Os olhos e o dinheiro
Os olhos
Tinha doze anos quando um oftalmologista esteve no Lubango a
examinar os olhos da malta do liceu. Calhou-me em sorte uma miopia incipiente
que o tempo agravou e quase me impediu de entrar na Escola Naval.
O uso aturado e intenso que fiz dos olhos a bordo da ‘Diogo
Gomes’ nos primeiros meses de 1962, a descortinar as marcas de navegação nas
margens dos rios da Guiné, que a distância tornava minúsculas, tornou-me mais
pitosga ainda.
Ao chegar a António Enes a potência das lentes já rondava
três dioptrias.
Ignorei quanto pude a desvantagem da má visão e desde cedo
me tornei um amante de cinema. O prazer colhido desse passatempo era maior nas
grandes salas, equipadas com boas máquinas e telas enormes, mas os magros
trocos no bolso obrigavam-me aos cinemas de repetição, onde por metade do
dinheiro via dois filmes. Em Lisboa, era pelos Lys, Rex, Royal, Chiado Térrasse
e Imperial que consumia as tardes, em primeiras ou segundas màtinés e não
poucas vezes nas duas. Estudante muito aplicado… Procurava sentar-me em
cadeiras vagas nas filas da frente para ver melhor. No Imperial, ali à Praça do
Chile, onde a projecção era uma penumbra tão baça que mais parecia feita a
velas de estearina, era poiso mandatório.
Pois foi uma versão refinada do Imperial que fui encontrar
em António Enes, tal a pobreza da fonte luminosa. Com um senão adicional: em
fitas importadas fora do circuito normal, por vezes o celulóide não trazia legendas
impressas. Eram projectadas separadamente por uma maquineta onde se metia um
rôlo de papel mal transparente, com a tradução dactilografada das falas, que um
seguidor do enrêdo fazia rodar à manivela.
Numa noite em que faltou o artista manivelador, pediram-me
que fosse substitui-lo. O filme era falado em inglês. Com algum receio embora,
acedi, confiante no meu suficiente saber do idioma. Melhor fôra ter valorizado
o receio. Não era fácil; e os meus conhecimentos não eram afinal tão apropriados.
A certa altura perdi-me. Não sei se adiantado ou atrasado, o que é certo é que
por um compridíssimo minuto andei às aranhas fazendo rolar o texto p’rá frente
e p'ra trás. Grande barraca!
Era pois na primeira fila da sala de cinema do Clube
Recreativo que me sentava, a pequena distância das imagens, em rústicos bancos de
pau, grandes, pesados e largueirões, onde podia esparramar-me à vontade. Teria
menos confôrto, mas via melhor. E via primeiro!...
Não contava com a numerosa freguesia que disputava os
lugares, quase sempre vazios em outras salas de cinema, mas não naquela. Tampouco
os aficionados do local esperariam ver-me ali, como pude aperceber-me pelos
olhares oblíqüos que me faziam sentir. Mas em pouco tempo éramos sócios da
mesma sociedade.
O dinheiro
Depois de três anos na ‘Gago Coutinho’, de regresso a Lisboa
logo após termos integrado a Stanavforlant, fui nomeado para os Serviços de
Marinha de Moçambique a que tinha concorrido; e na primeira quinzena de Outubro
de 1970 estávamos em António Enes. Satisfez-me saber que ganharia melhor, pois
a coisa ia malíssima: acabado o salário mensal crescia sempre uma semana. Já me
tinha socorrido de empréstimos da Cooperativa Militar e dos Serviços Sociais
das Forças Armadas que andava a pagar com dificuldade. Havia parte da cabeça
dedicada em exclusivo a fazer contas, tão exclusivamente que doía sentir-me
feliz.
Tudo pareceu mais luminoso, quando a dias da partida se
soube estar aprazado para aquele mesmo mês de Outubro o tão desejado e sempre
adiado aumento dos ordenados. Um primeiro-tenente passaria a ter sete contos
por mês em vez dos já rançosos quatro contos e quinhentos. Aumento considerável
que era o reconhecimento da penúria em que vivíamos.
A grande surpresa tive-a já em Moçambique ao perceber que o
decantado aumento era apenas para a Metrópole - só se estendeu ao restante país
em 1972.
A descriminação fez crescer de tal modo o descontentamento
que um camarada em serviço em Nacala, ao constatar que os dois pilotos sobre
que tinha competência disciplinar - mais uma vez aumentados entretanto -
passavam a vencer três vezes mais do que ele, sentiu de tal modo a indignidade
do tratamento dado à função que sem mais estôfo, se auto-suspendeu. Essa a
razão porque , por ordem de Lourenço Marques, acumulei durante três meses
Nacala e António Enes.
É certo que havia complementos financeiros – emolumentos – que
me permitiram melhorar o padrão de vida e facilitar o pagamento dos
empréstimos. Também, se assim não fôra…
Finalmente recebia mais do que gastava, uma sensação tão nova,
surpreendente e saborosa que me prometi nunca mais recorrer a ajudas que não
pudesse vir a cobrir. Assim tem sido. Passei a ter algum respeito pelo
dinheiro, não lhe dando grande confiança. Trato-o com distanciamento mas sem
sobranceria. Temo-nos dado bem, muito por graça da vida modesta que levo. Mas no
hoje de 2015, agora não com a aspereza fria do cifrão do escudo, as arestas
cada vez mais vivas do euro simbólico de uma nova era por cumprir, já arranham
a doer. Parece haver indícios – dizem alguns – de que a curva tende a
inflectir…
Os olhos e o dinheiro
As incumbências administrativas na Capitania cabiam ao
Escrivão, o Senhor Francisco Sales, figura serena, impenetrável , de olhar
esquivo, rigoroso na função e cioso desse rigor. Sempre a tempo, sempre sem
falhas, respeitando a compartimentação de verbas tanto como o químico azul e o
lápis de tinta, processava tudo o que de papel se tratasse. Era o caso do papel-moeda.
Depois dos cálculos feitos, metia em envelopes apropriados as notas e moedas
vencidas por cada um em cada mês.
Num dia de um fim de mês deu-me o envelope que me cabia. Na
pauta impressa no rosto, entre tracejados e sublinhados, estavam os números de
deve e haver que a caligrafia muito cèrtinha do Senhor Sales ali deixara.
Vi quanto era, achei bem, dobrei o envelope e meti-o num
bolso de trás das calças.
Corria um filme de aventuras que não escolheria se acaso
houvesse escolha, mas decidi-me por vê-lo. À excepção dos ensaios de teatro, em
que ambos nos empenhávamos, minha mulher só muito de quando em quando me
acompanhava ao clube; e não lhe interessando o filme que era mesmo de pouco
interêsse, iria mais uma vez sòzinho.
Depois do jantar – nesse tempo jantava - caminhei até ao clube e na esquina da varanda sentei-me a uma mesa onde havia
parceiros para o dominó. Pedi café, um càlicezinho de aguardente e encetámos a
partida. Carrão na mesa. Sempre com graça, os mirones não desperdiçavam a
ocasião para dichotes mordazes. Como viam as pedras de todos, armavam-se em espertos.
Desde que não revelassem o assassino… era deixá-los.
Entrei pouco antes da sessão e tive vaga mesmo ao centro da
primeira fila. Passei o lenço pelas lentes antes de pôr os óculos, ajustei o
corpo à dureza da madeira, recostei-me quanto pude, tentei alhear-me das bocas
da geral e esperei pelo filme.
Deve ter havido um mau da fita, uma vestal e um herói, como
vem nos manuais… não me lembro. Barulho, sim, muito. Descabelamentos houve, porque
apareceu uma sabida a disputar o rapaz. Muita punhada, muito amor e ódio. Em
suma, um produto classe B, do pior.
Primeira infância todos temos. À segunda nem sempre se
escapa. Vítima disso, era-me impossível não fazer côro, ainda que surdo, com as
exclamações gritadas pelos cinéfilos mais entusiasmados com a acção, tomando
partido a cada murro, a cada cambalhota, a cada pontapé. Sentado a poucos
metros do pano, fustigado pela insinuante pontuação musical, sujeitado o banco ao desencontro de ritmo com
que cada um vivia as imagens, empurrava-me contra o encôsto, ou recostava-me sobre
o assento, gesticulando também eu, ao sabor do desenrôlo.
Sòzinho, que em direcção ao mar quase ninguém ia àquela hora,
gastei devagar os pouco mais de cinqüenta metros de distância a casa e fui
encontrar minha mulher inda desperta.
Com preguiça, sentindo o sono que chegava, foi com todo o
ripanço que me dei aos preparos para a cama. Ao pousar as calças nas costas da
cadeira lembrei-me de ter recebido o patacão.
Todo lampeiro, sempre a idear
gastos para além das posses, joguei mão ao bolso a buscar o envelope.
Não estava. Bolso vazio!
- Deve ter caído no
chão ao virar as calças… - Nada!
Rápida busca por todas as algibeiras… nada. Tentei manter-me
sereno.
- Será que ficou na
Capitania? Não. Lembro-me perfeitamente de o ter pôsto no bôlso direito de
trás, onde habitualmente anda o dinheiro pequeno - Só que desta vez era grande…
Cada cabeça tem a sua maneira própria de reagir à
desfortuna. Eu… fiquei sêco.
Ninguém iria passar fome, mas perder o ganho de um mês não é
receita que algum médico se atreva a passar para aumentar a tensão, fazer latejar
as fontes ou – se fôr preciso - acelerar as batidas do coração. Com todos estes
sintomas, consegui mesmo assim manter a cabeça fria, não sem a sensação de
derrota daquele bolso vazio e a necessidade de extemporâneas e profundas
inspirações de ar para acalmia e reposição de ritmo.
- No cinema??? Talvez
no cinema.
Vesti-me e saí. No clube, a porta do cinema estava entreaberta.
Sob luz mortiça, um homem varria o chão com pachôrra. Falei-lhe, disse ao que
ia e estuguei o passo.
Renasceu-me a alma!
Olhando-me com reprovador ar de abandono, lá estava o
envelope saltarico.
Ufa!!! … Que grande alívio!
José
Guerreiro
CLV, 1 de Julho
de 2015