19.12.12

Entre Macuas

Habituados que estavam a suar naquela quadra, ainda se surpreendiam com o frio, em visita ao Natal que se aproximava. Despojados de conforto, desiludidos da vida que os empurrara para uma terra que muitos não conheciam e outros já pouco lembravam, carecidos de meios e de afectos, alguns mesmo vítimas de desafectos familiares – já que antes tinham tido os pretos a trabalhar por eles, agora que se amanhassem – resolveram amparar-se, reünindo-se. Aquela primeira reünião de naturais e ex-residentes em António Enes foi isso mesmo, a necessidade de serem iguais na desfortuna, de exorcizarem os seus males falando com alguém que entendesse a sua linguagem, enfim, um muro de lamentações.


Resultou. Gente que mal se conhecia tornou-se amiga. Criaram-se laços, cumplicidades, companheirismo. De tal modo, que desde o histórico  primeiro convívio no Grande Hotel da Curia, em 18 e 19 de Dezembro de 1976, o evento, que passou a ser celebrado na primeira quinzena de Outubro, já passou por vários poisos – Figueira da Foz, Vila Caia (Mira), Praia de Mira e de novo Mira, desde 2003, agora no Hotel Quinta da Lagoa, onde há dias decorreu a trigésima quarta reünião.

Ao longo de tantos anos, muitos morreram. São lembrados em cada ano na missa que também enforma o convívio. São-no ainda em o ‘Macua’ o apropriado nome de baptismo da revista que resume no papel, em escritos e fotografias - além de memórias - o curso dos saraus. Entretanto, a descendência, acompanhando pais e avós, aparece nas festas, dá-lhes alarido e alegria e vai ganhando esporas de natural ou ex-residente sem mesmo bem saber onde fica África.

A ‘trintiquátrima’ reünião teve cartas novas no baralho. Naturais de Angoche, vieram de Moçambique e engrossaram as hostes. Apresentou-mos um moço que foi meu aluno de matemática no velho Colégio de S. João de Brito, professorado quase inerente ao cargo de Capitão do Porto. Tivemos uma conversa agradável, recordámos conhecimentos comuns e ‘politicámos’ um pouco. Até que um deles, Naíta Ussene, me pediu um esclarecimento: ‘Porque se chama Rosa Coutinho ao cais de Angoche?’. Disse-lhe quanto sabia e fiquei de o escrever para eventual publicação no semanário moçambicano independente ‘Savana’. Sendo que o tema pode também interessar o ‘Macua’, aqui vai para os dois:

Esporão ‘Comandante Rosa Coutinho’



Em 1976 voltou a chamar-se Angoche (nome roubado ao arquipélago) após alguns anos de homenagem ao Comissário-Régio António Enes. Mas já antes de ser cidade ou sequer vila, fora conhecida por Parapato, o nome com que as gentes das ilhas à volta, ainda apontam o burgo.
Com este ou outro nome, quando por lá estive, a cidade, além das indústrias de descasque de caju e arroz, vivia de comércio e serviços e de duas riquezas principais: exportação de castanha de caju em bruto e captura de camarão, em grande parte exportado também. Chegavam vazios, ‘on hire’ (em aluguer), os navios-castanheiros que levavam a castanha para as índias. Com calado mínimo, entravam na barra com facilidade. As datas eram porém estudadas de modo a propiciar que depois de carregados houvesse sem perda de tempo marés com altura de água suficiente para a saída. Fundeavam no porto e recebiam a castanha de caju em sacos estivados sobre chatas quadradas de madeira, de fortíssima estrutura, onde chegavam à cabeça de carregadores



Havia uns quantos rebocadores que faziam o vai-vem entre o cais de acostagem das chatas e os navios-castanheiros, cais que ficava pequeno no pique da época da castanha. Com o aumento da frota pesqueira dedicada ao camarão, sentiu-se necessidade de ter maior área de atracação e surgiu a ideia de um novo cais, com menor dependência do regime de marés. Alfaro Cardoso, Administrador e Presidente da Câmara tornou-se entusiasta do projecto. Entre as consultas feitas pesou a opinião do capitão-de-fragata Rosa Coutinho, brilhante e dinâmico profissional, engenheiro hidrógrafo que chefiava as dragagens de Moçambique. Negociada com a Sena Sugar Estates a aquisição do velho navio-pontão ‘Anthea’, de 77 metros de comprimento, 11 de boca e fundo chato adequado ao fim em vista, 


o Comandante Rosa Coutinho assumiu a direcção da obra.

Foi em 1971, não recordo quando. Fixado o navio na posição estudada, subimos a bordo por uma escada de quebra-costas, Rosa Coutinho e eu. Os dois sòzinhos. Verificado que tudo estava em ordem, foi chamada e aproximou-se, uma draga de sucção de grande potência, disponibilizada pelo Serviço de Dragagens, que sugando de longe, passou a jorrar o dragado – água e areia – primeiro num, depois noutro dos porões abertos do Anthea. Ainda que o caudal fosse imenso, os minutos arrastaram-se por mais de uma hora até que começasse a adornar para bombordo. Inclinou-se mais e mais e mais, o casco tocou o fundo pela região de encolamento e a embarcação, endireitando-se lentamente, assentou completamente e ficou onde ainda está. Escoada a água pelas válvulas abertas, no fim restou um navio cheio de areia, a nova ponte-cais, a que faltava apenas a ligação a terra. Mais uma vez a draga, depositou areia durante dias a fio sobre o desenho do esporão, que as máquinas em terra  foram movimentando e compactando.

Alojado na residência do Administrador do Concelho, Rosa Coutinho viveu em António Enes por um bom par de meses. De sono breve, não conseguia sincronizar-se com o horário colonial de Alfaro Cardoso que se recolhia muito cedo e erguia mal acabada a madrugada. Procurava-me então e passávamos longas horas na conversa, temperada com umas ‘Laurentinas’ bem geladas, tornadas mais apetecidas ainda pelo camarão ou caranguejo postos na mesa, uma pequena mesa redonda na varanda interior que servia de sala, onde aparecia também o famoso môlho-ladrão, cujo segredo o Cândido, companheiro de teatrices, revelara a minha mulher, sob jura de silêncio. E quando por volta das duas horas eu não conseguia disfarçar um bocejo, despedíamo-nos com um até logo.

O saber, a disponibilidade, o dinamismo, a dedicação e o espírito de missão que Rosa Coutinho pôs ao serviço da cidade no planeamento e execução da obra, mereceram de Alfaro Cardoso e da sua Câmara a escolha do nome para o ‘Esporão Comandante Rosa Coutinho’.

Aqui tem, caro Naíta, a resposta à sua pergunta.

Mezena
18 de Outubro de 2012

1 comentário:

vieira calado disse...

Olá, como estás?
É só para te desejar e aos teus, um excelente Quadra Natalícia!

Forte abraço!