28.3.16

A vedeta das onze


Nota prévia

Por muito que tenha querido acompanhar a evolução do pensamento social, há áreas em que o não consegui.

É o caso do cada vez mais freqüentado teatro de homens sexualmente atraídos que se recusam o mais primordial dos instintos: adubar a árvore de que são ramos e honrar os pais, continuando-os;

E que por vezes, nas tábuas do palco a que sobem e onde se expõem à luz dos holofotes, têm o supremo dislate de querer convencer-nos que levam passo errado os que na marcha da vida o não acertam por eles.


Os meus quartos

Terminado o curso na Escola Naval, aboletei-me no quarto número vinte da Messe do Alfeite que foi minha casa durante anos, porque consegui conservá-lo durante as duas primeiras estadias africanas, que fiz a bordo do ‘Sal’ e da ‘Diogo Gomes’. Deixei-o na manhã do dia em que me casei.

Assídüo freguês do pequeno ginásio original do Centro de Educação Física da Armada (CEFA), viver ali a dois passos, dava-me acesso fácil às tabelas de basquete ou às grandes futeboladas que por lá aconteciam.

Houve tempo em que me dei ao luxo de alugar também um quarto no Clube Militar Naval, na Praça Marquês de Pombal. Não tinha compromissos e podia derreter como me aprouvesse o modesto vencimento. Tanto assim era que a anos-luz de poder comprar um automóvel, tinha por minha conta, todos os carros da praça de Lisboa. Nos dias do mês sobrantes do fim do dinheiro, recolhia-me a uma orgulhosa e quieta modéstia.

Na messe tinha maior comodidade, já que as instalações haviam sido desenhadas com o propósito de alojar oficiais solteiros, a mobília, simples, era adeqüada à finalidade, os sanitários, embora comuns, eram bons e suficientes e uma caldeirinha espalhava um calor macio que levava de vencida a humidade da mata à volta.

Mas a par disto, como os vinte anos ansiavam sobretudo ser vividos na cidade grande, o quarto no clube servia de abrigo e repouso às noitadas mais agrestes.

O último cacilheiro saía de Lisboa à meia-noite; e da Doca da Marinha, as vedetas  largavam para o Alfeite, uma às onze e outra à uma da manhã. Raramente aquelas horas se compatibilizavam com as minhas que eu teimava querer absolutas.

Se tomava táxi assim que chegava a Lisboa, nem sempre sabendo para onde ia, mas sabendo que tinha pressa, de volta tinha especial prazer em caminhar. Nas noites de inverno, difícil de combater o frio intenso naquela divisão do primeiro andar do Militar Naval com apenas um pequeno aquecedor eléctrico, saber do forninho à espera no quarto vinte, era incentivo maior para me pôr a caminho.

Quase sempre, descia toda a Avenida da Liberdade, enfiava pela Rua do Ouro e virava  a Sul e Sueste até à vedeta. Ajustava o passo ao tempo disponível e não raro acabava correndo. A tolerância de algum patrão mais simpático não ia além de um ou dois minutos, tendo por isso chegado a acontecer-me encontrar o cais vazio.

Em razão do que, em meia-dúzia de ocasiões de mais urgente necessidade de descanso, aluguei cacilheiros grandes, que estacionavam na margem Sul e que depois de um telefonema vinham buscar-nos por cento e vinte paus. Acontecia então representar o papel de homem generoso que oferece transporte a retardatários menos abastados e que não eram poucos.


A vedeta das onze

Algum programa se terá gorado para eu estar a descer a avenida tão cedo.
Parei nas grandes montras do São Jorge p’ra me inteirar dos filmes programados, hesitei à porta de esquina de uma pastelaria perto da delegação do Belenenses mas resisti e continuei. Não entrei no Pirata. Porém, ao contornar o Avenida Palace, olhei o outro lado da rua e vi o Casulo, aberto havia pouco, onde se esmeravam a fazer uns bôlos apetitosos à vista que satisfaziam a minha requintada avidez de açúcar. Comi dois, bebi um café e saí.

À porta cruzei-me com uma cara conhecida, um moço com idade da ordem da minha, um marujo – marinheiro radarista - que via por vezes no ginásio do CEFA, onde era monitor. Cumprimentei-o.

Saí e reencetei o meu passeio para a vedeta das onze.
Parando aqui e ali para olhar as montras mais chamativas, a uma delas apareceu também o rapaz que vira no Casulo. Avancei, parei mais à frente… e o moço de novo ao mesmo vidro que eu.

Não estranhei. Sendo marinheiro, era natural que fôssemos na mesma direcção: a vedeta.

Uma vitrina mais além e de novo o marujo. Só que desta vez se chegou perto de mim e sussurrou:

- Ó filho… quando é que te descoses?

Hesitante, estaquei, incrédulo.

Decidi-me por avançar, sem qualquer réplica. Com as engrenagens em afanoso e quase barulhento maquinar, cheguei à vedeta.

Sentei-me na Câmara de Oficiais. Não sei se o moço embarcou na vedeta, não o vi mais. Ainda que tenha embarcado, ocuparia a zona das praças – não me teria visto.

Na manhã seguinte, serenadas as retorcidas circunvoluções cerebrais, assim que tive uma aberta, fui ao CEFA. Agora vestido de segundo-tenente, nos ombros os galões luzentes de novos.

Lá estava o monitor – não cheguei a saber-lhe o nome. Chamei-o de lado e encetei o sermão sem missa cantada que preparara. Pouco palavreado para não perder a força. Pus a tónica na honradez máscula que se espera de um marujo sem me deter nos aspectos morais da coisa, mas verberei o modo que escolhera para fazer fichas.

Surpreso desde que me vira, o moço ia assentindo em silêncio.

Por fim, olhei firme a praça algo amedrontada, bati ainda nas teclas da honra e da masculinidade; e ousado, ingénüo e arriscado como decerto não seria hoje, rematei:

- Então?... Inda queres que me descôsa?


José Guerreiro

CLV, 28 de Março de 2016