4.8.12


Livro de Ordens do Comandante

Messe do Alfeite - Quarto vinte

A família que fôra a sua partira-se com a partida da mãe.
Agora com madrasta, também ela mãe, mas determinada em fazer jus ao significado maldoso do termo, alonginqüando do marido os enteados, furtando-se à tarefa de ajudar a educar a enteada órfã, sugerindo e ajudando o seu internamento num colégio distante, agora, sentia ter perdido o lar onde fundeava desde menino.

Agora, na prática sem casa nem família, independente e sem amarras, não tinha ninguém para procurar entre a pequena multidão que em bicos de pés, na Doca da Marinha buscava o rosto ansiado no meio da marujada que se atarefava na faina de atracação do ‘Sal’.

À sua espera, apenas o quarto vinte da Messe do Alfeite, que o receberia com a indiferença do qüotidiano rotineiro de antes da viagem… como se o tivesse visto saír de manhãzinha.

Mas uma noite bem dormida foi quanto bastou para recuperar daquela última e agitada tirada Las Palmas – Lisboa, coisa que não aconteceu decerto ao esforçado motor do pequeno patrulha, que sòzinho, contra ventos e marés – aqui a expressão é de facto apropriada – o trouxera de volta. Ele, o motor, teria de sofrer longos fabricos para se recompor.

Havia que virar a página.

Virar a página 

…E aproveitar para mudar também a forma de discurso.

Nunca atribuí à chegada de Janeiro a necessidade de uma comemoração. Porém, sob a influência do atribulado final de 1960 e da solidão de que me cria vítima, quis evitar a  minha irmã o mesmo sentimento de abandono. E para mudar de ano, decidi que estivéssemos juntos. Ela passara a consoada numa aldeola da região de Leiria, em casa de uma colega, onde permanecia de férias. Da aldeia sabia apenas o nome – que já nem lembro -  e tinha uma idèia da sua localização geográfica tão vaga como se ma tivessem indicado com uma mão aberta sobre o mapa.

Ao escrever o parágrafo anterior não posso deixar de sorrir; e de pensar que talvez faça sorrir também algum moço do meu curso que porventura me leia e se lembre duma aula de Navegação do ‘Trrrim’ em que rabiscado sobre o imenso quadro, um problema se expunha à ignorância geral; e chamado à berlinda um cadete, para responder a uma pergunta que pedia o uso do dedo indicador sobre um ponto, espalmou a mão sobre o quadro e  disse convictamente: “Aqui!”

Precisava de encontrar minha irmã. Ainda distante do tempo em que viria a ter carro, pedi ajuda ao Sérgio, que como de costume se automovia num chaço cansado de mudar de mão, esquecido já de quantos donos tivera. Mas a idade e o estado de saúde do ainda automóvel, nada tinham a ver com a generosidade do meu circunstancial amigo que se dispôs a embarcar comigo na aventura. Porque era uma aventura: a viagem tinha que ser feita de madrugada (a noite de 30 começara havia horas); ao tempo, as estradas eram muito estreitas e de bermas indefinidas que tinham de ser adivinhadas; não se usava qualquer sinalização horizontal e a vertical era racionadíssima; e o piso era de asfalto ralo mas muito escuro e a luz dos faróis apenas o amarelava.
Saímos do Saldanha era quase meia-noite.
Depois de muitos enganos, paragens para ler os marcos da estrada e alguns retôrnos, chegámos à aldeia. Foi o tempo de bater às portas, acordar as gentes e fazer perguntas, em busca da agulha no palheiro. Encontrámo-la eram três horas e tal da manhã.

A casa da tia Adelina era em Faro, perto da estação. Saídos do combóio pusemo-nos lá num pulo. Quando chegámos, esfomeados, sentados à mesa estavam nossos pai e madrasta e o Bentinho que afinal, eles sim, tinham sido convidados para a chegada de 1961. O inesperado da minha entrada com irmã a tiracolo provocou uma surpresa que devo confessar me agradou.

Chegado cada novo ano com a naturalidade do inevitável e a humildade de cada vinte e quatro horas perante o Sol, o conceito vigente de diversão impele a ‘manada’ que não resiste ao impulso festeiro cada vez mais exigente e traveste a data com balões e serpentinas, pulos e gritinhos, muito barulho, raramente musical, e alguma pompa… tudo efémero, tudo postiço… para logo cair em mais um ano de ressaca.  
A nossa pequena festa não foi assim. Algumas recordações, umas fatias de bolo-rei e uns cálices de licor… mas ao cabo, a mesma sensação de vazio.

E agora, que fazer depois de voltar a estar só?

NRP “Diogo Gomes”

…senão virar a página!?

Foi o que fiz na Repartição de Oficiais ao perguntar se havia algum navio a sair para Além Mar, onde pudesse navegar e sentir justificada a escolha da profissão. Que sim! A ‘Diogo Gomes’ aprontava-se para Angola e um navegador com prática fazia jeito. Arrematado! Regressado a Lisboa havia pouco mais de uma semana, admiraram-se da presteza da resposta mas aceitaram-na como boa.

Inusitado, foi o timbre de 1961.
Na madrugada de 22 de Janeiro, Henrique Galvão deu início à Operação Dulcineia e no Mar das Caraíbas tomou de assalto o paquete ‘Santa Maria’ da Companhia Colonial de Navegação.

Em 4 de Fevereiro, dois dias apenas após a rendição do ‘Santa Maria’ no Recife, dá-se em Luanda o ataque às cadeias, seguido de pesado contra-ataque.

Entretanto, nos moldes habituais preparava-se o navio para longa comissão.

O meio ano que durara a comissão em Angola a bordo do ‘Sal’, sem oportunidade para gastos, permitira-me amealhar à justa os dezanove contos de réis que devia na ‘Alfaiataria Paris’, das fardas feitas desde a promoção a guarda-marinha. Pudera! Até capa mandei fazer. Creio que a usei três vezes.
Fui freqüentador assíduo da Sá da Costa e foi ali que soube daquela peça do uniforme. Uma fotografia do Proença, galão de guarda-marinha na larga gola da capa, identificava o autor do livro ‘Porque o teu querido te deixa’, exposto na montra. Deve ter tido influência na decisão de esportular-me de tanta massa.    
Com ou sem capa, senti-me aliviado por ter saldado a dívida ao alfaiate.

Decorreram dois meses. Tempo suficiente para mais um namôro ou algo parecido com isso. Esqueci-me de como conheci a moça. Mas, não lhe recordar cara nem figura?!… Ainda bem que ela não sabe. É feio dizê-lo, mas julgo que preencheu apenas um lugar  vazio. Danada coïncidência... era sobrinha de um cónego que se deixara morrer três anos atrás, enquanto eu viajava de automotora para Faro, com o propósito de o ir sovar. Recusara fazer um funeral religioso a minha mãe como meu pai lhe pedira. Em termos canónicos era capaz de ter razão. Minha mãe divorciara-se de um primeiro marido e meus pais eram casados apenas civilmente. Não obstante, minha mãe  mantinha convicções católicas e meu pai, perante a morte anunciada da mulher, que ocorreria um mês depois, pretendeu da igreja o seu ritual de adeus.
Triste pela tristeza do meu pai, rebusquei nos meus mais primários instintos e decidi ir bater no padre. No último ano da Escola Naval, havia de arranjá-la bonita… Mas… tanto quanto me julgo conhecer, não creio que o propósito ganhasse expressão quando chegasse à fala com o senhor. Verduras… ele morreu-se… e pronto.

A ‘outra’ fez-me cerco.
Não sei porque não fiquei surpreendido quando lhe ouvi a voz ao telefone.
Afinal, depois de um passado de dois anos, sabia ler em mim “que a ela só, por prémio pretendia”.
Que soubera que eu ia partir no dia seguinte, que gostaria muito de me ver e de se despedir. Claro que fiquei contente. Mas fingi-me enfadado. Fiz-me caro. Tanto teatro… Que ia despedir-me de outra – era verdade – mas se houvesse tempo iria lá a casa. Claro que houve tempo, claro que fui lá casa. Estávamos sós. Muitos beijos, muitos abraços, muito desejo mal expresso…
Éramos uns aprendizes…
Mais velho, com quase cinco anos de avanço, esperar-se-ia de mim um aprendizado melhor, mais iniciativa, a afirmação viva dos sentimentos e impulsos que me moviam… Depois do avanço mal sucedido de nove meses antes, não ousei.
Não só não alcancei o patamar seguinte, como mais uma vez borrei a pintura.
Depois de uma despedida tão fogosa, quando, sol alto, saiu para a faculdade, lá estava eu postado frente à porta, para renovar os adeuses, agora com beijos públicos, por força muito mais contidos. Ela resumiu bem, numa frase: - Estragaste tudo!

Era 13 de Março de 1961, aquando destes sucessos.
Mais umas horas e largámos do Alfeite. Dois dias de mar depois, a Press Lusitânia dava-nos conta, de forma ainda algo confusa, do massacre dos Dembos. Tinha recomeçado a Guerra Colonial, em banho-maria havia umas dezenas de anos . Os assaltos ao “Santa Maria” e às cadeias de Luanda tinham germinado.
O mundo para onde nos dirigíamos passara a ser outro. Agora era a guerra. Os objectivos tinham mudado e cada um de nós na sua área de acção teve que realinhar idèias, reinventariar necessidades, tentar dar expressão ao saber teórico adquirido. Um saber tanto melhor aceite quanto menos tivesse que se mostrar.

Cabia à nossa geração reatar, mais a Norte, as Campanhas do Cuamato.

Depois de S. Vicente e de Bissau, estivemos quase a ir ao Ghana.
Já no Golfo da Guiné, com São Tomé na proa, navegando ao Sul do Ghana numa latitude aproximada de 2 graus Norte quando o Sol alcançava o Ponto Vernal, as temperaturas atingiram valores tão elevados como ainda não conhecera. Na casa das caldeiras estavam 70 graus e o pessoal de quarto fazia bicha para assomar à escotilha, respirar ar menos quente, recolher água e descer. Um cabo fogueiro já entradote não agüentou e estava à beira de um colapso cardíaco. O Almeida e Castro, médico de bordo, observou-o e aconselhou o comando a arribar a um porto onde pudesse ser-lhe prestada assistência apropriada.
À beira da meridiana recebi ordem para pôr na carta uma posição fiável. Lá consegui um ponto por circunzenitais – uma raridade – e fizemos rumo ao porto mais próximo: Accra.
A impopularidade de Portugal no mundo e em particular em África crescia. No Ghana, independente desde 1957 sob a liderança de Kwame Nkrumah, éramos inimigos. Que problemas causaria uma arribada a Accra ainda que por motivos humanitários, era uma dúvida que não aügurava nada de bom.
Mas os deuses estavam connosco e após umas horas de navegação para Norte, entrada a noite com algum refrescamento da atmosfera, o médico, que mantinha o homem sob vigilância anunciou que ele recuperava.
Estibordo leme!
Proa a São Tomé.

Chegámos a Luanda com a chegada de Abril.
Era com ostentação que muita gente nos cafés pousava a pistola sobre a mesa.
Na baixa da cidade, ao lado da Livraria Lello pontapeava-se e pisava-se um preto até à morte porque alguém gritara histèricamente tê-lo visto entre os assaltantes da sua fazenda. Sentado num café próximo, só mais tarde soube o significado da agitação e dos gritos que tinha presenciado.
Vivia-se um clima de medo e exibia-se brutalidade.

Em Cabinda

Largámos para Norte e no dia doze o navio desembarcou um pelotão em Cabinda.
Apertados em “farda de alumínio”, polainitos, bolsas suspensas dos arreios que aos ombros vestiam sob as passadeiras, capacete de aço e  espingarda Mauser, ajoujados de equipamento e receios, embarcámos no ‘gasolina’, perante os olhares, a um tempo condoídos e aliviados do resto da guarnição, postada toda a bombordo para despedir-se, adornando o navio, que pairava junto à costa em zona de menor calema. 



 Dera-se um ataque algures no Enclave. A 1ª Companhia de Caçadores Especiais, do comando do capitão Soares Carneiro, operava no mato. Cabia-nos tomar conta da cidade.
Aquartelamento, central eléctrica e campo de aviação eram os pontos sensíveis.
Uma secção em cada um deles e outra de folga. Missão fácil. Durante o dia, a secção de folga que perambulava pela cidade fazia escala onde houvesse cerveja que refrescasse. Os comerciantes, agradecidos aos militares que lhes mitigavam o medo, dando-se magnânimos ares, não cobravam a despesa. Cansaram-se depressa. Ao quarto dia, conquistámos o estatuto de desconhecidos. Coïncidiu isto com o regresso à base dos operacionais, que, pelo menos momentâneamente, tinham reposto a paz.
Era uma exemplar Companhia.


Dividia tarefas com o Gomes Lopes. Dormia pouco porque acorria durante a noite aos postos guarnecidos, mas isso não impedia a minha presença na mesa, ao ‘mata-bicho’. Depois de um belo duche matinal, fresquíssimo no uniforme branco, manga curta, calção e meia alta coloniais dava curso ao meu apetite sempre voraz. Não era só a ausência de balanço que me estranhava. Mais do que isso, era a presença de senhoras à mesa. É que os camaradas do Exército, tinham ali, alguns deles, as suas mulheres.
Saber que os moços, cansados, barbados, sujos e mal alimentados, se empenhavam no combate, enquanto um adventício, todo alinhado, lavado e perfumado, se sentava entre as suas damas, fez-me sentir numa injusta situação de privilégio. Não é que me pavoneasse, mas foi a impressão que colhi ao tentar e conseguir, pôr-me a ver a cena de fora, como espectador neutro. Senti-me mal em relação a eles. Tanto, que ao terceiro dia fui falar com o Comandante Militar de Cabinda, que era também Governador; e pedir-lhe que me fizesse ir para o mato. O senhor, um major quarentão, ouviu-me atentamente, lembrou-me que estava a agir à revelia do Comando do navio, mas perante a insistência, resolveu conceder-me uma ‘excursão’.
Saí de facto para o mato, integrado no pelotão do Moreira, um alferes ex-seminarista em cujo quarto dormi enquanto estive no aquartelamento e de quem fiquei amigo. Fomos num jipão (ainda tinham os bancos às ilhargas) até um ‘povo’ não muito longe, de onde se pensava que a população tivesse fugido. Era verdade. Constatámos isso mesmo. E foi tudo.
Para além do Moreira, havia ali gente interessante: Nelson, Azevedo e um louco singular, o Múrias. Gostei da experiência. Durou pouco.
Azerada a situação militar, reembarcámos.


Não tardou muito, fui de novo ‘expedido’ para Cabinda. Desta vez entregue a mim mesmo, com um sargento e umas quantas praças, para patrulhar o Rio Chiloango. Estacionámos em Sassa-Zau, numa propriedade e em casas cedidas pela CUF, não sei por que interposta firma. O barco-patrulha era uma velha, amolgada, pequena e ronceira embarcação de ferro, pleonàsticamente chamada “Loé Pequeno”. 




Todos os dias, cedinho, navegávamos para montante, em direcção ao Pangamongo, quase ali onde se cruzam as fronteiras do Congo ex-francês, do Congo ex-belga e de Cabinda. O ruidoso matraqueio do motor devia ouvir-se lonjuras em redor. Os olhos pouco entravam no verde denso e escuro das margens. De vez em quando o grito de um macaco. Aqui e além, um pequeno jacaré ao sol, lagarteando no ramo seco de uma árvore  pendente sobre a água. Uma paisagem em que Tarzan se sentiria em casa.
Um dia, quase no Pangamongo, após uma curva pronunciada do rio, deparámos com um cabo de aço de grande bitola esticado entre margens, que nos impedia a passagem. A bombordo, na margem norte, um imenso outeiro desmatado, pejado de negros, sentados. Foi tão súbito e incongruente na paisagem, o aparecimento daquela visão simultânea que a surpresa me provocou um frémito de medo. Não podia deixar que os meus homens percebessem que sentira o mesmo que eles. Ordem para encostar a um improvisado cais no sopé do outeiro. Armas destravadas, prontas para fogo


 Mesmo com as pernas pouco firmes, saltei da embarcação, espingarda na mão, pistola à cinta.
Mal pus pé em terra, levantaram-se todos. Empunhando catanas. Centenas.
...A saüdarem-me!
Eram trabalhadores de uma estância de madeiras. O cabo de aço, servia para travar os toros que a montante vinham na corrente.
Confraternizámos um pouco. Depois, mais velozes, descemos o Chiloango.
Era nossa incumbência aproximarmo-nos de gente que habitasse as margens, falar-lhe, ouvir queixas, tentar resolver problemas, em suma, executar o que ao tempo se chamou Acção Psico-social.


 Mas encontrar centenas de negros de catana erguida na mão, estava fora das nossas cogitações. Que raio de saüdação!
Ninguém nos dissera de uma indústria madeireira em actividade.
Éramos nós, no terreno, que fazíamos a informação. Tudo estava muito no princípio.

Já antes ali vira um enorme jacaré, imóvel no seu solário privado - um afloramento de areia no meio do rio. À nossa barulhenta aproximação, quando entrámos no seu perímetro de segurança, mergulhou. Imaginei o tamanho daquela pele depois de curtida. Que troféu!
Na subida seguinte, depois de avistar ao longe o banco de areia, inclinei os óculos de míope na esperança de enxergar melhor e pareceu-me ver a cabeça do bicho, na mesma anterior posição: paralelo à corrente, cauda a montante e cabeça no topo da areia, olhando jusante, com o babadouro branco à vista. Pedi uma velocidade mais moderada e menos barulhenta. Quando houve a certeza de que não me enganara, reduziu-se ainda mais o andamento, o que era fácil contra a corrente. Aprontei a arma, que mantinha bem regulada, apoiei-a no rebordo da chapa de protecção avante e meti duzentos metros na alça, a distância aproximada a que estávamos. Apontei com cuidado, tirei a folga ao gatilho e continuei a premir devagar. Atirei. Estampido forte. Não aconteceu nada. O jacaré não se mexeu. Muitas bocas: o senhor tenente falhou! Atire outra vez! Agora vai fugir! Ora bolas! Continuei sereno, pronto a atirar ao menor movimento. Um segundo tiro, teria sido em vão.
Talvez não fosse o mesmo jacaré que antes vira, mas era um bicho soberbo. Ficou tal qual estava. O projéctil entrou na zona a que pode chamar-se pescoço e varou-lhe o coração. Retirada a pele nesse dia, salgada e posta a secar, alguém ma roubou mais tarde em Luanda. Lá se foi o troféu!

Já nos tempos da milícia tinha conseguido um segundo ou terceiro lugar no tiro com espingarda. Fazíamos fogo com a Mannlicher. Tinha jeito. Tanto quanto a falta dele com pistola. Durante os dias de Cabinda gastei montes de munições e ganhei uma qualidade apreciável a atirar quer com a Mauser – bela arma – quer com a FBP. Quis o acaso – ainda bem - que não tivesse tido necessidade de usar as armas com o fim último para que servem nas mãos de um militar.

A força de desembarque passou a ser como que mais um serviço a somar às normais actividades de bordo. Integrada pelos oficiais, sargentos e praças em cada momento e circunstância menos dificilmente dispensáveis, actuou em algumas localidades costeiras para onde foi chamada. Era formada por uma trintena de homens cuja ausência a bordo obrigava a um maior esforço dos que ficavam, não deixando por isso o navio de fazer a patrulha próxima da costa e exercer vigilância sobre pontos de maior vulnerabilidade do interior ou mais fácil acesso por mar.
Mais tarde, com o Loureiro de Sousa, a força voltou a desembarcar e actuou na zona do Ambriz.

Administração Naval

Mais uma vez por ser o mais moderno oficial da classe de Marinha tinha-me cabido o primeiro ´pincel’ - o Serviço de Administração Naval – pois não tínhamos embarcado oficial da classe. A mudança de perspectiva que o ataque de 15 de Março trouxera ao nosso trabalho, provocou em alguns serviços a necessidade de bens e equipamentos que não tinham sido considerados à partida. A situação era nova e difícil avaliar a bondade dos pedidos. Levadas as requisições ao membro seguinte do Conselho Administrativo, o Oficial Imediato, e feita uma suave triagem, tudo seguia o seu curso. A assinatura final do Presidente, o Comandante, raramente terá sido negada, pois tudo o que se fazia a montante estava bem. Sempre que opus algum argumento para que fôssemos mais contidos, visto que estávamos a exceder os nossos números, fui confrontado com a teoria do Imediato: ‘problemas pequenos somos nós a resolver…  os grandes resolve-os Lisboa’. E tinha razão. Não tardou muito foi destacado para a ‘Diogo Gomes’ um oficial de Administração Naval. Estávamos em Cabinda e fui num jipe ao campo de aviação buscar o Carocho que ainda levou algum tempo a compor o que tínhamos descomposto.


 Enquanto fui ‘escriba’ vivi uma experiência que ajudou a conhecer-me melhor.
Logo após a chegada a Luanda, o Estado Maior reüniu algumas vezes na câmara de oficiais. Entre outras coisas o Imediato disse-nos da sua pretensão de que o pessoal de licença obrigado a sair uniformizado se apresentasse em terra num branco impecável.  Consciente de que o navio não oferecia condições que facilitassem esse desígnio, havia que criar uma lavandaria. O espaço seria o parque do ‘Squid’ e os lavadeiros os torpedeiros-detectores, já que não havendo na área notícia do ‘submarino soviético’, aquela arma se tornava algo supérflua e os homens se limitariam aos serviços de escala e às rotinas de manutenção do ‘asdic’ (Allied Submarine Detection Investigation Committee).
Máquinas de lavar, pelo menos duas a serem adquiridas por mim.
Lá fui com o fiel ao Quintas & Irmão onde encontrei duas Hoover iguais que considerei boas e aprecei, pedindo um desconto que o homem solícito concedeu sem regatear.
De novo com o fiel, ao voltar mais tarde para pagar e levar as máquinas, enquanto manuscrevia a factura, o vendedor perguntou-me se devia ali registar os 10%. Claro que sim, claro que regista! Foi quando de soslaio percebi a troca de olhares entre os dois que caí em mim e medi o tamanho da minha ingenüidade e do incómodo da minha presença. Nunca mais me mostrei em qualquer compra. 
  
Alojamentos

 Sendo embora o mais moderno de Marinha, nunca fui sócio da ‘cova da onça’, o camarote mais avante, incómodo porque mais sujeito à arfagem e porque dois pares de beliches num espaço tão exíguo tornavam a coabitação difícil. A necessidade de ter o navegador perto das cartas e do sextante levou-me para um dos dois camarotes duplos, a bombordo por debaixo da ponte. O de ré. Dividi-o com o tenente Braga, um 1º tenente da Marinha do Brasil que embarcara connosco como parte brasileira da execução de um programa de cooperação entre as duas Armadas. Era um mero observador, embora lhe pudessem ser distribuídas tarefas que não tivessem a ver com o conflito angolano. Integrou-se bem e talvez pudesse vir a ser um de nós, mas o governo de João Goulart que sucedera a Jânio Quadros após a renúncia deste, pôs fim ou aligeirou a cooperação e o Braga regressou a penates. Em Setembro de 1968, numa ida ao Brasil a bordo da ‘Gago Coutinho’, antes de umas manobras com navios da Armada Brasileira visitei-o no Rio de Janeiro. Falou com alguma nostalgia do tempo passado connosco. Foi agradável revê-lo.
No camarote passei a ter por companheiro o Gomes Lopes que antes dormia do outro lado da antepara de vante, devendo ter havido ou um ‘up grade’ para alguém da ‘cova da onça’ ou uma despromoção nos camarotes individuais.
  
Novo Comandante

Não sei em que mês, talvez Setembro, em Luanda, chegou novo comandante.
Na última meia dúzia de anos em funções de governação em Macau e em Moçambique regressara pouco antes à Marinha. Ciente do desfasamento provocado pela ausência dos navios e de que lhe caberia ir comandar uma fragata, entregou-se ao estudo e terá mesmo solicitado um embarque de familiarização em ‘barca’ semelhante.
Chegou num dia de canícula. Na camarinha, pequena para todos nós, assisti a um interessantíssimo exercício de exibição de perfis entre os dois comandantes, oficiais do mesmo curso, sublinhado apenas pelo ruído sincopado da grande ventoïnha pendurada sobre a mesa quadrada:

‘Ó Pedro, tira o casaco! Não Paulino, deixa estar. Despe o casaco, homem… com o calor que está!? Agüento bem, Paulino.  Insisto, Pedro, ficas melhor se o tirares. Ó Paulino, se não vires inconveniente, prefiro ficar assim!’ .

‘Pedro’, sempre com o mesmo tom e intensidade lineares de voz, quase melífluo e ‘Paulino’ mais solto, mais ‘gajo’, mantiveram um diálogo que terá sido maior do que alinhavei, mas de que estas falas chegam para caricaturar os feitios dos homens em presença.
‘Pedro’ manteve-se encasacado.


Aquela ventoïnha poderia contar mais histórias.
Passou a ser uso o Comandante convidar para a camarinha, um oficial para almoçar na sua companhia. Padecendo de alguma timidez, defendia-se assumindo uma postura rígida e um discurso formal. De olhos cinzentos que não pestanejavam, atravessava-nos com o olhar. O estado do serviço, a sua eficiência e como melhorá-la, eram o mote das suas conversas, aproveitando todas as ocasiões para fazer doutrina. Só em casos de excepção viria à baila um assunto pessoal ou um sorriso aos lábios estreitos.
Embora o Verão de Angola se mostrasse inclemente, a ventoïnha estava parada ou na velocidade mais lenta que mal agitava o ar quente. Se algum suor lhe assomava à face em camarinhas, puxava discretamente de um fino lenço branco e com toques pequenos e elegantes, enxugava-o.  
Ao tempo, o Semedo já começara a inchar e tinha um suor fácil.

- Senhor Comandante, não gostaria de ligar a ventoinha?
- Não me parece necessário Senhor Tenente.

Suando em bica, encharcado, incapaz de agüentar mais o suplício, ia a refeição a meio, teve de arquitectar a ‘lembrança’ de uma mensagem urgente a enviar. Pediu licença e desceu ao camarote, à ‘cova da onça’. Tomou um banho rápido, vestiu um uniforme seco e regressou para o resto do almoço.
  
Postos de Emergência

A eficiência do pessoal e portanto do navio, foi desde o primeiro momento o seu norte. E a maneira de o conseguir, às vezes singular, foi ela própria sempre eficiente. Julgo que logo ao mexer no navio pela primeira vez – já a devia ter engatilhada - ainda durante a faina, disse-me para chamar o Imediato. Mandei a Ronda ao castelo. A conversa foi na minha presença:

- Imediato, vamos simular um incêndio. No balde com areia que está na tolda
  mande pôr um pedaço de desperdício a arder e ordene postos de emergência.

A expressão que vi no Imediato não deixava enganar: tínhamos sido apanhados descalços.

A cada um de nós era entregue um cartão – o Cartão de Detalhe - em que vinha assinalada a função e o lugar em que a desempenhávamos na situação em que o navio estivesse envolvido.
Sei que conservo entre as minhas ‘coisinhas’ um ou dois dos cartões de detalhe que tive. Como não sei onde, socorri-me do Google e encontrei postado num blogue da ‘Álvares Cabral’, imagem do Cartão de Detalhe do então 688/67, primeiro-grumete Artilheiro, Moleiro. Grato por me teres valido.

Não o sabendo de còr, devíamos trazer o cartão connosco, o que raramente acontecia. 


 O anúncio de ‘Postos de Emergência’ foi feito através do ETO (Equipamento Transmissor de Ordens) e surpreendeu toda a gente.

Postos de emergência? Eh pá! Que terá acontecido? Onde é o meu posto? Onde pus eu o Cartão de Detalhe? Tenho qu’ir à coberta…

Primeiro, ouviram-se frases curtas de preocupação como estas. Depois um corrupio mais ou menos generalizado em todos os sentidos, em busca do posto a ocupar. A marinhagem, de capacete, enjorcada nos velhos e incómodos coletes salva-vidas, ia olhando as mangueiras, agulhetas e extensores-pulverizadores espalhados pelos convèses com ar cerimonioso e aguardava. Pequeno jacto dum extintor de antepara pusera fim ao ‘incêndio’. Da ponte, o Comandante observava com ar seráfico. Quando entendeu não terem ficado dúvidas em ninguém àcerca do fiasco do exercício virou-se para o Imediato que mantivera sempre a seu lado e disse-lhe de mansinho:

- Parece-me que temos de treinar um pouco mais.

Todos percebemos e entranhámos a necessidade de ser melhores.

Emergência

Logo de seguida, uma ocorrência infeliz, tornou mais evidente ainda, a obrigação individual e colectiva de tal melhoria.
Estávamos atracados por estibordo no pontão da Ilha de Luanda. Íamos largar. Durante a manobra de desatracação, o Comandante deu ordem para as máquinas rodarem a ré sem que uma das espias tivesse sido completamente alada e recolhida na tolda. Tratava-se de um cabo de pita, muito denso, pesado e de grande bitola – só com as duas mãos se lhe abraçava todo o diâmetro – de tal modo que era por norma alado à lupa (aos puxões). A água sugada e empurrada para vante pelo hélice de bombordo trouxe consigo o cabo, atraindo-o às pás que fizeram o resto. Apanhada pelo seio, a espia foi enrolada à volta do cubo numa mòlhada que travou o ´parafuso’. 


Havia consternação na cara de todos. O Comandante começara a ganhar a nossa simpatia. A situação era delicada.
Tornar clara a clara do hélice era tarefa para profissionais. Não havia mergulhadores. Tampouco escafandro. Homens-rãs? – Nem sei se já se usava o termo.
Mas havia que agir.

- Quem é voluntário para mergulhar e desempachar o hélice?

Três voluntários: um marinheiro de Manobra, o Avilez e eu.
É certo que nunca me coïbi de ser voluntário sempre que entendi dever sê-lo. Desta vez nem me dei tempo para pensar. A pergunta ecoou na cabeça como um detonador. Se calhar, o mesmo se passou com os outros. Não falámos disso.
Nunca tinha mergulhado para além das amonas de empurrão nas brincadeiras de praia, das exibições juvenis ao entrar na água com moças por perto, ou no máximo, nadar debaixo de água e ver até onde ia sem respirar.

Nos nossos calções de banho e com uma faca presa ao pulso – se calhar navalhas da ordem com fiel – estávamos equipados. Embarcados numa chata logo ali arranjada para apoio, combinámos como actuar. Não sei quem foi avaliar a situação. À vez, cada um mergulhava aqueles quase quatro metros e meio e fazia do cabo enrolado no cubo do hélice o seu maior inimigo, esfaqueando-o com quanta força tinha, a água deixava e durante o tempo que o fôlego permitia.
Tive medo. Por um lado, medo de não saber avaliar o momento de vir à superfície respirar e ficar tempo demais. Por outro, medo de que os tubarões dessem por nós. Pelo rabo do olho não deixava de me preocupar com os ‘simpáticos’ bichos. Havia uma explicação:
Era um mocinho de onze anos quando na baía do Lobito um tubarão assinalado pela clássica barbatana, decidiu nadar p’ra mim. O grito de àlerta de um marinheiro da Capitania e o facto de estar a umas três braçadas de ter pé e poder fugir, puseram-me a salvo. Mas não mais esqueci a ameaça e agora o incidente vinha-me à lembrança. De cada vez que me atirava, ainda o mergulho ia meio e só me ocorria um pensamento: ‘onde raio me meti eu?’
Porém, tenho que dizer, com alguma imodéstia: fomos uns valentes! Mal se adivinhava a cabeça do que vinha a subir e já o seguinte mergulhava para o alvo. Não sei quanto tempo durou a função. De certeza, menos do que pensei que demorasse. Não deve ter excedido meia hora.

Seguimos viagem.

Objectivo, Índia!

Era do maior interesse manter segredo sobre os movimentos do navio.
As tarefas a executar, fosse qual fosse o ponto da costa onde actuássemos não diferiam na essência. Mas o conhecimento por parte do inimigo das zonas da costa tornadas alvos potenciais dessa acção, era para nós uma vantagem perdida.
Reduzia-se a uma meia dúzia o número dos que a bordo tinham acesso às ordens recebidas do Comando Naval. E deles não havia fuga possível.
Imagine-se a surpresa com que ouvíamos dos civis, comentários definitivos sobre a largada deste ou daquele navio.
Em vésperas de uma saída de Luanda era certo e sabido muita gente de fora saber se o nosso destino ficava a Norte ou a Sul. Pode parecer pouco, mas metade da beira-mar de Angola ficava de sobreaviso; e a outra… descansava.
Não obstante o segredo, a cada viagem, tudo se repetia.
Afinal, era tão simples! A verdade dependia apenas das espécie e quantidade de compras que os ranchos faziam no mercado: mais frescos, Norte; menos frescos, Sul. Um segredo de Polichinelo.

Desta vez foi diferente.
Era Novembro e estávamos em Cabinda.
Reunião de todos os oficiais na câmara. Comandante presente. Portas fechadas.
Recebêramos ordem para seguir para Goa, p’ra render o “Afonso de Albuquerque”.
Todos os oficiais tiveram acesso em primeira mão às ordens recebidas. Segredo absoluto. Desde logo em relação à guarnição. Seguimos de imediato para Luanda.

Satyagraha (insistência na verdade) foi o nome de baptismo que Gandhi deu ao movimento de resistência civil não violenta que adoptou para se opor ao domínio britânico na Índia, de que fez aliás um ensaio na África do Sul. Esta estratégia, que veio a inspirar Luther King e Mandela, teve sempre resultados finais vitoriosos.
Em 1953, os satyagraha intensificaram a sua acção contra o poder estabelecido nas possessões sob administração portuguesa na península indostânica: Goa, Damão, Diu, Dadra, Nagar-Aveli e Angediva.

Em 21 de Julho de 1954, uma Frente Unida de Goeses força os portugueses a retirarem-se do pequeníssimo enclave de Dadra, junto à fronteira norte do enclave de Nagar-Aveli.
Em 28 de Julho de 1954, a Organização do Movimento Nacional de Libertação atacou Nagar-Aveli, que conseguiu tomar em 2 de Agosto.
Tropas nossas terão retaliado fazendo baixas entre os satyagraha.
Estes eventos deram ânimo aos que pretendiam que abandonássemos a Índia.
Formaram-se seis partidos políticos regionais que foram pressionando o governo indiano no sentido de que assumisse uma posição de força e acelerasse o fim do poder português.
Já em 1961, aquele governo declarara que Goa seria libertada a bem ou a mal.
A 1 de Dezembro, Nehru afirmou que a Índia não se calaria em relação à situação de Goa e que já havia tropas em posições estratégicas junto às fronteiras.
A despeito, Lisboa continuava a acreditar que Nehru se manteria fiel à não violência.

Muito pela rama, era este o cenário para que nos dirigíamos.

Chegados a Luanda - a fragata atracada na testa do cais - presenciámos ainda a chegada do Destacamento nº 1 de Fuzileiros Especiais, comandado pelo Metzner e o seu desfile pela cidade sob os esperançosos olhares dos circunstantes.

Em pouco tempo ultimámos os preparativos – não eram poucos – e partimos.

Já necessitado de limpar o casco, o navio passaria uma semana na Cidade do Cabo para docar. Ali encontrámos o ‘Carvalho Araújo’, também ele em reparações.
Como Rosa Coutinho continuava seqüestrado no Congo ex-belga, era Luciano Bastos, o anterior Comandante, repescado em Lisboa, que chefiava de novo a Missão Hidrográfica de Angola.
Com a ‘Diogo Gomes’ aprontada, os oficiais foram convidados pelos seus pares do ‘Carvalho Araújo’ para um almoço de despedida. Os brindes foram pródigos em votos de uma cruzada bem sucedida. Quando deixámos o navio todos vieram à prancha – e, não mais esquecerei a imagem – havia olhos húmidos entre os camaradas que ficavam. Aí, só aí, tive noção do que nos esperava.
Como de costume, tinha andado a tocar violino.

Perambulando pelo Cabo encontrei finalmente os pequenos blocos de notas que o Comandante tanto queria que trouxesse sempre no bolso da camisa para registo de observações e de tarefas a executar. Ainda guardo um ou dois como recordação. Não sendo da minha natureza cultivar rotinas de procedimento, nem sempre fazia os registos, nem sempre trazia o bloco. Pedagogo, o Comandante, sem azedume, lá conseguia processo de me encaminhar. Ensinou-me muito. Claro que fui por acúmulo de tempo, crescendo, ganhando experiência, sendo melhor… mas estou crente que também houve nisso muita mão dele. Guardo-o na memória.

Numa vasta extensão da costa Leste da África do Sul – até às imediações de Durban – navegámos a muito pequena distância da costa. Houve um dia em que chegámos a fazer um percurso extenso a apenas 800 jardas. Razão disto: aumentar a velocidade.

A ‘Diogo Gomes’, era uma fragata da classe ‘River’ construída na Escócia em 1943, para servir na 2ª Guerra com o jaque britânico, o que fez com o nome de ‘Awe’ e o número de amura K 526. Comprada por nós em 1948, serviu até 1969, tendo acabado renomeada ‘D. Fernando’. Desenhada para uma velocidade de 16,5 nós, estava muito longe de consegui-lo no fim de 1961, mesmo depois da limpeza do casco qua fizera dias antes.

A corrente das Agulhas é uma corrente quente que vem Índico abaixo, bifurca-se a Norte de Madagáscar volta a unir-se a Sul da imensa ilha e desce pela costa Sueste de África em direcção ao extremo Sul do continente, o cabo das Agulhas, que lhe deu nome. Curiosa, é a razão do nome do próprio cabo: quando Bartolomeu Dias ali passou, na ida como na volta verificou ser nula a declinação magnética, razão porque em todas as caravelas as agulhas marcavam o Norte sem necessidade de mais contas.

Corrente de velocidade apreciável, atrasaria o navio se navegássemos sobre o seu maior fluxo. Navegando tão rente à costa quanto uma navegação segura permitisse, não só lhe fugíamos como ganhávamos um pequeno bónus que a corrente reversa, presente perto de terra, nos concedia. Foi assim que conseguimos médias diárias de 15 nós.
A velocidade era um dos dados contidos no PIM (Position and Intended Movements), enviado religiosamente para o Estado Maior todos os dias à hora da meridiana. A diferença daquele parâmetro em relação aos números habituais, fez luz nalguma das cabeças ainda pensantes em Lisboa; e em consequência, recebeu-se uma mensagem ordenando que não se puxasse tanto pelo navio e não se excedessem 12 nós.

Livro de Ordens do Comandante

Caído em desuso na Armada, foi na ‘Diogo Gomes’ recuperado pelo novo Comandante.
Descoberto num arquivo, era pouco espesso, tinha o título em letras já gastas na capa preta de cartão rijo e o miolo eram umas quantas folhas de papel almaço pautado. Um livro modesto.
O Comandante usava uma bonita caneta estilográfica de tinta permanente que enchia de uma côr assaz conspícua: não era preta, nem verde nem roxa, mas uma mistura delas.
A letra, antiguinha, era inclinada e firme, angulosa e bem desenhada. Se na caligrafia não recordava o cursivo que Júlio Dinis atribuiu a Manuel Quintino em ‘Uma família inglesa’, recordava-mo no meticuloso do gesto, no culto do pormenor, na arrumação de tudo à sua volta, no pensamento organizado…

As ordens passadas ao livro não foram muitas; quase todas relativas a tarefas a executar durante os períodos diurnos de navegação pelo pessoal que estivesse de quarto (turno), eram redigidas com poucas e concisas palavras.
Exercitar a guarnição, torná-la mais eficiente, trazer ao de cimo a vaidade do marujo, o brio de fazer bem, eram a meta a atingir.
Eis algumas:

Simular a queda de alguém ao mar. Dar o alerta, lançar uma bóia à água, executar a manobra de Boutakov e recolher a bóia.

Arriar a baleeira (complementar da anterior). Não ficava nos turcos. O pessoal saltava, arriava-se mesmo a baleeira, davam-se umas remadas e era içada.

Havia outros itens em que não me vou deter.

Reservei para o fim a simulação de avaria do leme e utilização dos dois processos alternativos de governar.
Este exercício, executado no quarto do meio-dia às quatro, tinha em vista preparar-nos para a eventualidade sermos atingidos em combate e o sistema de transmissão hidráulica do sinal da roda ao leme à máquina do leme ser danificado (rotura da tubagem).
Numa primeira hipótese, muito simples, descia-se à casa da máquina do leme, bem à popa, mesmo sobre o leme; e com uma pequena alavanca de comando de uma válvula reguladora do sentido e intensidade da pressão do óleo sobre a máquina, posicionava-se o leme onde pretendido.


 O segundo e definitivo  processo, muito mais primário, requeria a utilização de aparelhos de força.


 Retiravam-se as cavilhas que ligavam a meia-lua do leme aos gualdropes e substituíam-se estes por duas talhas já sujeitas ao cavername no extremo oposto. Depois havia que alar o chicote de uma das talhas e brandear na outra.

Deixem-me fazer um curto desvio…

Foi por esta altura que resolvi ter vinte e cinco anos.

Desta vez, a moça surpreendeu-me. Rejubilei com o inesperado telegrama-nav que o sinaleiro me veio entregar. Não que se ouvisse nas palavras o canto dos passarinhos, viessem coloridas de azul ou rescendessem a rosmaninho… mas tinham chegado. Alguém se lembrara do meu aniversário… de mim.
Mal sabia ela como estávamos perto.
É que dias antes, as tais cabeças pensantes de Lisboa mandaram que entrássemos em Lourenço Marques para embarcar munições.
Foi agradecida a resposta ao telegrama, mas não lhe disse que estávamos a quatro ou cinco dias de um reencontro.

…e retomar agora o fio à meada.

O mar que até se mostrava bem disposto numa área tão associada a tormentas, no dia 13 de Dezembro de 1961, resolveu mudar de cariz. Mesmo com o Sol à mostra e mesmo sem grande vento, a vaga deu em cavar; e só o facto de vir de alheta e o navio agüentar bem o mar que daí vinha, deixou que quase passasse despercebida.
Mas não o suficiente para que não vislumbrássemos o perigo de levar a cabo o exercício de leme avariado com vagas de 5 metros.
É que ao descavilhar um gualdrope e antes de o substituir pela talha, havia um instante em que esse lado da meia-lua ficava completamente liberto; momento bastante para a eventualidade de uma pancada de mar na porta do leme a trancar no bordo oposto.
Falámos entre nós e dissemos ao Imediato da nossa preocupação. Como o exercício era uma ordem expressa do Comandante, só ele a deveria anular.

O Imediato distava treze anos do Comandante e seis do Chefe de Serviço mais velho. Era um homem muito próximo de nós independentemente da idade. Ao tempo ainda solteiro, aliás solteiro militante, era um companheirão e conseguia a simpatia de toda a câmara de oficiais. Tinha a confiança do Comandante, fazia muito bem a ligação entre as duas câmaras e desempenhava a abrangente e difícil função que lhe cabia com um saber caldeado por muita experiência temperada de bonomia. Acresce que em terra nos acompanhava amiúde em sortidas aos bares na moda. E quando o fazia era um polo de atracção entre o miudame da casa, que acorria à mesa a prestar-lhe vassalagem – beijinho ao João Paulo – mesa, onde por norma só se servia espumante.

Ouviu atentamente o relato da nossa apreensão acerca do exercício de leme avariado, concordou connosco e subiu à Camarinha do Comandante. Ficámos à espera do resultado da diligência, que o quarto do meio-dia já levava algum tempo.
A cara fechada com que o Imediato desceu era resposta bastante.
Mas relatou-nos o diálogo. O Comandante entendia que devíamos estar preparados para enfrentar as piores condições e rematou a conversa com uma pergunta:

- Senhor Imediato: que está escrito no Livro de Ordens do Comandante?

Leme trancado

Subi à ponte e fui para a cabina de navegação. O Sol continuava visível. Mais uns minutos e seria possível a observação de uma altura post-meridiana que desse uma boa intersecção.
Foi quando um balanço súbito deitou ao chão compassos, réguas, pesos e o que mais estava sobre a mesa das cartas. Eu próprio quase caí, não fôra a exigüidade do espaço atrás de mim. Assomei à porta e gritei p’ró oficial de quarto:

- Q’é que foi, Semedo?
- O leme ‘tá trancado!
- Vou já ver… 

Ver o quê? Como se ir ver resolvesse alguma coisa!...
Não passava do habitual impulso: estar presente, mexer-me, ajudar.

Havia cabos de mau tempo passados, onde isso era possível. Em cada troço pendiam do cabo de aço alças vestidas em sapatilhos de bico. Com o navio em guinada permanente aumentava o balanço bombordo-estibordo à medida que o casco mais paralelo ficava à vaga.
Contrariando o balanço, equilibrando-me como podia, sem o tormento do enjôo de que nas sortes fiquei isento, lá fui, cantando e rindo, em direcção à casa do leme.

Mal tinha ainda descido a escada de bombordo, do convés principal para a tolda, quando aconteceu.
A popa inclinada do navio chegara a uma cava funda e daquele bordo erguia-se, silenciosa, uma montanha de água. Muito alta, enorme. Foi a última imagem que a consciência registou. No instante seguinte, submerso, era agora de verde claro a àgua que pouco antes fôra azul.
Senti-a de uma textura espessa, integrando-me em si, como se eu e ela fôssemos a mesma matéria, joguetes da mesma dinâmica hidráulica, como um jacto espremido, qual Venturi veloz, entre as paredes do escoadouro de uma barragem.
Enquanto ali estive, um tempo muito breve, perdi a disponibilidade mental. Não deu sequer para ter medo. Não tive medo, porque – penso - não pude ter tido medo.
Tal como não tive disponibilidade muscular para qualquer movimento voluntário.
Momentos… instantes, serão as expressões que mais se adeqüam à duração do que se passou. Porque não fiquei com noção do tempo decorrido. Se tivesse a obrigação de quantificar, arriscaria não mais que dois ou três segundos entre a submersão e o encalhe na peça de artilharia.


Sim. Pendurado pelo pé esquerdo na grelha do alimentador de munições da peça anti-aérea Bofors, de 40 milímetros, fixada num reduto, à popa, uns quinze metros a ré do meu ponto de mergulho.

Não sei como me libertei, não sei se me doeu… mas deixei-me cair no convés. Do mesmo bombordo já ameaçava outra imensa massa de água. Corri para vante e encolhi-me entre dois cofres de munições prontas, estruturas fixadas mesmo ao lado do gabinete do oficial de dia.
Agarrei-me aos fechos de um dos cofres com quanta força tinha, enquanto sobre mim rebentavam mais umas quantas toneladas de Oceano Índico.
Do reduto da peça de 4 polegadas por cima da minha cabeça, ouvi vozes gritadas:

- Senhor tenente, dê cá a mão!

É o dás!

Toda a minha força estava concentrada nas mãos, que se agarravam infrenes aos fechos do cofre. Talvez o corpo pudesse ser dali arrancado… as mãos não.
Empoleirar-me, esticar-me, entregar-me a quem quer que fosse, naquelas condições, estava fora de hipótese.
Deixei que desabassem sobre mim mais uma boa meia dúzia daquelas catadupas e só quando o navio, continuamente a rodar, ganhou um rumo de balanço aceitável, me decidi a subir ao convés acima, onde me aguardavam as mãos que há pouco se me tinham oferecido.
Eram do sargento electricista Miguel e do mesmo marinheiro de manobra que também mergulhara para desenrascar o cabo no hélice. Tinham presenciado o que acontecera e queriam certificar-se de que estava bem. Estava. Pequena ferida sangrando junto à articulação do pé e nada mais.

Estranha aliança aquela entre a artilharia e o mar que sob o olhar cúmplice dos deuses me salvara e permitia que a vida recomeçasse com nova contagem.

O leme ter-se-á destrancado com a redução de balanço e foi possível ligar de novo o gualdrope à meia-lua, voltando a haver governo.

Deparei com o Imediato que já sabia do incidente e vinha inteirar-se do ocorrido com a  vítima. Depois de me ouvir achou por bem levar-me ao Comandante para um relato na primeira pessoa.

Entrámos na Camarinha e o Imediato fez um prólogo durante o qual o Comandante, com ar de quem serenamente o ouvia, me ia medindo de alto a baixo e olhava com ar incrédulo a figura ali postada, com hábito de oficial daquele ofício, é certo, usando até galões de 2º tenente, mas que todo molhado do cabelo às solas, lhe ia encharcando o chão no salso líquido.

Então, acabado o sumário do Imediato, num tom de voz entre a interrogação, a desilusão, a dúvida e o desdém, sentenciou com a pergunta, que ficou a pairar:

- Caiu ao mar!?...

E eu… caí em mim.
De facto o compromisso era servir a bordo, os pés assentes num chão e não em vesperais saídas sem licença, mar adentro… oficial de marinha não era p’ra cair ao mar!

- O Senhor Comandante determina alguma coisa?

Saí e fui escorrer-me longe dali.



Obs. Na leitura de revisão que fiz, notei que ‘bombordo’
é nomeado várias vezes e ‘estibordo’ nenhuma, parecendo
que nada neste outro bordo se passava. Mas foi assim mesmo.

Mezena
4 de Agosto de 2012