10.2.12

Não é que em narrativas anteriores tenha esgotado Moçambique enquanto tema, não. Mas hoje resolvi vir à minha África primeira. O Império Colonial Português estava quase intacto. O endereço postal de uma carta para Angola incluia ainda os dizeres ‘África Ocidental Portuguesa’ seguidos então pelo nome da colónia. Ir para África era de facto uma aventura, pelo menos aos olhos dos que cá ficavam. Os que iam, queriam vencer e arrostavam qualquer condição, por vezes situações muito precárias de insalubridade, isolamento, clima… que ultrapassavam com força de vontade, a ajuda dos que os tinham precedido e sorte. Foi uma África assim que primeiro conheci. Cá vamos pois.   


Minha Primeira África  

A guerra acabara poucos meses antes, mas a visão das bandeiras aliadas desfraldadas na varanda do Governo Civil já se lhe escondia no mais recôndito da memória. As bichas para o pão e o azeite estavam esquecidas. Mas não esquecera a lúdica tarefa – uns quatro anos atrás -  da colagem de fitas de papel nos vidros das portas e janelas, em que tanto se empenhara a ajudar a mãe. Para evitar estilhaços – diziam - no caso do bombardeio com que a aviação alemã ameaçava. Era o tempo em que nos assomávamos à janela porque passava um automóvel , ou basbaques, parávamos a olhar no alto o aeroplano que nos sobrevoava. 
Agora, já tinha nove anos e andava na 3ª classe. A escola  do Bom João era do outro lado da rua; talvez por isso, muito de raro não chegava em último. No fim da aula,  Dona Conceição escrevia no quadro o nome do melhor aluno do dia; e o seu aparecia muitas vezes. 
Rapazinho vivo, curioso e observador, colhia dos adultos com que conversava amiúde, ensinamentos que assimilava de imediato. 
Foi quando eclodiu a notícia e se tornou alvo de atenção e curiosidade: ‘Então, vais p’rà África?’. Sentia-se importante. Não conhecia ninguém que tivesse ido para África. Sabia, das aventuras que lia n’ ‘O Mosquito’ que ali encontraria leões e elefantes. Pretos não seriam novidade para si pois conhecia o Pedro que vendia cautelas na baixa de Faro. 


Fazia-lhe espécie que a preocupação mais visível em casa fosse a escolha do tecido arrendado para feitura dos mosquiteiros ou que tivesse ido a casa da Antónia tirar medidas para uns pijamas frescos de popelina. 
Como viveu em festa a preparação da viagem custou-lhe ver lágrimas à despedida. Muita gente na estação, muitos acenos e o resfolegar do combóio a pôr fim à tensão visível nos rostos mais queridos.  
Cinco dias na Pensão Tomarense, em Lisboa, foram um suplício: sopa de nabo a todas as refeições desconjuntou-lhe as entranhas. 
E chegou o dia 23 de Fevereiro de 1946 em que o “Lourenço Marques” ” largou, rumo a Luanda, sem escala. Ainda hoje, sabendo embora que não viu a linha do Equador, tem bem presente a sua imagem colhida nos  binóculos preparados que lhe deram;  e ninguém  o convence que o paquete não a transpôs dando um salto.

                    

Mês e meio em Luanda, em casa de um amigo do pai, aguardando decisão sobre a Capitania em que lhe caberia ser escrivão, foi tempo de fazer uma nova amizade – o Chico, menino da casa. Apreendeu  cores, cheiros, sabores, o exotismo das vestes, o falajar esquisito, indecifrável  e risonho… Comeu e gostou logo de mamão, de anona, apreciou as doces laranjas do Loge, aprendeu a dizer matabicho…  
Estranhou que o dinheiro fosse outro, que se chamasse angolar, não gostou de ver a sua conhecida moeda de dez tostões substituída pela nota de um angolar.  E aquele papel roxo que valia dois angolares e meio, em vez da pequenina moeda de vinte e cinco tostões pareceu-lhe puro mau gosto. 
Sem escola, cirandava com o Chico até onde podiam, não se afastando muito de casa. Estava de férias. Que chegaram ao fim no princípio de Maio. 
A bordo do “João Belo”, foram para Moçâmedes, cidade mais pequena, no Deserto do Namibe. Foram viver para o Hotel Moçâmedes onde estiveram quatro meses; depois para uma casa na Capitania; e mais tarde para uma outra, alugada. Sempre novas experiências! 
Matriculou-se na Escola 49, onde o ano lectivo tinha começado no início de Abril. Bom aluno e com quase 5 meses de freqüência da 3ª classe em Faro, não lhe custou distinguir-se. Pouco depois já fazia exame antecipado que o Governador Geral deferira e passava para a 4ª. Muito bem sucedido no exame, seguiu-se a admissão ao liceu com idêntico resultado. Em vez de perder os 6 meses de dessincronização dos anos lectivos, ganhara-os. 
Os professores Canedo e Vieira e os colegas Frota, Bauleth, Nito, Figueira – guarda-redes das futeboladas na areia do recreio – e o David, seu amigo e parceiro de carteira – negro como um tição – serão sempre lembranças suas. 
Como os doces de ginguba (amendoim) e os chupa-chupas do quiosque do Faustino ou a muamba de pichelim (peixe seco). Ou ainda as quitetas (conquilhas) que mariscava mesmo por trás da Capitania! Belos petiscos. Burriés, chegou a ir apanhá-los de passeio ao Saco do Giraúl. 
Uma vez foi a uma caçada às “cabras de leque”, no Pico do Azevedo. A um miúdo tudo parece imenso… Mas o Pico do Azevedo, conspícua elevação em pleno deserto, estava mesmo enxameado de cabras. Foi o que viu, ‘claramente visto’.  Seu pai, ‘Mauser’ em pontaria, acertou na barriga de uma, que andou mais de uma hora a despejar tripas à frente da carrinha e só parou quando atingida numa pata. Africanices… 
Também não esquecerá como se pedia ao mestre para ir à retrete: ‘Sô pessor, posso ir ao deserto?’ A uns metros da escola, transposto um muro… já era de facto deserto. 
Mas peculiar mesmo era o jardim, onde depois do sol posto os caranguejos assentavam arraiais. À noite, eram aos milhares e num pacífico restolho aos nossos pés, passeavam connosco. Difícil era não os pisar.
De manhã muito cedo, o espectáculo era outro. Viam-se magotes de criados, carregando grandes penicos de esmalte, muito altos, a caminho da beira-mar, para despejo dos dejectos da véspera. Tempos outros… 
Na praça, com três ou quatro táxis, o Pinto, defesa do Atlético, dava nas vistas, ao volante de um ‘bruto’ e flamejante automóvel americano, vermelho carmim. 
Enquanto viveu no hotel, conheceu muitos pilotos da DTA, asas ao peito, sempre vestidos de branco (Camisa, calção, sapatos e meias altas) com as caixas dos óculos “Wilsonites” à cinta, óculos que eram a sua fascinação.  O Osvaldo, filho dos donos do hotel e a prima, Anita, foram amigos daquela curta permanência. Como também as filhas do Delegado de Saúde, homem robusto, sem braço esquerdo, que tinha perdido a defender-se do ataque de uma leoa, mais para Sul, para a zona de Porto Alexandre. 
Porto Alexandre, vila piscatória com o cheiro de Olhão, a que a escola o levou a fazer uma visita de estudo e onde numa fábrica (João Patrício Correia) viu o percurso do atum desde o  desembarque à saída em lata. 
Tão poucos meses e que deram para tanta coisa: foi também o tempo em  que as freiras da Missão lhe deram por finda a catequese iniciada na Capela do Alto de Santo António em Faro e recebeu Comunhão Solene e Crisma na Igreja de Santo Adrião.

Havia dois liceus em Angola, ambos chamados nacionais: um em Luanda, outro em Sá da Bandeira. Este, muito mais próximo de casa; e além disso dispondo de um internato que recebia alunos de todo aquele imenso território. Militares e funcionáros públicos pagavam mensalidades menores pelo alojamento dos seus filhos. Fazendeiros e outros profissionais, igualmente espalhados por Angola e com filhos a estudar, também para ali os mandavam. Não havia internato para raparigas, embora o liceu fosse misto. Claro que foi escolhido o Liceu Nacional Diogo Cão, em Sá da Bandeira, cidade que tendo já esse nome era também ainda, o Lubango. 
Tinha chegado o tempo próprio, estava com dez anos recém feitos e foi posto fora de casa. Os pais meteram-no num avião e… ala!



A DTA (Divisão dos Transportes Aéreos), criada em 1938 e renomeada DTA – Linhas Aéreas de Angola, em 1940, começou a voar em Julho de 1940, com aviões idênticos ao da imagem – o bimotor biplano inglês DeHavilland DH89A Dragon Rapide – com familiaridade tratado apenas por “Dragon”. Metia 7 passageiros. Foi numa destas aeronaves que teve o seu baptismo de voo. E que baptismo!... Subir à Serra da Chela – zona de assanhadas trovoadas africanas – entre chuva, vento, raios e coriscos… foi um baptizado de estalo.

Chegou uns dias antes do início das aulas. Com muito boa capacidade de adaptação, rápido se sentiu em casa. Foi conhecer o Senhor Cristão, que seria o seu encarregado de educação. Bàsicamente era um cofre. Assinava vales em que indicava o destino (presumido) do dinheiro e dele recebia angolares. Assim pagou as propinas, os livros, o material de desenho, etc. Com o tempo passou a ter mais necessidades e a fazer umas aldrabices, como comprar duas vezes o Dicionário de Francês – Português ou exagerar no número de frascos de tinta da china. O saldo era convertido em ‘chewing gum’, bolos, um pente ou uma lanterna (era um utensílio na moda) e cigarros. 

Sim, começou a fumar com dez anos. Mas não por muito tempo. Largou o vício logo aos 53. Foi o caso de ter sido interpelado por um colega de internato, o Abel Lara, que andava no 7º ano, e lhe pediu um cigarro. Que não tinha… que não fumava. ‘Como?... Aqui, quem não fuma é menina!’. Quem é que queria ser menina? Foi logo ao ‘Palhotas’, uma espécie de cantineiro cafrealizado com uma lojeca infecta e comprou um pacote de ‘Caricocos’ – 300 cigarros 


enfiados num cilindro de papel pardo. Tabaco forte mas bom. Daí a três ou quatro meses fumava como um homem. 
Este sistema algo endinheirado de viver não durou muito. O pai percebeu e impôs-lhe um programa tipo FMI do milénio passado e cortou-lhe a coleta. 
Nem pai nem mãe alguma vez foram a Sá da Bandeira, não tendo por isso sabido que chãos pisou o primogénito naqueles primeiros quatros anos de liceu. Mas confiavam nele. E esquecendo os riscos que se correm e as pequenas asneiras que se cometem como parte integrante do crescimento, não havia razão para que não confiassem. 
Nas férias grandes que começavam dias antes do Natal, ia para casa. Nas férias intermédias nem sempre foi. Mas nunca se deixou abalar por saüdades. Mantinha correspondência com a mãe e de quando em vez escrevia-se com o pai. Soube preencher bem o tempo com a aprendizagem de ser homem, aproveitando alguma independência e capacidade de decisão que a circunstância lhe conferia.

Sá da Bandeira, no planalto da Huíla, a 1760 metros de altitude, chegando em Junho a atingir temperaturas negativas, facilitava aos estudantes o uso de capa e batina. Muitos o faziam. Isso tinha a ver também com uma academia talhada à imagem de Coimbra e que obtivera por decreto do ‘Dux Veteranorum’ da praxe coimbrã, autorização para uma práctica idêntica. Assim era. Hoje, abencerragem dessa vida estudantil, sobrevive o Reino de Maconge, com a sua gerôntica mas sempre moça aristocracia, que se vai reünindo aqui e ali em sessões cada vez menos avinhadas.

O jovem bonjoanense sentia-se bem. Chegava-lhe alguma atenção nas aulas para levar a carta a Garcia. Tinha todo o tempo para brincar. Explorava a imensa área do internato. Ia comendo goiabas verdes pelo caminho; de parceria com mais dois ou três, ‘era dono’ de um mirangoleiro escondido numa espécie de pequena gruta onde se deleitavam a comer os mirangolos mais maduros, por vezes pagando o tributo ensanguentado cobrado pelos espinhos de protecção da planta; iam aos pássaros de chifuta (fisga) em punho, eram o terror das tchiriqüatas. No regresso às camaratas havia que ter-se cuidado, não lhes fosse aparecer ao caminho a Nina (Dona Virgínia, mulher do Director do Internato, Dr. Carlos Sotto-Mayor Negrão) que os podia vergastar com a sua vara de marmeleiro.

Chegou Dezembro. Saíram as notas finais e o nº 23 da turma ‘C’ do 1º ano, passou com boas médias. 
Enfiou as roupas, livros  e mais pertences, no malão de madeira de mulemba guardado na cave para o ano seguinte e foi com uma pequena mala apanhar o combóio para Moçâmedes. 

Ficou surpreendido ao encontrar o pai na baixa da cidade. Supunha-o na Baía dos Tigres, onde era agora Delegado Marítimo. Afinal já não era. Ia a caminho da Capitania do Lobito, escrivão de novo. Foi um encontro interessantíssimo, ele também surpreendido pela presença do filho, pensando que as aulas ainda duravam. Dois velhos amigos que por acaso se encontram e põem a conversa em dia. 
Foram os dois para o campo de aviação. O pai embarcou primeiro no ‘Dakota’ para o Lobito; o filho pouco depois, no ‘Stinson’, para a Baía dos Tigres. 

Mais um voo atribulado, desta vez por outras razões que não atmosféricas. É que o ‘Stinson’, pequena avioneta para piloto e mais três, levava os irmãos Trindade, dois engenheiros muito volumosos; e o de maior capacidade sentou-se-lhe ao lado no banco mais a ré. 
Vestiam ambos de càqui dos pés à cabeça, onde enterravam capacetes, também eles forrados a càqui. As meias altas pareciam grevas enroladas nas canelas. Espremido contra a fuselagem não conseguiu disfrutar a viagem. 

Pousaram na pista da Baía dos Tigres que era em simultâneo a rua principal. Trezentos metros de cimento sobre a areia, areia de praia, a única que havia na imensa península. 
A Oeste e a pouca distância da pista, uns quantos edifícios, todos da mesma traça: Hospital, Escola, Correios, Delegação Marítima, etc. Não foi difícil saber para onde ir.



E já em casa ouviu com espanto o que a mãe lhe contou. Saído do avião e caminhando pela pista de malinha na mão em direcção a mais uma nova e curta morada, fora visto pelo Henrique, homem quarentão, ali doméstico, que correra para dentro gritando: ‘Senhora, menino chegou, menino chegou!” Ora, não sendo esperado e pisando pela primeira vez o pequeno povoado, como é que Henrique o conhecera? Pelo andar, explicou ele, o andar que era igual ao do patrão. Ficou provada a importância dos genes. 

O enorme deserto que rodeava a Baía dos Tigres fazia do local uma prisão natural. Por isso muitos condenados eram para ali enviados e cumpriam as penas sem estarem enjaulados. Era o caso do Henrique, condenado por homicídio da mulher. 

Com excepção das autoridades e dos funcionários públicos – pouca gente – quase todos viviam da pesca: farinha e óleo de peixe. Sem terra arável e sem água potável o abastecimento chegava por mar. 
O ’28 de Maio’ pequeno navio do Estado, vinha regularmente encher o depósito de água. Trazia frescos  e transportava carga e alguns passageiros. 


Foi nele que com a mãe e a irmã seguiu rumo ao Lobito, ao encontro do pai; e da Consoada, a um par de dias de distância. 

Na ausência do chefe da família escoltava as mulheres da casa. 

Afinal, já tinha onze anos – tinha-os completado dias antes na Baía dos Tigres – o 1º ano do liceu era vencido, já fumava… 
Estava um homem.

Mezena


Escrito para o 'Macua' de Dezembro de 2011
 



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