feito uns rabiscos a giz no quadro da nossa sala de estudo com alusões
aos pretendidos destinos para a viagem e que quase me valeram um castigo. De um
convívio com cadetes italianos de visita a Lisboa no navio-escola ‘Amerigo
Vespucci’, trouxe a idèia, que copiei, de contar os dias em falta para o fim do
curso a partir dos cem dias. Por eles baptizada como ‘MAK p’ (de ‘mancano p giornni’), materializei a contagem no quadro, onde sei
que durante uns anos fez carreira.
Não fomos ao Brasil como
fizéramos constar na vedeta das cinco. Tampouco às Canárias, se bem me lembro.
Largámos aí pelo meio de Agosto e viemos passar o Natal a casa. De permeio,
muito mar, mais algum saber, uns quantos dias em terra, matada pouca da muita
sede de vida e, convenho, um saldo final de satisfação.
No mês anterior à largada,
Hailé Selassié II, Imperador cristão da Etiópia, visitara Portugal.
Esteve embarcado e navegou na
fragata Nuno Tristão, que para melhor o receber foi alvo de alguns alindamentos
em áreas como a camarinha do Comandante e a câmara de oficiais.
A Nuno Tristão durou mais uns
anos. Voltei a encontrá-la e fotografei-a junto aos Baixos do Tombali, frente à
Ilha do Como, de bordo do contra-torpedeiro Vouga, quando este se preparava
para a render na Operação Tridente, em fins de Janeiro ou início de Fevereiro
de 1964.
Foi neste navio que embarcou
a metade do curso a que me coube pertencer. Claro que ficámos contentes. Iríamos
usufruir dos requintes dispensados ao Negus da Abissínia. Confesso que não dei
por eles.
A outra metade do curso
embarcou na mana Diogo Gomes. E andou menos contente quase toda a viagem. Não
por falta de requinte. A coisa só melhorou com uma mudança intramuros: o oficial
imediato foi despromovido a um patamar do tipo ministro sem pasta e as suas
funções passaram a ser exercidas por outro. Gerir homens, comandar, é complicado.
Nem todos sabem.
À chegada ao Mindelo, lá
estava, como depois se tornou hábito, o Vicente, que vinha buscar roupa para
lavar, mas se apresentava como ‘Vicente, piloto’, sendo que a pilotagem era
imprescindível na noite despida de luz dos meandros da ilha. Bom piloto, o
Vicente. Voltei pr’a bordo muito mais sábio depois de me ter conduzido ao
espaço onde presenciei uma sessão do famoso 'cola-cola', interpretado por duas
mulheres negras, avançadamente grávidas, alegres e luzidias.
Seguiu-se a Guiné. Assistimos
pela primeira vez à cena da bóia de espera, com muitos binóculos assestados ao
horizonte na proa e a oferta de uma grade de cervejas a quem fizesse o
avistamento.
E o rádio-farol de Caió que
tardava em dar sinal… e a sonda que indicava cada vez menos fundo… e as águas
tão barrentas… De facto não era pêra
doce aterrar na Guiné; pior ainda se o Sol não tivesse aparecido para
uma altura meridiana que garantisse a latitude. Bem, havia que aproar a Meca, medir
o fundo o tempo todo e confiar… Confiar nas batimétricas, na carta… no profeta.
Ao fim, como sempre seria, lá íamos
nós Geba acima em
demanda de Bissau.
Não me lembro de ter ouvido
falar sobre a rebelião no cais do Pidjiguiti, ocorrida apenas dias antes.
Admito que às vezes andava na
Lua (e não ando?). Terá sido essa a razão?
Saído de um jantar-recepção,
com mais uns quantos, integrei uma caçada que ficou célebre entre nós, Curso de
Pedro Nunes. O alvo seria um felino feroz. Falava-se em onça. A direcção da
expedição, já muito nocturna, era do chefe do cais de Bissau que conduzia um
jipe e fornecera as armas. Por onde andámos, não sei. Mas rodámos muito. Tampouco
fiquei com uma noção clara do tempo gasto. Recolecto na memória a excitação vivida, a expectativa do encontro
com a presa, os saltos do carro… e finalmente dois pequenos olhos brancos faíscando
sob a luz do farolim. Ràpidamente, uma espingarda apontada…
- Não atire, não atire!... gritou o homem.
Não era para menos. Estávamos
num quintal dos arredores de Bissau e os olhos eram de um gatinho.
Só no regresso, a navegar
para Norte, visitámos o Príncipe. Depois São Tomé. Mas porque quero acabar em
Moçambique, falo desde já deste pequeno arquipélago. De pouco me lembro aliás.
Houve quem fosse ao Príncipe. Eu, não. Parvamente. Fiquei sem conhecer o sabor
de um gabadíssimo guizado de macaco. Em São Tomé estivemos fundeados na Baía de
Ana Chaves. Fomos à roça Água Izé. Claro,
era quase obrigatório. Em expedição posterior, recordo-me bem de andar a
apanhar camarão, empoleirado em arbustos. Não se riam. Era onde muitos ficavam
após as cheias.
O solo, de um castanho gordo
e úbere, a vegetação pintada a verde forte, tudo grande, tudo luzidio.
Uma terra feita por um deus
inspiradíssimo.
Angola. Uma costa alta quase
toda. Bem definida. O recorte na carta, reproduzido ponto a ponto no monitor
redondo do radar de navegação, o velhinho Decca 974. Tal uma, tal outro.
Fizemos manobras com os
belgas que nos acompanhavam desde Lisboa. Interrompidas enquanto estivemos em
Cabo Verde e na Guiné, terminaram ao fazerem-se ao Zaire. Uns quantos navios. O
‘Kamina’ era o combóio. Alguns draga-minas belgas e nós, integrávamos a
cobertura. Não sei qual terá sido o eufemismo para submarino. Foz do Zaire e
costa adjacente, foram o palco final das manobras. Seguimos para Luanda. Dias
depois voltámos. Fundeámos em Santo António do Zaire e Cabinda, onde a Diogo
Gomes perdeu o ferro de estibordo, razão porque não subiu o rio até Nóqui. Foi
só até Boma e voltou a Luanda para recolher um ferro emprestado, do Carvalho
Araújo.
Entrados no Zaire fomos
atracar no cais de Boma, na margem direita, no Congo Belga.
Extensão suficiente de rio
para que o atrito da suspensão ferrosa na água tivesse deixado os cascos limpos
de caramujo, luzidios, prontos para serem pintados.
Houve alguns eventos sociais,
para rematar o êxito das operações, como de costume.
Fez-se um jogo de futebol,
entre portugueses e belgas. Perdemos por 2 a 1. Em disputa uma enorme taça.
Quando com as equipas
formadas para a cerimónia de entrega do prémio e os capitães lado a lado me preparava
para aplaudir o adversário, o Chefe Militar belga fez menção de me entregar a
taça. Balbuciei umas palavras de recusa, insinuei com um gesto de mãos que a
entregasse ao vencedor, mas o senhor tinha-a fisgada. Lancei um olhar de
socorro ao Comandante Naval de Angola de pé na tribuna que me fez um sinal de
assentimento.
Muito obediente, recebi a
taça que tinha perdido. Em tais apuros e num francês exaurido pela falta de
uso, nem imagino os termos em que me terei mostrado agradecido. Uma cena algo
surreal.
Dali fomos - taça passando de
mão em mão - visitar a fábrica de cerveja Primus. E foi um troféu cheio e bem
pesado que pus à boca para início da rodada cervejeira. Alegria a rodos.
Excessiva nalguns casos.
Em Luanda, fizemos o nosso
estágio de hidrografia.
Lá teremos deixado modesto
contributo para o levantamento de um canto do porto.
Julgo ter sido a descer esta
costa, que uma tarde, o comandante se mostrou na ponte e interpelou um dos dois
guarda-marinhas de quarto, que calhou fosse eu:
- Ó guarda-marinha… qual é o rumo?
- Um nove três, senhor comandante.
- Bem me parecia… bem me parecia! – comentou com ar sabedor, depois de humedecer o
indicador nos lábios e expô-lo espetado
à aragem.
Este nosso camarada era um
pândego que tendo sabido rodear-se de uma guarnição de oficiais de muito
mérito fez da viagem um cruzeiro de férias. Nada gabarola, exibia-se para os
mais novos:
- Debaixo deste cadáver já passaram mais de duas mil mulheres!
Aterrámos em quase tudo que é
baía na costa angolana.
Nunca mais atingíamos o escalão
superior do subsídio de embarque.
Mas lá chegámos à União
Sul-Africana. Fomos para a base naval de Simmonstown, onde atracámos quase
noite. Noite, que varei em Cape-Town, a 25 milhas , por terra. E
que narrada, daria só por si um romance. Um dia conto, se perder a vergonha.
Foi tão mau, que se calhar não perco.
Aqui, nos mares que os nossos
maiores romperam e com cujos Adamastores partilharam segredos e mitos, éramos
esperados para participação num conjunto de exercícios designados CAPEX 59. Mais
exigentes do que os tidos com os belgas. Uns quantos navios sul-africanos, nós
e duas fragatas inglesas: Linx e Leopard. A esta última foi imposta uma
quarentena e acabou por não participar.
Escalámos Durban. E também
Port Elizabeth. A “Diogo Gomes” foi a East London em vez.
Ficaram-me nos olhos pelo
inusitado, os casacos de cores vivas às risquinhas que os muitos madeirenses
que simpàticamente nos convidavam, usavam nos clubes. Com os emblemas sobre o
bolso, autenticavam a ascensão na escala social e o sucesso da sua aventura.
Sempre pronto para novas
tecnologias, em Cape Town encantei-me num pequenino receptor de rádio
transistorizado que cabia na algibeira do casaco. Novidade absoluta. Comprei-o
por onze libras. Uma fortuna para guarda-marinha. Ainda o tenho. E se calhar funciona.
Lourenço Marques foi uma
surpresa. Mas senti-me mais em casa na Beira.
Com familiares em ambas as
cidades, os primos 'coca-colas' ofenderam-se com a preferência.
Da Ponta do Ouro a Palma,
onde os navios puderam entrar, entraram.
Futebol e basquete foram
pretextos de aproximação às populações. Visitas a fazendas e fartas comezàinas,
igualmente. Lembro-me de uma bruta basquetebolada no pavilhão do Malhangalene,
mas já não sei contra quem jogámos.
Ao longo da viagem, o
contacto com as populações foi sempre aturado. Tornou-se-me visível um
tratamento mais negativamente descriminado para com os nativos de Moçambique,
relativamente aos de outras paragens sob administração nossa. Concisamente…
mais racista.
É certo que o general De
Gaulle oferecera dois meses antes a autodeterminação à Argélia e que o Ghana já
era independente desde 1957. Mas as lutas independentistas permaneciam apenas
latentes; e quem nesse tempo viajasse por África (quase toda), fá-lo-ia com inteiro
à-vontade. Moçambique não fugia à regra – para a banja de Mueda faltavam ainda
sete meses. Por essas e outras razões, as nossas incursões por terra adentro
eram de todo desatentas à coisa política. Um pouco menos à realidade social.
A Primavera meridional ia a meio.
Foi por esse tempo que
avistámos a Ilha de Mafamede, escolhida pelo
sultão Hassane para sua sepultura.
Com a ilha do sultão na esteira,
as fragatas Diogo Gomes e Nuno Tristão, cruzaram a barra no preia-mar, que os
fundos são baixos e o diabo tece-as; e torcendo e retorcendo rumos, entre bóias
e sapais chegaram frente à Vila de António Enes e fundearam. A terra já antes
fora Angoche e tornou a sê-lo depois da independência, mas nem portugueses nem
moçambicanos lhe conseguem acertar com o nome: Parapato, que é como lhe chamam
os naturais.
Caras escanhoadas e ardentes
de Acqua Velva ou barbas aparadas com rigor geométrico (era a primeira vez que as
podíamos deixar crescer), banhos tomados a correr, na pouca água que a aguada deixava
ainda escorrer, mal secos, que melhor não se podia, tal a humidade, vestimo-nos
com roupa adequada ao trópico. E com a ansiedade costumeira aguardámos a hora
das licenças, desta vez mais cedo.
Nas águas calmas do porto, o
pequeno escaler a motor, ‘gasolino’, como lhe chamava o estado-menor, navegou bem
apainelado e com todos os sinais da Ordenança, mas ronceiro, para a ponte-cais.
Azar! A água já escorrera, ocorria
o baixa-mar e ficámos distantes. Entre nós e a ponte… só matope.
Mas a mais primária solução
aguardava-nos atenta e apresentou-se.
E foi sobre alguns ombros, à
vista bem pouco atléticos, disponíveis na mira de uma quinhenta, que com o seu
quê de ridículo nos deixámos levar.
Mal dotado para equilíbrios,
a cada momento preocupado em não cair, perdi com pena minha, a visão decerto
risível, de uns quantos pares de pernas pretas engolidas pelo matope, trôpegas
do peso acrescido, num vaivém lento e desengonçado entre a embarcação e terra
firme; e anormalmente longe das pernas, mãos brancas, enclavinhadas umas sobre
carapinhas, agitadas outras, frenéticas, tentando firmar-se no ar, ondulando
tudo numa coreografia de bailado burlesco.
Com surpresa nossa, ninguém
caiu.
A vila era pequena.
Começámos por ir ver o campo
de futebol, onde pouco depois jogaríamos uma partida com a equipa do burgo. Era
um rectângulo de areia solta delimitado por uma espécie de corrimão de madeira,
pregado sobre espeques, por sua vez espetados no solo. O raro casario contígüo
fazia adivinhar uma urbanização que começava a desenhar-se. Assim foi anos mais
tarde. E ao campo de futebol foi destinada a incumbência de jardim.
Conhecida a arena,
dispersámo-nos, cada um em busca do seu ângulo próprio de conhecimento mais
detalhado da povoação.
Não sei o número de ordem do
sentido peculiar usado pelos homens do mar em busca dos locais que
conscientemente ou não desejam encontrar. Certo é, que uma vez o pé em terra,
não tardam a ser vistos nos Cais de Sodré e Bairros Altos dos chãos que
calcorreiam.
Nos meus saüdáveis quase
vinte e três anos e após não sei quantos dias de mar, mal dei por mim estava no
Ingúri.
O bairro não tinha ainda o
aspecto ordenado, ortogonal, que um administrador lhe deu nos anos sessenta.
Era um granel de cubatas sem
rei nem roque, onde só por sorte nos orientávamos.
Que Dédalos terá arquitectado
o intrincado labirinto de cubatas que fazia o Ingúri, é uma dúvida que flutuará
para sempre no mar das minhas ignorâncias. Mas quero crer que o desenho
radicava na noção dos 'Qasbah', que ali chegara pelo convívio aturado com os comerciantes
árabes, que além de mercadoria levaram o Alcorão aos macuas.
Na altura não me detive na
busca de razões para o desenho daquele aglomerado. Tampouco para a fé
professada pelos moradores. Ou para ser mais preciso, pelas moradoras.
E numa palhota escolhida a
esmo entre as que me pareceram adequadas, fui durante algum tempo visita bem
recebida e benquista. Tempo esse, em que a ampulheta não funcionou. Não a
virei.
Mal medido o tempo gasto e o
caminho caminhado, encetei o regresso a correr, única maneira de chegar a horas
ao jogo. Ocorreu-me afinal, que tinha um relógio no pulso. E corri, corri…
tendo de parar amiúde para retomar fôlego. Claro.
Não era um habilidoso p’ró
futebol. A bola, às vezes, até me atrapalhava um pouco. Devia à velocidade e ao pontapé violento, a
ponta-direita que ocupava na equipa.
Velocidade e pontapé violento,
os mesmos que ‘Os Balantas’ da Guiné viram, para o convite mais tarde feito para
jogar por eles.
Mas voltemos à desabalada
corrida para o jogo de futebol.
Foi ainda entre palhotas, que
um dos pés – que toda a vida me têm traído – mal posto sobre um sulco que a
chuva cavara, me atirou ao chão. Escabujei, gemi, impei… temi a necessidade sem
apêlo de gritar pela ajuda de alguém. Mas quis a sorte que a torcedura não
tivesse sido tão violenta quanto parecera e acabei por poder levantar-me. A
custo, inicialmente a muito custo, lá me arrastei, mancando, direito ao centro
da vila.
Assisti ao resto do jogo
apoiado à vedação. Melhor assim.
Ainda bem que não pude jogar.
Mesmo sem a queda, que poderia ter feito em campo?
Teria sido um fracasso.
Senti isso com uma evidência
tal, que recebi a entorse como um providencial acaso.
É que, meus caros, parte
grande da minha energia, porventura a mais rica, tinha-a deixado naquela bela e
enigmática moça macua que tão bem me acolhera… e me iniciara nos mistérios do
Parapato.
José Guerreiro
Fuzeta, 14 de Julho de 2013