O meu quarteirão
Ataíde de Oliveira e Antero de Quental – duas ruas e uma
travessa em forma de éle – desenham o quadrado quase perfeito, do quarteirão
onde morei até aos nove anos. Uma dezena de fogos, cujos quintais convergiam num
poço de onde se tirava água a balde.
Pouco saía de casa. Minha mãe, não queria que o menino se
misturasse com a garotada mais sôlta, que, com algum desdém, apelidava de môços-da-rua.
De vez em quando, lá me era permitido pôr o nariz de fora, sentado ao poial da
porta. Esgueirava-me logo que a via distraída, para olhar em redòr. Curioso, cirandava
à volta do quarteirão, registando tudo. Esta falta de liberdade junto a casa,
não colidia com as longas caminhadas – quantas vezes corridas – para executar
mandados, sob contrôlo de tempo. Teria cinco anos, quando comecei a ser
incumbido de ir à praça, fazer uma ou outra compra: no talho do Rudolfo, pedia carne
de vaca; e do Brito, por 5$40 trazia meio-quilo de carneiro da perna. Mais
tarde, aí pelos sete anos de idade, passei a ter mais espaço nas imediações de
casa, que nunca desperdicei para aprender mais. Nem mesmo quando, tendo falhado
a pontaria ao atirar uma pedra (não sei para onde), parti a vidraça de uma
janela da casa do Transmontano.
Na porta ao lado, onde morava o Felício, quase nada
acontecia, mas mais abaixo, à esquina, numa janela dos Leote podia aparecer a
Cilinha, que me dava trôco às conversas acriançadas.
Se a seguir encontrava Dona Joaquina Camões, o diálogo
tornava-se quase adulto e agradava-me sobretudo a sua atitude protectora, que um
dia chegou a ter expressão real. Estava eu de cama, com febre alta e numa
conversa através do poço, minha mãe lamentava-se de me ver piorar, ao invés da
previsão do médico que pouco antes me observara. Perante os sintomas relatados
e com a experiência de mãe de cinco filhos, Dona Joaquina foi peremptória: o menino tem garrotilho. Forçou uma
segunda visita do médico, que foi obrigado a converter em difteria a gripe que,
sem me ter feito abrir a boca, diagnosticara antes. Duas enormes ampôlas de
sôro anti-diftérico espetadas na barriga e fui salvo quando o inchaço das
amígadalas já pouco ar deixava passar. Eternamente agradecido, Dona Joaquina.
Logo a seguir, outra esquina, onde morava o Eduardinho Pité.
Chamava-o. Do canto em frente aparecia também o Arsénio; e ali nos entretínhamos
a comentar os feitos do Cuto no último Mosquito, ou a jogar ao berlinde, cheios
de pena por não termos carôlos, as cobiçadas esferas de aço dos rolamentos. Como
consôlo tirávamos da algibeira, o nosso melhor abafador. Nem sempre lhes batia
à porta. Dava-lhes sinal com o som de uma gaita de cana que gostava muito de
fazer. À vista de um canavial não resistia a tirar uma cana. Sem canivete,
usava uma faca bem afiada, separava um pedaço com o comprimento de dois nós, com
uma linha atava um bocadinho de papel de sêda bem esticado num extremo aberto,
soprava em pequena abertura praticada no redondo junto ao outro lado e
deliciava-me com o som roufenho que conseguia, em harmonia com as cantigas na
moda.
Habitualmente fechada, a casa ao lado dava abrigo a duas
irmãs entradas em anos, a Dona Emília que tomava conta da irmã mais nova, fraca
de cabeça, no queixo um tufo de pêlos semelhante à barbicha de um chibo e a quem
errada e maldosamente chamavam Carlos
Quinto.
Defronte, no outro lado da rua, em mais um rés-do chão,
vivia o Osvaldo Patrocínio, de quem viria a ser companheiro na Marinha.
Dali até à esquina apenas uma comprida parede caiada de
branco, que a malta, com insistência, teimava em sujar com o vermelho da terra
do solo. É que aquela parede, do quintal do Senhor Faílde, era a tabela usada
dia a dia para pontapear uma bola de trapo, o maior número de vezes, sem que
fôsse ao chão. Fazer uma daquelas bolas, arte muito considerada, era tarefa que
cabia apenas aos eleitos, que além de arranjarem meias de malha de sêda de
senhora para o enchimento, sabiam acabar o esférico com um cu-de-galinha bem
feito e uma costura disfarçada. Eram os Vinhas, o Lòpinhos, o Leonardo
Transmontano, algum O’Brien de Oliveira, o Felício, talvez o Jorge Aleixo, os
artistas que se esmeravam a exibir os dotes para o pontapé. Eu e os mais novos,
olhávamos cobiçòsos, tanto saber.
À distância da largura da rua no lado norte da Antero de
Quental vivia a família Machado. Com tempo bonançoso, depois do jantar, íamos
amiúde, eu e minha mãe, seroar a casa de Dona Maria Machado – a Mamã – cuja
neta, Natália, foi a minha primeira amiga, responsável porque tivesse sido com
bonecas que primeiro brinquei, enquanto à volta se cosia, fazia croché,
tricotava ou bordava. Cedo me foram familiares, termos como cerzir, ponto-cruz
ou ponto pé-de-flor.
No outro lado da travessa, uma esquina vazia de casas, mas
atulhada de restos de cantaria de anteriores construções, onde reinavam
urtigas, incapazes de deter o fascínio que ali nos agarrava em brincadeiras
inventadas na hora. Mexer na terra era uma atracção.
A seguir era a casa dos O’Brien, três ou quatro irmãos – o
mais novo, meu condiscípulo – renomados caçadores de pássaros, que me passavam
à porta, armações de arame à cinta, enfeitada no regresso, com inúmeros
passarinhos – mortos ao engôdo das agúdias esperneando espetadas no fino gancho-travão
das armadilhas – pendurados, prontos para a fritada.
Depois vinha a casa do Joaquim Ventura – também meu companheiro
de escola – com quem ia brincar – com êle e com a irmã, Elsa, chegando mesmo,
se era hora disso, a sentar-me à mesa e partilhar das viandas – em segrêdo, que
minha mãe me recomendava não comer fora de casa.
Entre esta morada e a minha, noutra esquina morava o Capitão
Santana. No começo da carreira militar dormia na tarimba mas com tempo,
ascendeu aos três galões dourados. Barlaventino, teria ao tempo, cinqüenta e
poucos anos, era casado com Dona Adozinda e tinham duas filhas: a Fernanda e a
Maria José.
Estas duas meninas, rigorosamente vestidas de estudantes –
capa e batina – levaram-me teria uns seis anitos, ao meu primeiro baile, no
ginásio do liceu velho. Sei que minha mãe se esmerou a ataviar-me, recordo-me
de caminhar entre as duas irmãs e do ondular das capas sobre a minha cara com o
vento soprando no espaço aberto entre as ruínas e os eucaliptos do caminho até ao
ginásio, tapando-me os olhos, mal me deixando ver onde punha os pés, mas ficam
por aqui as minhas lembranças. Entre gente a quem dava pela cinta, que terei
andado por ali a fazer, noite dentro?
Pouco depois, o Capitão Santana – segurando vela – e a avó
Francisquinha, apadrinharam minha irmã, baptizada na Sé.
Casa e quintal, desta família, ocupavam maior área do que
qualquer outro fogo no quarteirão. Havia pequenos hortejos cultivados, uma frondosa
figueira que deitava ramadas para o meu quintal e uma parreira que amarinhava
parede acima, para dar sombra e uvas em pequena varanda do primeiro andar falso
das traseiras.
A casa tinha aspecto sólido e estava pintada de uma cor
arroxeada que a individualizava. Mas, estatuto mesmo, era-lhe dado pelo marco
do correio postado à esquina bem junto da aresta entre as duas ruas. Só alguém que
fôsse importante teria o correio à porta, pensava eu. Visitava muito aquele
marco, sabia-lhe os detalhes; e se apanhava o carteiro na recolha das cartas,
não me dispensava de ir espreitar e vê-lo por dentro.
A guerra, inicialmente tão favorável à Alemanha, mostrava-se
agora com vantagem para os aliados. Dando-nos conta do seu curso, chegavam com
freqüência, via postal, maços de folhas de papel de um conspícuo azul-irritante,
abarrotadas de notícias. Em minha casa como na do Capitão Santana, a sua
leitura não suscitava muito interêsse, já que grande parte continuava dentro
dos envelopes e repousava sôbre móveis ou jazia pelo chão. Eram mais chamativas
as fotografias que enchiam inúmeras revistas recebidas, de blindados a porta-aviões, couraçados e
cruzadores, fortalezas-voadoras, homens em uniforme, peças de artilharia
fazendo fôgo, esteiras de fumo de aviões em queda, numa escolha bem feita pela propaganda
aliada que exibia as suas vitórias e conseguia repôr um nível esperançoso de
paz, onde ainda havia pouco o futuro era nublado.
À boca da noite, a BBC dava uma emissão em Português,
naturalmente preenchida na totalidade com os sucessos da guerra. Acontecia, por
vezes, estar a essa hora a fazer o papel de menino da casa, Dona Adozinda dera-me
de jantar – decerto com o aval de Dona Maria José – e eu feito gente, fazia
companhia ao senhor, ambos sentados em meiples, lado a lado.
Intrigava-me muito, aquele luminoso olho redondo verde mutante
que o ajudava a encontrar a melhor posição do ponteiro da telefonia para ouvir
as notícias. Operação de rigor, demorada, vagarosa, que aquela mão sapuda,
levava a cabo com o maior cuidado e alguma destreza. Depois, puxava do livro de
mortalhas, tirava uma, ajeitava-a, abria a onça, onde com dificuldade os dedos
entravam para trazer tabaco e com paciência estendia-o no papel. Achado
suficiente, enrolava-o (com pouco jeito), passava a língua pela cola e estava
feito. Mas, valha a verdade, o resultado, mais do que um cigarro, era um canudo
de papel de mortalha, amassado, tôrto e mal cheio. Levado à boca, entre um
lábio superior enfeitado com uns quantos pêlos grisalhos e uma longa e
estendida beiça inferior pedinchona, chegava-lhe finalmente o lume de um
fósforo.
Ia observando atentamente todo este ritual – tão diferente
do que via em meu pai, limitado a tirar um cigarro do maço de Paris – como diferente era o cheiro,
mais intenso das irrequietas volutas de fumo em que se comprazia o meu
companheiro de serão.
Era então, pronto para o noticiário, que o Capitão Santana,
algo mouco, encostava o ouvido ao som e num silêncio atento, acompanhava a
guerra.
Mas, o cansaço do dia, a digestão do jantar e uma
predisposição natural, levavam-no direitinho ao sono. Obeso e flácido,
comprimido na farda de cotim, apertado entre cinturão e talabarte, não tardava
a cair num brando e mudo ressonar.
A face e a larga papada despejadas sobre o peito, a bòcha
espreitando entre as abas do dólman, beata entre os beiços, apagada à míngua de
tabaco e molhada da baba escorrida pelo canto da boca, acentuados papos sob os
olhos cerrados… um retrato de repousada satisfação, reproduzia no Capitão
Santana, a bem-aventurança de um Buda vizinho e amigo que fumasse.
– É tempo de ir para
casa e dormir também!
José Guerreiro
Calvaria, 9 de Agosto de 2017