27.9.17

Angústia p’ra cagar




P’ra trabalhar estou cansado;
O brincar, não me apetece.
Estar de pé ou estar deitado,
Não me aquece ou arrefece!

E quanto mais neste estado
O meu corpo permanece,
Mais me sinto entediado,
Mais a vontade fenece.

Aguardando angustiado
Que o fim da angústia se apresse,
Sentei-me a ler no privado:

Não sei se foi do que lesse,
Se do cagar bem moldado,
Mas caguei todo o strésse!
                                                      José Guerreiro

                                                                                          Quelimane, 20 de Abril de 1975

9.8.17

O meu quarteirão

Ataíde de Oliveira e Antero de Quental – duas ruas e uma travessa em forma de éle – desenham o quadrado quase perfeito, do quarteirão onde morei até aos nove anos. Uma dezena de fogos, cujos quintais convergiam num poço de onde se tirava água a balde.



Pouco saía de casa. Minha mãe, não queria que o menino se misturasse com a garotada mais sôlta, que, com algum desdém, apelidava de môços-da-rua. De vez em quando, lá me era permitido pôr o nariz de fora, sentado ao poial da porta. Esgueirava-me logo que a via distraída, para olhar em redòr. Curioso, cirandava à volta do quarteirão, registando tudo. Esta falta de liberdade junto a casa, não colidia com as longas caminhadas – quantas vezes corridas – para executar mandados, sob contrôlo de tempo. Teria cinco anos, quando comecei a ser incumbido de ir à praça, fazer uma ou outra compra: no talho do Rudolfo, pedia carne de vaca; e do Brito, por 5$40 trazia meio-quilo de carneiro da perna. Mais tarde, aí pelos sete anos de idade, passei a ter mais espaço nas imediações de casa, que nunca desperdicei para aprender mais. Nem mesmo quando, tendo falhado a pontaria ao atirar uma pedra (não sei para onde), parti a vidraça de uma janela da casa do Transmontano.

Na porta ao lado, onde morava o Felício, quase nada acontecia, mas mais abaixo, à esquina, numa janela dos Leote podia aparecer a Cilinha, que me dava trôco às conversas acriançadas.

Se a seguir encontrava Dona Joaquina Camões, o diálogo tornava-se quase adulto e agradava-me sobretudo a sua atitude protectora, que um dia chegou a ter expressão real. Estava eu de cama, com febre alta e numa conversa através do poço, minha mãe lamentava-se de me ver piorar, ao invés da previsão do médico que pouco antes me observara. Perante os sintomas relatados e com a experiência de mãe de cinco filhos, Dona Joaquina foi peremptória: o menino tem garrotilho. Forçou uma segunda visita do médico, que foi obrigado a converter em difteria a gripe que, sem me ter feito abrir a boca, diagnosticara antes. Duas enormes ampôlas de sôro anti-diftérico espetadas na barriga e fui salvo quando o inchaço das amígadalas já pouco ar deixava passar. Eternamente agradecido, Dona Joaquina.

Logo a seguir, outra esquina, onde morava o Eduardinho Pité. Chamava-o. Do canto em frente aparecia também o Arsénio; e ali nos entretínhamos a comentar os feitos do Cuto no último Mosquito, ou a jogar ao berlinde, cheios de pena por não termos carôlos, as cobiçadas esferas de aço dos rolamentos. Como consôlo tirávamos da algibeira, o nosso melhor abafador. Nem sempre lhes batia à porta. Dava-lhes sinal com o som de uma gaita de cana que gostava muito de fazer. À vista de um canavial não resistia a tirar uma cana. Sem canivete, usava uma faca bem afiada, separava um pedaço com o comprimento de dois nós, com uma linha atava um bocadinho de papel de sêda bem esticado num extremo aberto, soprava em pequena abertura praticada no redondo junto ao outro lado e deliciava-me com o som roufenho que conseguia, em harmonia com as cantigas na moda.

Habitualmente fechada, a casa ao lado dava abrigo a duas irmãs entradas em anos, a Dona Emília que tomava conta da irmã mais nova, fraca de cabeça, no queixo um tufo de pêlos semelhante à barbicha de um chibo e a quem errada e maldosamente chamavam Carlos Quinto.

Defronte, no outro lado da rua, em mais um rés-do chão, vivia o Osvaldo Patrocínio, de quem viria a ser companheiro na Marinha.

Dali até à esquina apenas uma comprida parede caiada de branco, que a malta, com insistência, teimava em sujar com o vermelho da terra do solo. É que aquela parede, do quintal do Senhor Faílde, era a tabela usada dia a dia para pontapear uma bola de trapo, o maior número de vezes, sem que fôsse ao chão. Fazer uma daquelas bolas, arte muito considerada, era tarefa que cabia apenas aos eleitos, que além de arranjarem meias de malha de sêda de senhora para o enchimento, sabiam acabar o esférico com um cu-de-galinha bem feito e uma costura disfarçada. Eram os Vinhas, o Lòpinhos, o Leonardo Transmontano, algum O’Brien de Oliveira, o Felício, talvez o Jorge Aleixo, os artistas que se esmeravam a exibir os dotes para o pontapé. Eu e os mais novos, olhávamos cobiçòsos, tanto saber.

À distância da largura da rua no lado norte da Antero de Quental vivia a família Machado. Com tempo bonançoso, depois do jantar, íamos amiúde, eu e minha mãe, seroar a casa de Dona Maria Machado – a Mamã – cuja neta, Natália, foi a minha primeira amiga, responsável porque tivesse sido com bonecas que primeiro brinquei, enquanto à volta se cosia, fazia croché, tricotava ou bordava. Cedo me foram familiares, termos como cerzir, ponto-cruz ou ponto pé-de-flor.

No outro lado da travessa, uma esquina vazia de casas, mas atulhada de restos de cantaria de anteriores construções, onde reinavam urtigas, incapazes de deter o fascínio que ali nos agarrava em brincadeiras inventadas na hora. Mexer na terra era uma atracção.

A seguir era a casa dos O’Brien, três ou quatro irmãos – o mais novo, meu condiscípulo – renomados caçadores de pássaros, que me passavam à porta, armações de arame à cinta, enfeitada no regresso, com inúmeros passarinhos – mortos ao engôdo das agúdias esperneando espetadas no fino gancho-travão das armadilhas – pendurados, prontos para a fritada.



Depois vinha a casa do Joaquim Ventura – também meu companheiro de escola – com quem ia brincar – com êle e com a irmã, Elsa, chegando mesmo, se era hora disso, a sentar-me à mesa e partilhar das viandas – em segrêdo, que minha mãe me recomendava não comer fora de casa.

Entre esta morada e a minha, noutra esquina morava o Capitão Santana. No começo da carreira militar dormia na tarimba mas com tempo, ascendeu aos três galões dourados. Barlaventino, teria ao tempo, cinqüenta e poucos anos, era casado com Dona Adozinda e tinham duas filhas: a Fernanda e a Maria José.

Estas duas meninas, rigorosamente vestidas de estudantes – capa e batina – levaram-me teria uns seis anitos, ao meu primeiro baile, no ginásio do liceu velho. Sei que minha mãe se esmerou a ataviar-me, recordo-me de caminhar entre as duas irmãs e do ondular das capas sobre a minha cara com o vento soprando no espaço aberto entre as ruínas e os eucaliptos do caminho até ao ginásio, tapando-me os olhos, mal me deixando ver onde punha os pés, mas ficam por aqui as minhas lembranças. Entre gente a quem dava pela cinta, que terei andado por ali a fazer, noite dentro?

Pouco depois, o Capitão Santana – segurando vela – e a avó Francisquinha, apadrinharam minha irmã, baptizada na Sé.

Casa e quintal, desta família, ocupavam maior área do que qualquer outro fogo no quarteirão. Havia pequenos hortejos cultivados, uma frondosa figueira que deitava ramadas para o meu quintal e uma parreira que amarinhava parede acima, para dar sombra e uvas em pequena varanda do primeiro andar falso das traseiras.

A casa tinha aspecto sólido e estava pintada de uma cor arroxeada que a individualizava. Mas, estatuto mesmo, era-lhe dado pelo marco do correio postado à esquina bem junto da aresta entre as duas ruas. Só alguém que fôsse importante teria o correio à porta, pensava eu. Visitava muito aquele marco, sabia-lhe os detalhes; e se apanhava o carteiro na recolha das cartas, não me dispensava de ir espreitar e vê-lo por dentro.

A guerra, inicialmente tão favorável à Alemanha, mostrava-se agora com vantagem para os aliados. Dando-nos conta do seu curso, chegavam com freqüência, via postal, maços de folhas de papel de um conspícuo azul-irritante, abarrotadas de notícias. Em minha casa como na do Capitão Santana, a sua leitura não suscitava muito interêsse, já que grande parte continuava dentro dos envelopes e repousava sôbre móveis ou jazia pelo chão. Eram mais chamativas as fotografias que enchiam inúmeras revistas recebidas, de  blindados a porta-aviões, couraçados e cruzadores, fortalezas-voadoras, homens em uniforme, peças de artilharia fazendo fôgo, esteiras de fumo de aviões em queda, numa escolha bem feita pela propaganda aliada que exibia as suas vitórias e conseguia repôr um nível esperançoso de paz, onde ainda havia pouco o futuro era nublado.

À boca da noite, a BBC dava uma emissão em Português, naturalmente preenchida na totalidade com os sucessos da guerra. Acontecia, por vezes, estar a essa hora a fazer o papel de menino da casa, Dona Adozinda dera-me de jantar – decerto com o aval de Dona Maria José – e eu feito gente, fazia companhia ao senhor, ambos sentados em meiples, lado a lado.

Intrigava-me muito, aquele luminoso olho redondo verde mutante que o ajudava a encontrar a melhor posição do ponteiro da telefonia para ouvir as notícias. Operação de rigor, demorada, vagarosa, que aquela mão sapuda, levava a cabo com o maior cuidado e alguma destreza. Depois, puxava do livro de mortalhas, tirava uma, ajeitava-a, abria a onça, onde com dificuldade os dedos entravam para trazer tabaco e com paciência estendia-o no papel. Achado suficiente, enrolava-o (com pouco jeito), passava a língua pela cola e estava feito. Mas, valha a verdade, o resultado, mais do que um cigarro, era um canudo de papel de mortalha, amassado, tôrto e mal cheio. Levado à boca, entre um lábio superior enfeitado com uns quantos pêlos grisalhos e uma longa e estendida beiça inferior pedinchona, chegava-lhe finalmente o lume de um fósforo.

Ia observando atentamente todo este ritual – tão diferente do que via em meu pai, limitado a tirar um cigarro do maço de Paris – como diferente era o cheiro, mais intenso das irrequietas volutas de fumo em que se comprazia o meu companheiro de serão.

Era então, pronto para o noticiário, que o Capitão Santana, algo mouco, encostava o ouvido ao som e num silêncio atento, acompanhava a guerra.

Mas, o cansaço do dia, a digestão do jantar e uma predisposição natural, levavam-no direitinho ao sono. Obeso e flácido, comprimido na farda de cotim, apertado entre cinturão e talabarte, não tardava a cair num brando e mudo ressonar.

A face e a larga papada despejadas sobre o peito, a bòcha espreitando entre as abas do dólman, beata entre os beiços, apagada à míngua de tabaco e molhada da baba escorrida pelo canto da boca, acentuados papos sob os olhos cerrados… um retrato de repousada satisfação, reproduzia no Capitão Santana, a bem-aventurança de um Buda vizinho e amigo que fumasse.

– É tempo de ir para casa e dormir também!


José Guerreiro
Calvaria, 9 de Agosto de 2017



12.5.17

SER



É no junco ondulante do desenho dos teus passos

e sob a cortina meio-descida no brilho do teu olhar,

que adivinho a urgência infrene de ternos abraços,

e acorro, veloz, ao convite, no frenesi de tos dar.

Mãos nas mãos, bocas molhadas trocando segrêdos,

o apêrto côncavo dos ventres a perfumar desejo

e um surdo grito no crescente enclavinhar dos dedos,

dão vida à brusca avidez de nós e ao temor do fim do                                                        beijo.
Sufocados no manso calor dos teus e dos meus                                                                 braços,
impulso da primordial vontade que temos de nos dar,

ignorando a virtude, caída no chão feita em pedaços,

é para ali que nos deixamos ir, a pouco e pouco,                                                                devagar…
sendo, então, os dois, ciosos donos do corpo do seu                                                              par…

José Guerreiro

1 de Março de 2017