27.4.18

Na Rua Ataíde de Oliveira, em Faro

O gôsto de recordar

“Há quem viva sem dar por nada…”, canta José Afonso. Há, de facto. 
Pretendo não fazer parte do grupo.
Conservo presente o passado, sim… mas passado. 
Passado que integrei, como personagem, como figurante, como observador. Arrumado nas circunvoluções da memória, nem sempre com rigor de cenário
e precisão na fita do tempo, mas sem abdicar da verdade. 
Começo a sentir dificuldade em agarrar pormenores que dantes acorriam com presteza. Por natural predisposição, exercito os mecanismos de leitura de anteriores experiências e combato o desgaste com que o tempo vai minando o desempenho da massa cinzenta. É o que aqui faço, ao recordar e passar a escrito a visão que conservo do meio em que cresci. É um relato com interêsse nulo para além de mim. Aqueles que poderiam ajudar-me e partilhá-lo, já
se foram; e minha irmã era nova demais para ter lembranças. Escrever estas linhas, é por isso um prazer solitário e egoísta que me dou e a que me dou com entusiasmo.

Entretanto, procurarei esgrimir bem as palavras, tanto quanto souber, para ganhar aí, quiçá, algum atenção vossa para o exercício, quanto mais não seja, pelo que contem de retrato de uma época.


Guerras

Quando apareci, a Guerra Civil de Espanha já levava quatro meses de afã.
E de entre nós, muita gente ali foi guerrear, quer pela Segunda Rèpública Espanhola, quer pelos Nacionalistas. Durou três anos.
Pouco depois, não tardou muito, a Alemanha Nàzi, deu início à Segunda Guerra Mundial que chegaria a ter quase seis anos e a estender-se até aos Pirinéus.
Já eu passava para a terceira classe quando em Maio de 1945 cessou o conflito.
Assim, os meus primeiros oito anos e meio de vida, foram vividos com limitações de ordem vária – as que um estado de guerra provoca mesmo para além das suas fronteiras.
A escassez de alimentos básicos levava ao racionamento e aumento dos preços, tornando mais curtos os salários. Nestes, não havia margem para mexer.
Umas centenas de escudos em notas – cem para pagar a renda ao senhor Custódio – era quanto meu pai enviava para casa todos os meses, dentro de um envelope de valor declarado, envelope de papel especial, feito sôbre uma rede de fios de tecido que lhe davam corpo e tornavam forte e difícil de rasgar.
Êste sobrescrito, quase sempre azul, tinha no rôsto impressas, linhas ondeadas, onde se escrevia o valor que continha, indicado tanto em algarismos 
como por extenso.
Gerido com inteligência e mão forreta, aquele dinheiro permitia-nos viver uma suficiência confortável.

Rua Ataíde de Oliveira, 21

A casa onde morávamos, bem no meio do núcleo original do Bairro do 
Bom-João, tinha o desenho comum à maioria das que no primeiro quartel do século passado se fizeram em Faro: num rectângulo comprido e estreito, dois corredores a todo o comprimento e quatro assoalhadas e cozinha entre êles. Um dos corredores, exterior, com chão de ladrilho de barro para onde davam 
janelas, era, apesar da pouca largura, mas com muita pretensão, 
chamado de quintal.
Razão para aquele formato esticado era decerto facilitar que maior número de casas pudessem convergir no poço que as abastecia de água, tirada a balde de ferro, alado por cabo gornido em roldana.

A frontaria – uma janela entre duas portas – antecipava o interior: aberta a porta principal e subidos quatro degraus para um pequeníssimo pátio, entrava-se no corredor interno (com portas para todas as divisões), enquanto a outra, mais tôsca, era a porta do quintal. A janela servia a única sala junto à rua.

A esta divisão, com estante, meiple, mesinha e rádio, e ainda uma secretária, chamávamos escritório, o que lhe acrescentava alguma importância. No chão, tapete vistoso. De um grosso varão canelado de latão, fixado na parede sôbre a janela, pendia a cortina cheia de flôres bordadas num arrendado fino,



tapando-a de olhares da rua; e a toda a largura da base, no tôpo de uma armação de ferro forjado com um palmo de altura, todo voltas e contra-voltas, assentava um estreito peitoril de madeira.
Em pé sôbre um banco, quando às quartas e sábados , rememorando os últimos capítulos de aventuras,me punha de janela aguardando ansioso a chegada 
d’O Mosquito, era na face plana daquele delgado parapeito de madeira que pousava os braços.
Sôbre a secretária com tampo de vidro, uma base de pergamóide coberta de papel mata-borrão côr-de-rosa, um suporte de mármore preto com canetas, tinteiro onde se embebiam os aparos e um mata-borrão Tank.



A um canto, lindo e exótico candeeiro chinês – buda de louça suportando um abàjur – que meu pai trouxera de Macau, de onde viera também o quadro bordado a sêda, alusivo à travessia de Sacadura Cabral e Gago Coutinho, pendurado na parede, em lugar de destaque – mais tarde (1951) oferecido ao Museu da Marinha. Da mesma origem, bela pintura sôbre fêltro canelado, hoje pendurada à minha cabeceira, uma raridade.  



Uns quantos livros nas prateleiras da estante, alguma ficção de cordel, livros escolares, exemplares d’O Papagaio e d’O Senhor Doutor,




         
um álbum de fotografias com capas de madeira lacada do Oriente e papelada vária, tudo protegido da claridade por cortinas avermelhadas fixadas no interior das portas. Mas o meu encanto ia todo para as duas gavetas que faziam a base do móvel onde havia um mundo de coisas: cadernos de papel almaço, liso e
pautado, lápis comuns, lápis de tinta, borrachas, aparos, clipes, mata-borrões, tachas,



sinête, paus de lacre, etc. E em contraste com tudo isto, como se ali estivessem por engano, um baralho de cartas e um isqueiro com o Rato Mickey.

A divisão seguinte era o quarto de meus pais. Mobília de bonito desenho, moderno ao tempo : guarda-roupa, psiché  e cama, com as imagens do Imaculado Coração de Maria e de Jesus Misericordioso na parede da cabeceira. Do guarda-fato, lembro o cheiro penetrante a naftalina que identificava com
limpeza. Na cama, um ‘couvre-pieds’ de pêlo macio, muito espêsso, azul brilhante de um lado, com lavrados castanhos no outro, em que dava prazer roçarmo-nos. Sôbre o mármore do psiché, frascos de perfume, um com tubo borrifador, caixa de pó-de-arrôz Tokalon



e ao lado, a borla – como que um ouriço de finíssimos fios de sêda branca, para empoar o rosto – mais alguns objectos de utilidade feminina e uma pequena jarra de vidro fôsco, em que me habituei a ver singelas flôres silvestres. 
Estava-me vedado mexer neste móvel, mas sabia – minha mãe tinha-me mostrado – guardar-se ali uma caixa com frágil apetrecho de vidros e borrachas, que fôra utilizado para me alimentar.
Em sua mama uma aplicação de vidro e na minha boca uma tetina. O apêrto de uma ampôla de borracha a meio, sugava da têta o leite que eu não conseguia saber chupar e outro apêrto esguichava-o para mim. 
Por falta de jeito ou preguiça, não consegui mamar que chegasse  durante o primeiro mês e definhava. Usado o aparelho meu salvador, aprendi e pelos vistos gostei. De tal forma, que mamei catorze meses.

Avançando no corredor, a porta seguinte dava para o meu quarto. Mais um guarda-fato, mais um psiché e a bela cama de criança com guardas, comprada na Casa Nobre, por mim estreada aos dois anos. Mais tarde, foi de minha irmã e ainda de meus filhos. 
Os bonecos estampados na cabeceira faziam as minhas delícias.
Encostado a uma parede, o psiché, alto, com grande espelho central, duas pequenas gavetas laterais elevadas, encimadas por espelhos, modestos no tamanho, que reflectiam dois lindos e artísticos bibelôs de porcelana pousados com a-propósito sôbre o teto das gavetas – sobreviveu um deles, que
conservo na minha escrivaninha, onde o estou vendo –   


e no tampo central, mais baixo, um guarda-jóias de madeira escura e aplicações de prata, forrado a cetim por dentro, que em verdade não guardava nada. Havia também, náperons, perfumes e dois búzios sarapintados. Na base, mais gavetas, com roupa branca, calções, blusas e pulóvères meus.
Da mesma traça, o guarda-roupa pouco dava nas vistas, mas quando aberto, o cheiro a naftalina sobrepunha-se ao também muito activo odor da cêra que fazia brilhar as tábuas compridas do soalho.

Depois vinha o quarto das malas. Certo que havia malas de viagem, debaixo de uma cama de ferro pintado de branco, onde uma colcha côr-de-frade cobria o colchão de carepa, assente em dois enxergões de palha.
Mas o que avultava era um enorme malão em madeira lisa de cânfora, que meu pai trouxera em 1927 no regresso de cinco anos de comissão em Macau. 
A exploração do contido naquela mala imensa, era entretenga certa quando a Natália aparecia para brincar comigo. Tresandando a cânfora, dali saíam as mais
inesperadas coisas: almofadas de cetim, compridos e elegantes robes femininos, com longos desenhos estampados de côres suaves em crepe da China, um banjo, um cachimbo de ópio com grande e fina boquilha e minúsculo fornilho,



um par de poláinas de cabedal grôsso, que o pai usava quando ia caçar com o amigo Pàzadas ou com meu tio Zé Grelha, mas também meias, camisolas interiores, uma bengala e uma sombrinha chinesa de varetas em bambú.



Um mundo. 
Quase oitenta anos passados, esta mala, vive no meu sótão, e tem o conteúdo todo renovado, mas confesso, não faço idèia com quê.
Neste quarto das malas havia ainda um lavatório, móvel antigo em madeira polida, tampo de mármore e uma grande bacia de louça. Nas tardes calmas do fim da Primavera e ao longo do Verão, só calçava sandálias; e quando conseguia brincar na rua – o que não era freqüente – chegava a casa com os pés nojentos da terra vermelha. Era então no mármore do lavatório, que minha mãe me fazia sentar, com os pés na bacia, em grande lavação de sabão azul e esponja, para os poder enfiar na cama.

Voltando a caminhar pelo corredor, evitando encalhar na máquina de costura ali encostada, chega a vez da sala de jantar, usada mais para receber visitas do que para comer. Embutido numa das paredes, um armário de madeira, com duas gavetas a meia-altura e prateleiras acima e abaixo escondidas por
meias-portas, de madeira as inferiores, de vidro as outras. Eram muito vulgares estes armários metidos na parede. 
Nunca percebi o porquê de a gaveta da direita conter o ferramental da casa. Martelo, turquês, chave de fendas, pregos, parafusos, um pedaço de cêra dura, espicha, repuxo e agulha de coser lona, saca-rolhas, e, calcule-se, escôvas e pomadas para sapatos. Se é certo que a divisão da casa não parecia ser a
mais apropriada a tais objectos, sabê-los naquela sólida gaveta poupava-nos tempo quando eram necessários. Nas prateleiras, louças, copos, garrafas. 
A meio da sala, seis cadeiras à volta de uma mesa extensível com fruteira ao centro, numa pequena toalha de renda. Na parede vaga – a janela e a porta para o corredor ocupavam duas paredes – um louceiro elegante, com alçado de finas portas de madeira fazendo moldura a vidros cinzelados de intenção decorativa, dando realce às louças mais mimosas ali expostas.
Mais uma vez, a China presente num serviço de chá com carantonhas de olhos em bico, abundância de castanhos e modéstia de dourados.



Pequenos cálices de vidro lavrado e alguns copos cónicos de pé alto sôbre base circular azul, que lembro em particular por serem usados para bebermos uns batidos de claras com açúcar, que minha mãe alcunhava de farófias. 
Uma delícia.

Por uma porta ao lado do armário encaixado na parede, chega-se agora à cozinha, que não é grande.
Também aqui, integrando a parede em frente, a última do prédio, vê-se logo, mais um armário. Mas êste com um espaço quadrangular disponível abaixo das gavetas, onde sôbre uma laje, duas infusas de barro guardam a água tirada do poço, para beber e cozinhar.



Ainda na mesma parede, a chaminé, por cima de uma pequena fornalha de alvenaria e de um fogão de ferro, enfeitado de amarelos que davam um trabalhão a arear. De concepção primária e uso simples, a fornalha era mais usada: uma bola de cisco, uns pedaços de carvão, um fósforo, e havia lume, que atiçado por um abanico estava pronto para receber a panela. 
Eu gostava mais do fogão de ferro – não tinha de o limpar – usado quase só para cozinhados no fôrno. Assim que apanhava minha mãe distraída, lá estava eu a abrir a torneira do depósito de água quente e tirá-la para um púcaro, nem sei bem para quê. Na parede oposta, nos ganchos de uma armação de madeira, tachos, panelas, frigideiras e outros aprêstos próprios da cozinha, pendurados; e uma mesa com toalha de oleado, onde comíamos. 
Invariàvelmente ali pousada uma cafeteira de esmalte,



que fazendo jus ao nome, continha uma beberagem feita com pó de café torrado, mexido em água a ferver com uma colher de pau, que minha mãe passava o dia a beber. Muito gostava ela daquilo! 
Falta agora o mais importante… para mim. No meio do chão, os ladrilhos davam lugar a um quadrado de madeira com dobradiças e argola de ferro: a passagem para o subterrâneo. Toda a casa – exceptuados o pátio de entrada e a cozinha – era assoalhada; e o soalho assentava numa estrutura de vigas de madeira cruzadas, abaixo da qual havia um espaço vazio com chão de terra, que ganhava dimensão sob a cozinha. Era o subterrâneo.
Com apenas um pequeno respiradouro, cheirava a môfo, mas isso não me impedia de descer a escada sempre que podia e imaginar-me no centro de uma aventura, entre résteas de alhos e cebôlas, um saco de batatas 
e o pote das azeitonas.

Voltando à cozinha, mais um porta, entre a mesa e a lareira, e estamos no quintal, tendo à esquerda ainda outra porta – o término do corredor. Ao lado, um alegrête com salsa, coentros e hortelã, além de vistosas cravinas 
e bocas-de-lôbo. Três ou quatro passos e somos chegados ao vértice do rectângulo onde se abre o poço, protegido por um muro circular de noventa graus. A um par de metros, num pedaço do quintal, meu pai mandou construir uma casa de banho, que passou a ser tomado de um balde com chuveiro e torneira, pendurado de uma roldana, onde se despejavam panelas de água aquecida. Todos os asseios passaram para ali também, com as vantagens que pode imaginar-se, não obstante a inexistência de água canalizada. Foi um notável passo de avanço, mas ainda longe da já conseguida energia eléctrica, visível nos condutores com a borracha forrada a pano de sêda, entrançados e estendidos ao longo das paredes, entre grossos isoladores de porcelana e interruptores, de porcelana também êles.

Mais um pouco e estamos em outra esquina do rectângulo, onde começa a parede que dividida com o Joaquim Ventura e o capitão Santana, limita o estreito espaço apelidado de quintal.





No pátio

Encostados à parede, nos ladrilhos de fantasia do pátio como nas lajes dos seus degraus, vasos com espadas de São Jorge e aspidistras



davam um toque de frescura à entrada. Sentado no chão frio daquela pequena escada, gastei muitas horas, ora a colorir desenhos, ora a copiar em papel transparente, bonècada que tinha à mão. De início entusiasmado por minha mãe, ganhei gôsto ao uso dos lápis, que passou a ser uma diversão habitual. E foi copiando por cima que eduquei o traço e cheguei a ter algum jeito para desenhar.


Já para recitar…

Fui mesmo coagido por minha mãe, para exibição quando havia visitas – na sala de jantar ou no escritório – a decorar dois ingénuos textos rimados que acabei por dizer com desenvoltura e quem sabe, com vaidade.
Lembro-me de parte deles:

“O Muguette

O Muguette, o meu gatinho,
está muito desdentado…
É que êle é já tão vèlhinho,
muito vèlhinho, coitado!

Gosta de caçar ratinhos,
mas não os pode comer…”

e

“O Pirilau

O Pirilau, era um gatinho deveras mau:
Fazia sempre… Miau!... Miau!... pelo carapau.”


Anos depois

Entre 1977 e 1979 fui Chefe do Estado-Maior do Comando da Zona Marítima do Sul. Por vezes, apetecendo-me menos comer do que cirandar por Faro, usava o tempo do almôço em longas caminhadas que com freqüência iam dar ao Bom-João. Foi assim que passando frente à minha janela, vi ali assomar uma cara conhecida do bêco do Paulos, a Branca. Cumprimentei-a com familiaridade. Retribuindo embora, percebi que não me reconhecera. Identifiquei-me como o menino de trinta anos atrás. Abriu-se num sorriso. Entabulámos uma conversa cheia de recordações. A senhora, agora dona da casa, viúva do tenente Amaro, um camarada do Serviço Geral, convidou-me a entrar e fez-me vê-la de ponta a ponta. 
cheiro das habitações, o seu recheio e a disposição que tem, são de algum modo o retrato de quem nelas vive. Senti-o. As paredes e os espaços eram os mesmos… a casa completamente outra. Isso adivinhava-se, aliás, ainda na rua, onde, as portas eram agora de ferro e a janela de alumínio não tinha parapeito,



novidades que me provocaram uma antipatia instintiva involuntária.
Maior segurança agora, é certo – não só o ferro em vez da madeira, como melhores fechaduras – mas a verdade é que antes, essa questão não existia… quase se podia ter a porta aberta. E a solução segura, fôra conseguida sem atentar na preocupação estética, sem a arte que um marceneiro pusera na feitura daquela outra porta – daquela minha porta – onde posei com o 
único cão da casa.






José Guerreiro
27 de Abril de 2018