11.6.12



Lancha-canhoneira ‘Tete’

Navios de rodas

É como odómetro que um século antes de Cristo, a roda de pás aparece a primeira vez em navegação, mencionada pelo arquitecto e engenheiro romano Vitruvius, no seu legado de dez livros, “De Architectura”.

E a primeira menção da roda de pás aplicada à propulsão de embarcações, data de entre os séculos quarto ou quinto da nossa era, no tratado militar “De Rebus Bellicis”, da autoria de um anónimo. Refere máquinas de guerra usadas ao tempo pelos romanos e descreve um navio de guerra que navega impelido por rodas de pás movidas por bois.


No século XV, um engenheiro alemão anónimo, escreve sobre as Guerras Hussitas e regista em desenho um barco ali utilizado, que tem dois conjuntos de rodas-remos, um à proa e outro à popa, postos a girar pela força muscular levada pelas mãos a uma cambota.


Mas a força animal tem os dias contados. A máquina a vapor vem modificar tudo. Aplicada a rodas de pás com estrutura metálica, torna os barcos mais velozes e seguros. O uso de rodas laterais aumenta-lhes o até aí fraco governo. Tornar as rodas independentes e ter a possibilidade de usar apenas a roda de um bordo ou fazê-las girar a velocidades ou com sentidos diferentes dá aos barcos a manobrabilidade que lhes escasseava. A seguir, o uso de pás com comando do ângulo de ataque à água em que mergulham um terço do diâmetro da roda, dá mais flexibilidade a este tipo de propulsão. É assim que em águas de nenhuma ou pouca ondulação, os barcos de rodas de pás substituem os veleiros. Rios e lagos passam a ser o seu elemento natural. Não tendo que lutar contra o mar, as embarcações são desenhadas com o pouco calado necessário nas águas em que se movem, jogando os arquitectos com a boca e o comprimento. Não quer isto dizer que não houvesse barcos de rodas de pás a fazer navegação costeira. Houve mesmo quem se aventurasse a navegar em mar aberto mas as experiências não provaram bem.  

As duas fotografias seguintes mostram barcos fluviais: o primeiro, ‘Ben Campbell’, no século XIX, com duas rodas laterais; e o segundo, ‘Louisiana Star’, com roda de pás à popa, navegando já neste século XXI, em Hamburgo.




O hélice, cuja origem talvez tivesse sido o Antigo Egipto mas que foi na Velha China onde primeiro foi usado para impelir embarcações, faz uma reaparição em grande, através do engenheiro escocês James Watt que a aplica a uma máquina a vapor instalada num barco. A partir daí as rodas de pás perdem o futuro. O hélice é mais plástico, mais moldável, mais adaptável ao barco e à circunstância do meio onde se pretende utilizá-lo. Não obstante já estarmos no futuro… continua a haver barcos empurrados por pás fixadas em rodas.

Tive ocasião de navegar num, o ‘Mark Twain’. Foi em 1969, na ‘Disneyland’, na Califórnia. Fiz parte da primeira guarnição da fragata “Almirante Gago Coutinho”, que com a mana “Almirante Magalhães Corrêa”, se deslocou a S. Diego para homenagear o navegador português João Rodrigues Cabrilho que ali fez história. Para lembrar essa breve passeata colhi em diapositivo a imagem copiada abaixo.


Lanchas-canhoneiras

Com pouca gente para administrar tanta terra ainda mal desbravada, os rios são nas colónias, estradas já feitas e desimpedidas, para chegar às populações nativas que têm de fazer as suas aldeias perto de água. É assim que as lanchas-canhoneiras ganham importância política e militar. Terra adentro quanto os rios permitam, levam-lhes a nossa presença e o nosso patamar de civilização.

Inúmeros navios da nossa Armada usaram propulsão por roda de pás ou roda de água como também é conhecida. Pela sua evidente ligação  à gesta africana, incluo aqui, de entre os muitos listados em ‘ForumDefesa.com’, os nomes de algumas dessas primeiras embarcações, as lanchas-canhoneiras. Sejam eles, ‘Senna’, ‘Tette’, ‘Loge’, ‘Nóqui’, ‘Cherim’, ‘Cuama’,  ‘Maravi’,  ‘Flexa’, ‘Zagaia’, ‘Cassine’… Do mesmo ‘ForumDefesa.com’, aparecerão mais à frente vários desenhos-silhueta dos navios e suas características.

Rio Zambeze

Com dois mil setecentos e cinquenta quilómetros de extensão, nasce na Zâmbia, muito próximo de Angola, onde entra no Cazombo que atravessa. Quando sai a Sul do saliente, de novo na Zâmbia, segue paralelo à fronteira Leste de Angola, até encontrar o esporão Nordeste da Namíbia, sendo a partir daí ele próprio a fronteira entre Zâmbia e Namíbia, até um ponto comum a quatro países - Zâmbia, Namíbia, Botswana e Zimbàbué – ponto a partir do qual corre entre a Zâmbia (margem Norte) e o Zimbàbué (margem Sul), até entrar em Moçambique, pelo Zumbo.

Daí a cerca de 400 Kms está em Tete; e corridos mais uns 420, espraia-se num imenso delta onde nasceu a vila do Chinde e derrama-se no Índico.



Entre o Zumbo e Tete encontra Chicoa e entre muitos lugares, banha Tambara, Chemba, Sena, Mutarara, Mopeia, Marromeu e Luabo.

Mal definido, o Reino do Muenemotapa teria capital em Sofala. Sabido que tinha ouro, tornou-se um polo de atracção, primeiro para os comerciantes árabes do Golfo Pérsico que ali chegavam em caravanas, transaccionavam o ouro e em caravanas regressavam à costa. Depois os portugueses. Em busca de ouro e marfim, foi pelas feitorias de Sena  e Tete, criadas em 1530 e 1537 que iniciaram a ocupação do vale do Zambeze. O interesse estendeu-se ao negócio de escravos. Por fim, quase acabado o século XIX, chegou-se à cultura agrícola dos grandes espaços de terras baixas, de início com recurso a trabalho braçal imposto. Estas etapas são até agora a parte maior da história da exploração daquele vale.

Grandes companhias fundadas ao tempo - como as Companhia do Nyassa (1890), 




Companhia de Moçambique (1891) e Companhia da Zambézia (1892), concessões com alguma decorrência do Ultimato britânico a capitais alemães, ingleses e franceses - propiciam o aparecimento de muitas outras, mais pequenas, como as Sociedade do Madal, Companhia do Boror, Companhia do Luabo ou Sena Sugar Estates. Esta última, sedeada no Luabo e estendendo-se a Marromeu, dedicada à cultura de cana sacarina e extracção de açúcar e mais tarde à exploração de copra num imenso palmar perto do Chinde, teve papel importante na região.

Em 1973, tendo acompanhado o Governador da Zambézia, coronel Nascimento Garcia em algumas visitas pelo distrito que governava, e em que conjugava em doses apropriadas, autoridade, diplomacia e simpatia, tive ocasião de colher imagens que ilustram a terra de que estou falando. Escolhi os elefantes no tando de Marromeu.


Não tenho fotografias mas não posso deixar de dar testemunho da nossa estada no Chinde, hóspedes do Administrador Saúl e de sua mulher Matilde. A lhaneza do trato, a genüina vontade de bem receber, a serenidade do ambiente da casa, a baixela, a decoração da mesa, as iguarias… deve ser assim com os princípes.

Ainda para ilustrar esta parte do vale do Zambeze - num tempo já próximo da independência - escolhi as três imagens que se seguem.




As companhias operando no Zambeze tornaram ali vulgares as embarcações a vapor e propulsão por rodas de pás - uma era encetada por Livingstone em meados do século XIX - que no início do século seguinte se contavam por uma vintena.

David Livingstone, nomeado cônsul britânico em Quelimane, em boa verdade encarnava a inveja e a cobiça inglesas pelas matérias primas jacentes no ‘back-yard’ alheio. Missionário e aventureiro, internou-se por África, tendo chefiado uma Missão de estudo, visando vários campos de conhecimento, mas não perdendo de vista as potenciais riquezas e a falta de uso que Portugal fazia delas. Alguns nativos olhavam-no como traficante de escravos. Entre os figurantes da missão, sua mulher, deu nome à atrás citada primeira embarcação a vapor no Rio Zambeze, a ‘Ma Roberts’, barco que em 1858 entrou seccionado pelo delta do rio. A sua imagem abaixo reproduzida, durante a descarga da porção central, de bordo do ´Pearl’, foi desenhadada por Thomas Baines, o artista da expedição, mais tarde expulso por suspeita de desvio de dinheiro.


Abaixo a mesma ‘Ma Roberts’, agora fotografada junto à Serra Lupata.


Desde sempre os nativos; e depois os árabes e europeus, foi pelo Zambeze que fizeram circular ou escoar os bens adquiridos aos poderosos estados africanos que por via desse comércio foram nascendo das margens para o interior. Casos mais conhecidos, terão sido o já mencionado Muenemotapa e o Maravi, potências entre as quais o povo Sena foi por muito tempo oprimido. Primeiro, o transporte era feito em pequenas pirogas (almadias), que foram crescendo em tamanho e número de remadores na proporção do aumento das transacções. Depois, em barcos de maior arqueação e construção mais elaborada, usando sempre remos curtos ou navegando à sirga onde as margens permitissem caminhos de sirga. Era muito raro o uso de vela, que os ventos brandos desaconselhavam face à forte corrente e à dificuldade de bordejar.

Em 1925 iniciou-se a exploração de carvão em Moatize, perto de Tete, onde dois anos antes já era extraído. Feitos 22 quilómetros de ferrovia em direcção à margem, o carvão passou a ser levado aos barcos da Trans Zambezia Railways e neles rio abaixo até Dona Ana, onde era transferido para vagões dos combóios da mesma companhia e transportado para o porto da Beira.

O pó do carvão extraído em Moatize passou a ser o combustível usado pelos barcos a vapor rio abaixo rio acima.

Modificações constantes dos fundos que dificultavam a navegação, levaram a que de 1930 a 1935 fosse construída, entre Sena na margem direita do rio  e Mutarara na margem esquerda, a ponte ferroviária  de Dona Ana, que conjugada com alguns ramais estratégicos passa a ligar o porto da Beira à Niassalândia e às Rodésias (de onde chegavam produtos agrícolas e pecuários), tornando menores a utilização do porto do Chinde e o número de embarcações trafegando.

Os barcos maiores deixam também de escalar Tete a partir de 1949, ano em que ali chega o caminho de ferro, que sòzinho passa a escoar o carvão. No Baixo Zambeze o tráfego fluvial mantinha-se, ‘para transporte de insumos e açúcar, até que com o encerramento do porto do Chinde em 1968 e a construção do ramal Inhamitanga – Marromeu, o escoamento do açúcar passou também a ser feito por ferrovia’.

Reactivada em 2007, a Sena Sugar Estates, agora com o nome de Companhia de Sena, deverá voltar a produzir açúcar de cana talvez em 2014. 

A Armada no Zambeze

Pela sua natureza chegando antes dos demais às terras achadas, a Armada tinha um papel decisivo na escolha dos pontos de fixação e na abordagem amigável dos nativos, mas também na exibição de força que conduzisse à pretendida soberania.

Os meios disponíveis para isso, no rio como nas margens, adequavam-se vagarosamente às circunstâncias. Tendo-se tornado cada vez mais difícil submeter à nossa vontade os povos do Alto Zambeze, divididos entre portugueses, a obediência aos chefes tradicionais, o recrutamento para milícias de colonos pouco escrupulosos que detinham soberania em coutos privados; e os interesses britânicos - perante os quais nos íamos vergando - tornou-se urgente o reforço militar na área. É na seqüência desta necessidade de força que no fim do século XIX é criada a Esquadrilha do Zambeze, cujo comando é exercido de Quelimane. A sede desse Comando, na imagem abaixo (colhida em 1909) mostra o que parece ser uma lancha de roda de água no cimo da rampa de alagem, em local muito parecido com o do plano por onde subiam as embarcações na Capitania do Porto de Quelimane, que entreguei em 1975. Provavelmente o mesmo. 


Dois anos antes, em 1907, o que poderia chamar-se Autoridade Marítima da Zambézia, distribuía-se por Quelimane, Chinde e Mopea e era exercida por capitães-móres.


Em 1911, atestando a actividade da esquadrilha, uma “alteração à lista da Ordem da Armada nº 16”, publicava:


Foram vários os navios que integraram a Esquadrilha do Zambeze.  Quase sempre com pouco tempo de vida útil, além de três ‘Tete’, entre outras lanchas-canhoneiras, sulcaram as águas daquele rio:



‘Qua-Qua’

Esta primeira lancha da Esquadrilha, em serviço de 1889 a 1896 armada com uma metralhadora, foi adquirida à Missão dos Jesuítas da Zambézia, onde dava pelo nome de ‘Silveira’.



‘Maravi

Foi adquirida em 1889 para prestar serviço no Rio Zambeze e abatida ao efectivo em 1895. Deslocava 12 toneladas. Comprimento e boca de 15,24, e 2,43 metros. Estava armada com uma metralhadora de 11 milímetros. Com máquina de alta pressão que dava movimento a duas rodas de pás laterais, conseguia 8 nós. Era guarnecida por 16 homens.

‘Cassine’



Adquirida em 1890, operava na esquadrilha, com a ‘Maravi’. Deslocava 30 toneladas, tinha como armamento uma metralhadora e a propulsão era conseguida com uma máquina de alta pressão de 18 HP através de uma roda de pás à popa. Velocidade, 7 nós.

‘Sabre’ e ‘Carabina’

Construídas em Inglaterra nos estaleiros Yarrow tiveram vida activa entre 1891 e 1898. Deslocavam 53 toneladas e os comprimento e boca, em metros, eram 22,8 e 3,65. Armadas com 2 canhões-revólver de 37 mm e uma metralhadora de 8 mm, estavam equipadas com uma máquina de alta pressão de 50 HP transmitidos a um veio com hélice, para uma velocidade de 10 nós. 20 homens de guarnição. 

‘Granada’ e ‘Obuz’

Construídas em Inglaterra, seguiram para Moçambique e serviram, a ‘Granada’ de 1891 a 1907 e a ‘Obuz entre 1892 e 1908. Tinham 24 toneladas de deslocamento, 18,28 metros de comprimento e 4,26 metros de bôca. Estavam armadas com um canhão-revólver de 37 milímetros de calibre e uma metralhadora de 8 milímetros. As rodas laterais eram movidas por uma máquina de alta pressão de 40 HP para uma velocidade de 8 nós. A guarnição era de 21 homens.


(Em 23 de Junho de 1896, o recém promovido 2º tenente Pereira da Silva  assumiu o comando da canhoneira ‘Obuz’ que fazia parte da Esquadrilha do Zambeze.
Mais tarde Ministro da Marinha dos sete últimos Governos da I Rèpública, em 1967 foi escolhido o seu nome para a primeira de três fragatas feitas em Portugal - ao tempo isso era possível -  legando-o também à classe).

 ‘Salvador’



Foi apreendida – 26 de Junho de 1916 – aos missionários jesuítas austríacos. Esteve no Zambeze – talvez no afluente Luenha já que combateu na região do Báruè; e serviu na Marinha Colonial até 1924. Um temporal violento provocou-lhe tais danos que deixou de navegar, tendo sido abatida em 1928. Como armamento tinha um canhão-revólver de 37 milímetros e uma metralhadora de 6,5 milímetros.



Lanchas-canhoneiras ‘Tete’

A primeira   
1871 – 1879



Primeira lancha-canhoneira que houve nome ‘Tette’, foi também dos primeiros navios de rodas a entrarem ao serviço. Construída em Inglaterra em 1871, tal como a ‘Senna’,  as duas completavam a classe com este nome.  Chegaram a Moçambique navegando pelos seus meios, viagem invulgar para embarcações de apenas 50 toneladas de deslocamento e um pequeno calado. Estavam equipadas com uma máquina de 35 HP para duas rodas de pás laterais. Estes navios tinham dois lemes, um à proa e outro à popa. Eram guarnecidos com 21 homens. Serviram até 1879.



A segunda
1903 – 1917

A segunda do nome foi construída em Cacilhas, nos estaleiros da Parry & Son em 1903. Deslocava 70 toneladas, tinha um comprimento de 30,48 metros e 3,20 de bôca, calando cerca de meio metro. À popa, uma roda de pás accionada por uma máquina de 100 HP. Conseguia 10 nós. Armada com duas peças de 37 e uma metralhadora de 6,5 milímetros, tinha 28 homens na guarnição. Em 1917, uma explosão na caldeira matou o comandante e pôs fim ao navio. Suspeitou-se de sabotagem dos alemães, em guerra connosco. Desta lancha há mais ilustrações para além do desenho-silhueta.







A terceira
1918 – 1971

A terceira lancha-canhoneira ‘Tete’ ( P 371 ) tê-la-ei visto em 1959, aquando da viagem de guarda-marinha. Construída em 1918 pelos estaleiros Yarrow & Co., foi transportada para o Chinde e aí de novo lançada à água em 1920.





Acabou, íntima do Zambeze, em 1971. Deslocava 100 toneladas. Tinha 22,37 metros de comprimento e 6,10 de bôca. Estava armada com duas peças de 47 milímetros e mais duas metralhadoras. A máquina, de 70 HP, accionava uma roda de pás à popa, dando 8 nós de velocidade. A guarnição, em 1960, eram 6 homens.

(Ministro da Marinha nos anos sessenta, Fernando Quintanilha de Mendonça Dias, oficial que ficou muito ligado ao Chinde – teve além de outros cargos os de Capitão do Porto e Intendente do Governo  do Chinde – assumiu em 1924, ano em que foi promovido a 1º tenente,  os comandos desta lancha-canhoneira e da Esquadrilha do Zambeze.)




Para exercício de soberania, para fiscalização de procedimentos, para visitas de saúde, para resolução de milandos, para contacto diplomático com autoridades locais, gentílicas e do Quadro Administrativo e para tudo o que ao longo do rio coubesse na sua jurisdição, a Autoridade Marítima do Chinde tinha à disposição uma embarcação a vapor com rodas de pás: a lancha-canhoneira ‘Tete’. O Capitão do Porto do Chinde era por inerência o Comandante do navio.





Todos os anos pelo menos uma vez, na época das chuvas, quase sempre nos meses de Outubro e Novembro, a ‘Tete’ subia o rio. De volta ao Chinde teria passado mês e meio. Tal como aprendido, a viagem era sujeita a um estudo antecipado. Não tanto pelas razões habituais. Aqui, a preparação tinha mais a ver com a encomenda de lenha para pontos de fácil acesso ao longo do rio, com o cuidar de que haveria sal ou côcos que bondassem, com a verificação do aprontamento do batelão logístico, do jipe, dos fuzileiros, do bom estado da moto-serra… É que para além da lenha a bordo e da encomendada para pontos estratégicos, podia ser necessário o corte de árvores nas margens para alimentar uma caldeira gulosa.

O navio, embora estimado, excedia todos os prazos de validade e clamava por descanso. O capitão-tenente Loureiro de Sousa (a quem sucedi em Quelimane em Janeiro de 1973), Capitão do Porto do Chinde no início dos anos setenta, pôs força na necessidade de substituição do navio e indicou o rumo rápido para a executar: aquisição de uma lancha à Sena Sugar, cujas embarcações tinham cada vez menor utilização. Assim se fez.




NRP “Sabre”  -  P 1138
1972 – 1975

Foi escolhida a ´Chire’, uma lancha de roda de pás de grande semelhança de linhas com a ‘Tete’. Armada, foram-lhe atribuídos o nome ‘Sabre’ e o número de amura P 1138. 


Com obra morta alta e densa, algo desequilibrada, navegava de braço dado com outro casco por razões de segurança.



Descolonização

Poucos dias após 25 de Abril de 1974, políticos profissionais recém-chegados da estranja, com a auréola romântica de messias que a lonjura do exílio lhes dava, declararam injusta a guerra que Portugal sustentava em três frentes africanas.

Mais, ou menos injustas, mas sempre injustas, não serão todas as guerras, já que matam?

A partir daquela declaração, tão verdadeira quanto oportunista e inoportuna, quem mais quereria ser o último morto de uma guerra injusta? Apesar de tudo houve uns quantos últimos.

Os termos em que foi acertado o Acordo de Lusaka provocaram de imediato fortes reacções em todo o Moçambique, nos sentidos literal e político do termo. Um número apreciável de pessoas defendeu a idèia da independência do território sob administração predominante de brancos. Um movimento contrário fez abortar tal pretensão e aumentou o azedume dos ânimos.

Em pouco tempo, guerrilheiros da Frelimo cruzaram fronteiras, para, com os adversários da véspera, iniciarem o comando conjunto do país.

A chefiar o grupo escolhido para o distrito da Zambézia, veio Bonifácio Gruveta que ali comandara a guerrilha. Recebi-o no gabinete de trabalho do Capitão do Porto de Quelimane. Um primeiro encontro difícil. Diferentes interpretações da letra do Acordo redundaram num desentendimento algo violento. Empinámos as cristas. Reatada a discussão no dia seguinte, fomos ambos mais macios; e ao cabo de algumas sessões acertámos agulhas no que ao mar dizia respeito e acabámos num relacionamento institucional de cordialidade que se estendeu a João Honwana e a Chaúque.


Muitos meses depois queriam por força apresentar-me a Samora Machel que viria à Zambézia nos primeiros dias de Junho de 1975, no triunfante périplo ‘Do Rovuma ao Maputo’. Não fui capaz de satisfazer-lhes a vontade. À beira do regresso a Lisboa, pressentindo quanto me seria penoso conhecer a figura, agendei para a data e para fora da cidade, vistorias a embarcações. É que o homem, que falava pelos cotovêlos – uma no cravo, outra na ferradura – abaixo isto e abaixo aquilo, aqui e ali com laivos de revindicta racista, não se cansou de acumular, principalmente entre os brancos, antipatias, anticorpos e temores. Quando em 1986, nomeado Adido de Defesa para Maputo, tardava a concordância de Samora quanto à minha aceitação, cheguei a pensar que a demora tivesse a ver com aquela velha recusa em conhecê-lo. A verdade é que foi Chissano a dar o sim, logo após a queda do avião.

Voltando atrás:

Ao tempo, tudo acontecia depressa demais, havendo dificuldade em acompanhar os autos.

O progressivo vazio que ocorria nas administrações, civis, militares e empresariais e o crescente êxodo de quadros, corriam a par de um caudal imenso de gente comum em direcção aos portos. Tanto se podia ter a percepção destes fluxos observando o embarque em aviões, como o movimento à volta de navios atracados, ou atentando o som dos martelos em afanosa acção sobre caixotes nos quintais das residências.

Foi para preencher um destes ocos que as minhas funções de Quelimane se estenderam a outras águas, sob o pomposo título de Capitão dos Portos do Zambeze.

Já 1975 se cansava de Maio, quando fui ao Chinde pela última vez. Subi parte do Zambeze a bordo de um ‘Mosquito’, pequena embarcação com casco de fibra e potentíssimo motor fora da borda que permitia superar em muito a velocidade da corrente. Mesmo com o hélice pouco abaixo da superfície, não foram poucas as vezes em que houve necessidade de parar o motor, içá-lo sobre o eixo-suporte e empurrar o barco sobre afloramentos súbitos do fundo arenoso. É certo que já se tinha entrado na época seca, mas esta tinha-se adiantado ao calendário e manifestava-se no Baixo Zambeze, não só com os assoreamentos mas também pelos detritos vegetais à deriva, não raro pequenas ilhas de canas e verdura que era conselho evitar.

Indicou-me o prático que me acompanhava, o local de acampamento utilizado em meados do século XIX pelo incensado Livingstone esse grande ‘amigo’ da lusitanidade. Não fosse dar-se o caso de ser verdade, quis pisar o mesmo chão e imaginar a sensação de triunfo primicial que deve ter tido ao fazer deslizar na margem e ver chegar à água a primeira embarcação a vapor que sulcou o rio.

Entrados num percurso safo de perigos, ensurdecido pelo barulho do motor, alheado do mundo pela monotonia acastanhada da água veloz, dei asas ao pensamento e transformei o cenário, imaginando-me, não dentro daquela ‘coisa’, mas a bordo da ‘Tete’ – em que nunca naveguei – fundeada algures no rio… Já crepúsculo mas ainda dia, acabado de saír do banho reparador,  envolvido nos odores benfazejos de uma nuvem de talco, sentado na cadeira de empreita com espaldar, no ‘dèque’ da lancha, de costas p’ra Meca e olhando os laivos finais do carmim com que o Sol pintara a despedida e participava o amanhã, foi assim que me vi. A mesa, vestida tal como eu e o marinheiro negro, de um branco imaculado, com os ‘christofle’,  filete de ouro e escudo da baixela querendo brilhar apesar da semi-obscuridade… uma aragem branda… e silêncio. Na bandeja um copo alto, um balde com cubos de gêlo, a garrafa de ‘whiskey’ e uma pequena malguinha de pau-preto com castanhas de cajú assado e pilado na ‘temba’, aqui e ali com a pele avermelhada que ficara. Tudo pousado na mesa, desceu a escada e voltou com o sifão. Com a mão – coisa de que o marinheiro que me servia não gostava – deixei caír no copo uns quantos cubos de gêlo; depois, como se não houvesse tarefa mais importante, esmerei-me, derramando devagar, muito devagar, uns dois dedos de boa aguardente escocesa sobre o gelo e rematei com umas pródigas golfadas de soda. P’ra silenciar o silêncio já doloroso, pus na grafonola um violino em conhecido concêrto romântico com a orquestra. O efeito apaziguador do conjunto descrito, sobre o cansaço do dia, mais o aconchego da humidade quente, fizeram que descesse sem jantar. Ao levantar a agulha do disco, percebi ao longe as batidas anunciadoras de folguêdos preparatórios para mais uma noite de entrega, que se dilüiria em silêncio com o fim das fogueiras. No camarote forrado de sólida e bonita madeira polida, deitei-me no beliche, sob o mosquiteiro e não combati o calor. Despido, dormi com ele.  

Voltei ao mundo quando o ‘Mosquito’ reduziu a velocidade e mudou o registo de som. Estávamos quase em Mopeia. Fui falar com o Administrador, dei uma vista de olhos pela terra (não tenho registos na memória) e invertemos a marcha.

Regressado ao Chinde, era tempo de iniciar a passagem de testemunho.

Infraestruturas, embarcações, papéis… a coisa física… tudo fácil de entregar.

Mas como esquecer os sonhos sonhados por tantas gerações? Alienar o imaginário, o simbólico… Como?!

Eu, que sem ter precisado de acreditar na propalada eternidade da África Portuguesa, ou de vender courelas herdadas na tèrrinha para investir nos trópicos de parceria com a vida, me limitei a pertencer às áfricas que fui pisando com um sentimento de partilha mútua, não consegui, mesmo assim, eximir-me no final, a uma nostalgia algo passadista; e de me compadecer com a dor dos que se tinham imaginado ali para sempre.

Comecei por terra, com uma visita guiada às instalações da Capitania do Chinde, breve passagem pela legislação usada com maior freqüência, afazeres administrativos mais comuns, documentos de registo, tudo muito pela rama, já que o pessoal da secretaria, no imediato se quedava na repartição.

Depois a entrega das oficinas, viaturas e pequenas embarcações.

Recolhi as bandeiras que encontrei.

E entreguei a ‘Sabre’, antecipadamente desarmada.


Por fim, sabendo embora que as águas que corriam não eram as mesmas que me haviam recebido ao chegar, entreguei-as como tal… entreguei o rio. Como é que se entrega um rio?

E foi depois, caminhando pela margem, que procurei os restos ali jacentes da última lancha-canhoneira ‘Tete’. Eis o que vi:



Para memória futura, que agora faço actual, fui fotografando.

E não resisti a esta imagem que se me ofereceu como despedida.


Mezena
10 de Junho de 2012