Torna-viagem
O que agora escrevo dá continuação ao ‘Livro de Ordens do
Comandante’.
Depois do mergulho com que Neptuno me convocou, mostrando
grande exagero no desejo de melhor me conhecer, duas semanas passarão, antes
que ‘Torna-viagem’ tome sentido como título.
Lourenço
Marques
Como já foi dito, o Estado-Maior ordenou que não navegássemos a mais de doze nós. Depois, mandou que escalássemos Lourenço Marques para embarcar munições. O nível de ameaça crescente nas posições tomadas pela Índia em vários palcos internacionais, fez-nos crer que aquela arribada enriqueceria os paióis que serviam as nossas duas peças de 101.6 milímetros e as seis Bofors anti-aéreas de 40 milímetros. Estávamos enganados. O que nos esperava eram alguns cunhetes de munições para armamento portátil: de 7.92 milímetros para as espingardas Mauser e de 9 milímetros para as pistolas-metralhadoras e pistolas. E, vá lá, alguma coisa, pouca, para a artilharia do Exército em Goa. Nada que pudesse compensar a perda de um dia de viagem e ser contributo válido para resolver o que iríamos enfrentar.
Deixou de haver dúvidas quanto à pretensão de atrasar-nos.
Era meio de Dezembro. Estivemos no porto pouco mais que um
dia. Foi suficiente. Como ‘quem procura sempre encontra’ não deixei de me fazer
aparecido em casa da autora do telegrama de felicitações recebido dias antes.
Senti-me rodeado de grande simpatia por parte dela e dos pais. Estava ocupada
como professora, mas tirou a tarde para me levar a passeio pela cidade. Imagem
de firme registo na memória - enquanto lhe olhava o joelho que se mostrava no
pisar da embraiagem - ficou-me a sua mão esquerda tomando com firmeza o punho e
manobrando com desenvoltura a alavanca de velocidades do ‘carocha’. Sendo
dextro e tendo à esquerda uma mão inepta até para as mais elementares tarefas,
sinto um arrepio mental quando vejo um canhoto em acção. Não é que ela o fosse
de facto, mas com o volante do lado direito, não tinha outro remédio. Afinal, também
eu que tempo depois em duas comissões estive oito anos em Moçambique, acabei
por ser exímio sinistro… mas sem conseguir ir além das mudanças de velocidade.
Confessou-se-me interessada em outro rapaz, por sinal meu
conhecido, mas isso não arrefeceu a vontade de a reconquistar. Empreitada
difícil, a caminho de uma Índia, ela própria a ferver em ânsias de reconquista;
e que, tudo indicava, não nos concederia retôrno, como séculos atrás fizera a
Vasco da Gama.
Despedida
Essa mesma convicção de que o nosso caminho marítimo para a Índia
era só de ida, foi o móbil que atirou para o cais toda aquela pequena multidão,
ávida de participar na mais nova página da nossa história, que se adivinhava –
tinha tudo para isso – viria a ser um funesto sucesso. E como os finais aziagos
são mais atractivos, ali estavam para um último adeus. Lia-se-lhes nos olhos e
no peso da expressão, como se condoíam de nós.
As suas vozes sussurradas continham o silêncio das horas
grandes. Os bem intencionados sorrisos que nos atiravam diluíam-se num esgar de
desesperança, podendo imaginar-se sobre a turba o voejar de morcegos de mau
agouro.
Os nossos amigos, os nossos mais próximos, sublimavam o
sentimento geral de derrota e tentavam banalizar o discurso e mascarar com
leveza, a alma fadista de tons menores que nos vem de longe.
Sarmento Rodrigues, governador-geral, foi a bordo despedir-se
de nós. Do Comandante, que o antecedera no Palácio da Ponta Vermelha. Dos
oficiais, um a um, tratando a todos pelo nome. Aos três mais novos, seus
comandados no último ano de freqüência da Escola Naval, recordando episódios escolares
que tínhamos protagonizado e davam agora jeito para uma crítica galhofeira.
Olhando fundo, retesando o queixo com firmeza, não deixando
que as palavras lhe descambassem em pieguice, esteve presente o tempo todo o
militar, a lembrar-nos essa condição comum.
Com ele aqui estamos, o Curso ‘Pedro Nunes’ – falta o
Clarimundo – no átrio da Escola Naval, durante o nosso Baile de Finalistas, na
noite de 16 de Janeiro de 1959. Tão meninos…
Parte da guarnição, sem tarefa imediata, expunha-se no cais à
proximidade solidária de tanta gente anónima. Eu fazia um pequeno grupo com a
menina dos meus sonhos e seus pais que também tinham vindo. O Secretário-Geral
do governo de Moçambique, outro oficial da Armada, Vasco Rodrigues, estava na
muralha com as filhas a dar-nos o seu adeus informal.
Até que apitou à faina e se apertaram os últimos abraços, se
deram alguns beijos esquivos e outros nem tanto; e reembarcámos.
O navio afastou-se fazendo perder tamanho ao cais, às
pessoas no cais e aos lenços com que nos acenavam. De bordo, fizeram-se continências
e agitaram-se bonés e panamás.
Foi então que dei por falta do ‘Cunene’. Foi o primeiro cão
que tive. Deu-mo um camarada, o Sales Henriques de Brito, em Moçâmedes, onde
era Capitão do Porto. Chegou-me às mãos ainda cachorrinho, um perdigueiro muito
bonito, malhado de castanho macio e branco. Em pouco tempo já não era meu.
Tinha sido adoptado pelo pessoal e era de todos. Um dia caíu na escada que
descia para onde se fazia o rancho e partiu uma perna. Foi o Cruz Afonso,
veterinário em Luanda, anos atrás colega mais velho no Liceu Diogo Cão em Sá da
Bandeira, que lhe reparou a avaria. Ficou bom, mas não chegou a ter tempo para crescer
entre nós. Só ia a terra acompanhado; e ninguém deu pela saída dele no dia da
largada. Ou era dado a prèmonições e a Índia lhe cheirou mal à distância ou mão
benfazeja o quis livrar de uma sina que se adivinhava má. Tenha sido por alguma
daquelas razões ou por qualquer outra, o certo é que faltou ao embarque. Foi o
único. Verdade que não fizera juramento de bandeira.
A nós, parecia ter chegado o tempo de honrar até ao limite,
o que juráramos.
Rumo
a Goa
A idèia inicial que nos chegou foi que o ‘Afonso’ estava a
precisar de ser assistido em estaleiro. Previu-se a nossa deslocação para Karachi,
onde nos iríamos encontrar, abasteceríamos, receberíamos testemunho e
seguiríamos para Goa. Com a dose de imprevisibilidade de uma situação de guerra
iminente, não estava no entanto posta de parte a nossa ida directa para Goa.
Acabou por ser esta a decisão final, de resto mais inteligente, por significar
que em vez de um só navio, menos artilhado, haveria dois na liça, sendo nós
portanto um reforço da presença naval. A rendição do ‘Afonso de Albuquerque’
pela ‘Diogo Gomes’ iria somar desvantagens para o nosso lado, se é que em face
de tão grande desproporção tivesse alguma importância que as quatro peças de
120 do ‘Afonso’, que com canos bem espelhados, boas estrias, e pólvoras jovens
poderiam atingir alvos a 21 km, fossem substituídas pelas duas peças de 101.6
da ‘Diogo Gomes’ que faziam metade daquele alcance.
Durante o percurso reiniciado à saída de Lourenço Marques voltou-se
às determinações contidas no Livro de Ordens do Comandante - o treinamento do
pessoal.
A insistência na execução das tarefas levou-nos a um
assinalável apuro de forma e não seria pelo desempenho da guarnição que viria a
perder-se a guerra. Porém, quanto mais depressa o destino caminhava para nós,
mais se sentia a necessidade de ordenar o pensamento, fazer o balanço de quanto
e como se vivera, rejeitar o supérfluo e o mau; e manter nas prateleiras de
cima o que nos pusesse de bem com a vida, nos mantivesse tão serenos quanto
possível… preparados para tudo.
Essa preparação mental e psicológica era primordial. Uma
tarefa individual. De cada um para consigo mesmo. Cientes de que, se e quando o
conflito armado eclodisse, a presumível e enorme desigualdade de forças nos
deixava de sobra nulas possibilidades de êxito, só cabeças bem ordenadas e
fortes conseguiriam aproximar-se daquele Bojador.
Começavam a tomar sentido as
palavras do padre António Vieira: «um palmo de terra para nascer e o mundo
inteiro para morrer».
Informações
Não havia relações diplomáticas com a Índia, o que obrigava
a amizades alternativas.
Considerando adquirido que:
- As Necessidades tinham escolhido bem os diplomatas que
dispuseram no terreno e que estes eram gente apta, diligente e inteligente;
- Se sabia do esforço para equipar a sua Marinha que a Índia
fazia ao balcão de compras do Reino Unido, onde, aí sim, tínhamos sempre uma vasta
missão diplomática, escolhida entre a elite;
- A Grã-Bretanha consegue às vezes fazer jus ao rèclamo à volta
da perenidade da nossa aliança secular;
- Toda a informação colhida pelas instâncias a isso dedicadas
era canalizada para as entidades onde fazia falta, no caso o Estado-Maior da
Armada;
- O Estado-Maior, ele próprio, tinha capacidades que
investia com denôdo na recolha de informações e as fazia chegar onde seriam
úteis - os navios de guerra ao seu dispor.
Considerando certas as premissas enunciadas, tem que fazer-se
a pergunta:
Porque era tão escasso o conhecimento que nos chegava àcerca
dos meios navais do inimigo?
Sim, tínhamos o Jane’s Fighting Ships, sim, constava que
tinham fragatas da classe ‘Leopard’, sim, parece que tinham comprado um
porta-aviões… Parece…?...?...?
Mas, quantos navios, quais, com que características de
deslocamento, velocidade, que artilharia, torpedos, aviões, que poder de fogo,
com que alcance?
Sejamos realistas. Em verdade pouco interessava saber tanto.
Chegava-nos ter a noção do desequilíbrio das duas forças, que fazia do seu
embate uma desigualdade… primária.
As unidades navais portuguesas na Índia representavam em
relação ao poderio naval indiano, a mosca perante o mata-moscas… um Sansão a
quem Dalila não tivesse deixado vestígio de cabelo.
É que a formação de uma armada forte, tinha outro alvo que
não a expulsão de Portugal da península. A idèia olhava mais longe e tinha a
ver com a grande intolerância religiosa entre hindus e muçulmanos e os ajustes
de contas por fazer, acumulados ao longo de uma eternidade. Foi aliás essa
fricção eivada de violência surda que obrigou à criação de dois estados para
que fosse viável a concessão da independência. Anexar Goa era apenas um
exercício militar, um ordenamento das tropas, manobras para testar capacidades
e melhorar a eficiência na futura luta com o Paquistão.
Era Nehru que nos dizia que a bem ou a mal tomaria Goa. Era
Nehru que nos dava indicação do movimento dos seus meios militares…
…enquanto as ‘mais
altas instâncias’ de Lisboa, que ali nos tinham deixado à mercê, tonitruavam um
recado à nação: do Estado Português da Índia não se receberiam vencidos… só
mortos ou vencedores. Recado que era um reflexo de má consciência, de uma
política mal conduzida que não tinha sabido ler os sinais que o mundo emitira.
A responsabilidade do desastre anunciado, como é hábito em tais circunstâncias
era atirada para os profissionais da guerra, que passam por ter as costas
largas.
Estratégia
Não havia margem para desenhar uma estratégia face à nossa
pequenez militar no terreno.
Digamos que havia uma ‘não estratégia’. David e Golias não
terão sido alheios ao seu nascimento na cabeça do Comandante. Por mais pequeno
que seja, alguém que se sinta acüado vende sempre cara a vida.
Estávamos convictos de que seríamos interceptados antes que
pudéssemos chegar a Goa. Se mais não soubéssemos, a marinha indiana tinha no
final dos anos quarenta, pelo menos uma corveta do tempo da Índia colonial, um
destroyer da classe ‘R’ e o cruzador ‘Delhi’, um histórico que enquanto ‘Achilles’
fora emprestado pela Grã-Bretanha à Nova Zelândia, sob cuja bandeira serviu na
2ª Grande Guerra, onde combateu ao lado dos ‘Exeter’ e ‘Ajax’, tendo ganho
cicatrizes na Batalha do Rio da Prata que terminou com a auto-destruição e
afundamento do cruzador pesado alemão (por vezes tratado como couraçado de
bolso) ‘Almirante Graf Spee’. Não considerando mais que o ‘Delhi’,
defrontrar-nos-íamos com oito peças de seis polegadas e oito tubos de
lança-torpedos de vinte e uma polegadas, que nos poderiam atingir muito, mas
muito antes, que pudéssemos nós fazê-lo com as nossas duas peças de quatro
polegadas.
Foi este o cenário a partir do qual ganhou forma o que
fazer:
Aproximarmo-nos de quem nos enfrentasse, tão engenhosamente
quanto soubéssemos e pudéssemos, executando manobras evasivas (ziguezagueando),
tentando escapar aos disparos inimigos. Se conseguíssemos chegar a uma
distância propícia, fazer alguns tiros, mas ràpidamente desistir do combate e
pormo-nos em fuga, na tentativa de que provocados, nos caçassem. Mais velozes,
aproximar-se-iam disparando. Com mudanças súbitas de rumo e diferentes ângulos
de visão como alvo, continuaríamos a tentar escapar a quantos impates
pudéssemos; e se porventura ainda navegássemos quando estivessem muito
próximos, aí usaríamos a funda de David contra Golias, invertendo o rumo para
abalroar o caçador, enfiando-lhe a proa na amura que mais jeito desse.
Estratégia?
Que mais poderia ser feito?
18
de Dezembro de 1961
Estávamos a jantar. Com grande estardalhaço abre-se a porta
da Câmara, um marujo irrompe por ali e detém-se junto ao canto da mesa. Falando
com dificuldade – a correria sugara-lhe o ar – diz-nos aos repelões que a Índia
tinha entrado em Goa. Era o marinheiro-fogueiro Ferreira, que acabara de ler a
Press Lusitânia na cabina de TSF e se adiantava a telegrafistas e sinaleiros p’ra
dar a notícia em primeira mão.
Agora navegávamos para um combate já iniciado. Tinham-se
acabado os ‘ses’.
Não tardou muito, uma ordem de Lisboa mandava-nos ir
abastecer de nafta e aguardar ordens em Diego Suárez. De facto estávamos
próximos do Arquipélago das Ilhas Comores e Diego Suárez ficava ali à mão.
Diego
Suarez
Avisados da grande impopularidade de que gozávamos em
Madagáscar, não tivemos autorização de pôr o pé em terra.
Não obstante, termos ali estadiado por vinte e quatro horas
apenas, houve convite para uma visita de
câmara. Foram o Carocho, o Isaías e o doutor médico, excelente e tímido moço
que se esquivava àquele tipo de convívios, escudando-se na sua pouca aptidão
para o inglês, idioma em que habitualmente aconteciam. Ainda se fosse em
francês… Pois era o caso; e o Almeida e Castro foi. Parece que mal abriu o
bico, obrigando os outros a um rápido rebuscar em reminiscências das páginas de
‘Mon premier livre de français’ e encontrarem um francês liceal para
serviços mínimos. Ó doutor, ficaste mal visto!
Esta tinha-me passado ao lado. Soube-a agora do Isaías
quando lhe telefonei – telefonei a vários camaradas - para juntar à minha a
memória deles e procurar a confirmação de pormenores desta comum vivência.
Recebeu-se entretanto ordem para ir aguardar ordens noutro
poiso: Porto Amélia.
Anexação
de Goa
Antes de arrumar o assunto Índia quis satisfazer a
curiosidade algo mórbida de saber que Armada poderia ter interrompido a viagem
da ‘Diogo Gomes’ para Goa e com muita probabilidade a trajectória de muitos de
nós para o futuro.
Integrado numa estratégia de consolidação da independência,
a União Indiana arquitectou um plano ambicioso de 15 anos para reforço militar,
transformado em 1954, por constricção financeira, num plano de 6 anos. Revisto
quase de seguida, foi ampliado o número de unidades navais a adquirir e o prazo
de execução passou para 10 anos. Foi nesta fase do projecto que foi levada a
cabo a Operação Vijay de invasão, ocupação, libertação ou anexação de Goa,
Damão e Diu.
Aquando do ataque ao então Estado Português da Índia, a
Armada indiana apresentou-se assim:
…para enfrentar a simbólica
que íamos a caminho de integrar.
Colectei todos estes elementos para fazer uma análise
comparativa entre as duas Armadas presentes nos mares de Goa em 18 de Dezembro.
Desisti, porque um olhar chega para evidenciar como era pretensioso ordenar que
derrotássemos a Índia ou pelo menos aguentássemos o combate por uma semana,
como acabou por pretender o Presidente do Conselho de Ministros. Limitando-me
apenas aos deslocamentos – mais fácil – constatei que a soma dos dos navios
indianos era 24 vezes superior à soma dos dos nossos.
Porto
Amélia
Encontrámos a ‘Francisco d’Almeida’ em Porto Amélia. Pouco
nos ligaram, ocupados que estavam em comemorar o aniversário do Zilhão. Devo
ter ido cumprimentar o Comandante, de quem era amigo desde os nove anos, era
ele Capitão do Porto de Moçâmedes.
A evolução dos acontecimentos em Goa alterou as nossas
vidas. Claro que lamentávamos o que teria sucedido aos que lá estavam… e o que
estaria sucedendo ainda. Mas não se leve a mal que tenhamos voltado a sorrir
com os olhos. Se eu tinha recomeçado a contagem da vida uma semana antes,
aquando do mergulho no Índico, podia agora azerar tudo de novo.
Com o espírito liberto do peso que o sufocava, o pessoal deu
largas ao seu contentamento. E a complementar essa alegria, recebeu uns
dinheiros atrasados que chegaram a 7 contos de réis para alguns marinheiros,
sendo que nessa altura o vencimento-base de um 2º tenente era de 3.600§oo.
Chegada a hora de licenças, o marujal correu para terra
disposto a desforrar-se das ansiedades e temores recentes. Cabia-me naquele dia
a braçadeira de Oficial de Serviço; e a Divisão decorria sem sobressaltos. Decorria…
até que, já noite, chegou a notícia de que os marinheiros da ‘Diogo Gomes’
tinham armado uma imensa zaragata e estavam a partir um bar na cidade. Nomeados
‘ad hoc’ para irem a terra rebocar aquele pessoal, seguiram o Janes Semedo e o
Gomes Teixeira, com um par de praças da guarda. Passado não muito tempo estava
tudo de volta. A bordo, ao cimo da prancha, eu, caneta em riste e o Livro de
Ocorrências na outra mão. Nas proximidades, a bordo e em terra, montes de
curiosos. Havia uniformes rasgados, algumas equimoses, poucas; e toda a gente
me pareceu nada constrangida com a situação, antes com uma expressão de alívio,
como se destruir um bar tivesse sido apenas a mèzinha necessária ao exorcismo dos
fantasmas acumulados no último mês. A todos ia pedindo o ‘algarismo’ – número
de matrícula – e tomando nota dos sinais exteriores de pancadaria. Fez-se bicha
ao longo da prancha, pois o ritual demorava algum tempo. No fim, tinha ‘posto
no livro’ vinte e uma praças do nosso navio. Não me lembro dos castigos
aplicados, mas não creio que se tenha ido muito além de uns quantos dias de
privação de saída. Disse-se depois que tudo tinha começado quando um conhecido
marinheiro radarista, exibira, agitando na mão, em leque, as notas recebidas,
uma exorbitância. Deixou-as cair e não tendo conseguido apanhar o dinheiro todo,
desatou à bordoada, que se generalizou. É natural que o álcool não tenha sido
alheio ao ocorrido.
Passámos o Natal em Porto Amélia e creio que foi em 27 de
Dezembro que rumámos a Sul.
Presunção
e água benta…
Claro que ninguém nos disse que parâmetros foram tidos em
conta na escolha do nosso navio para uma missão de tão duvidoso sucesso como a
que nos foi cometida. Decerto o Chefe do Estado-Maior da Armada terá ouvido
opiniões, tê-las-á até pesado, mas este era o caso típico de uma decisão
unipessoal e difícil.
Porquê a ‘Diogo Gomes’?
O desempenho do navio em Angola estava a ser muito bom. A
força de desembarque vinha cumprindo sem mácula as suas missões - embora tenha havido um acidente mortal. A guarnição
passava por estar bem enquadrada, ser disciplinada e operacional. Mas tudo isto,
e mais umas quantas loas que se lhe poderiam juntar, era mais ou menos comum às
outras unidades em serviço na costa de Angola.
Que poderia então singularizar a ‘Diogo Gomes’? Só podia ser
o Comandante.
Pedro Correia de Barros era um oficial distinto que
enobrecia o navio e sabia colher dos homens que comandava o que de melhor
tivessem. Andara pelos hidroaviões e pela política, onde ganhara a confiança do
Estado Novo, sem que alguma vez se lhe tenha notado em actos de comando que
pusesse na lapela o emblema do clube. Era honesto, digno, responsável e
corajoso. Distante por timidez, comandava sem sobranceria e tinha a rara qualidade
de saber na hora de decidir, usar de frieza para separar o essencial do que
apenas embonecava o embrulho.
Assim, a nossa fragata era de facto um conjunto homogéneo,
harmonioso e eficiente que almejava sempre uma bitola mais alta. Éramos uma
equipa.
Um
parêntesis no futuro
Correia de Barros e Paulino Pereira, seu antecessor na
‘Diogo Gomes’, foram à Estrêla ver-me casar e estiveram na bôda em Montes
Claros.
Um par de anos depois, Correia de Barros chefiava uma unidade
complexa que deixara de ser Corpo de
Marinheiros da Armada. Integrava o Grupo Nº 2 de Escolas da Armada – com uma
extensão em Vale de Zebro, a Escola de Fuzileiros – e a 2ª Repartição da
Direcção do Serviço do Pessoal. Para esta última me levou, como já antes fizera
com o Semedo. Chefiei a Brigada dos Artilheiros, a 1ª; e reformada a
repartição, mantendo a chefia da 1ª Brigada que recebeu os efectivos de mais
umas quantas classes, fundei e passei a chefiar também a 5ª Brigada, a dos
Fuzileiros.
Corria 1965 e minha mulher esperava para Setembro o nosso
segundo filho. Morávamos perto de Cacilhas, minha sogra vivia em Lisboa, manteve-se
indisponível e ‘comme d’habitude’ dali não viria ajuda. Pela minha parte, não
tinha ninguém perto a quem pedir apoio. Tinha licença para gozar, expus a necessidade
de ajudar minha mulher e pedi ao Comandante para entrar de licença.
- Nem pense nisso!
Na verdade havia sempre muito que fazer. Talvez fosse o
caso, não me lembro, de ter que se nomear algum destacamento ou companhia de
fuzileiros para o Ultramar.
Fora de hipótese estava contratar alguém que nos valesse.
Lembro-me que em 1965 me sobrava quase uma semana quando o salário acabava. Expliquei-lhe
minuciosamente o impasse, mas licença não tive.
O Comandante do Grupo de Escolas tinha ali residência própria
(que não usava a não ser para almoçar) e dispunha de um criado, um 1º Criado,
que lhe mantinha os aposentos e o servia. Ao tempo era o José, um velho 1º
Criado de andar pesadão algo trôpego, cabeça branca e ar de avô, quase a cair
da tripeça. E não é que o pobre do José recebeu ordem para prestar serviço em
nossa casa quando minha mulher saiu com o miúdo da Clínica de S. Miguel?!
Coitada! Mal sabia o que dizer ao senhor para fazer. Lá se foi incumbindo de
arrumações, limpezas e caldinhos…
Não conheço mais ninguém que tenha tido o privilégio de um
1º Criado em casa.
Era assim também, o Comandante Correia de Barros.
Torna-viagem
Saímos de Porto Amélia sem o Ferreira, aquele mesmo que
anunciara a invasão. Faltou ao embarque. Tomou depois um avião e estava à nossa
espera no cais seguinte. Deve ter arquitectado uma boa razão, pois não recordo
que tenha havido conseqüências. No Paquitequete havia morenas lindas e
esculturais e tenho para mim ter uma delas sido a razão do deslize.
De novo a caminho de Lourenço Marques vinha todo contente
por poder rever a minha ex-'fidanzata'.
Aguardaríamos em LM a chegada de 1962 e partiríamos para a
Guiné na manhã de 2 de Janeiro.
A escolha da ‘Diogo Gomes’ para a Guiné, tal como fôra para
a Índia, não terá sido ocasional. Adivinhava-se que as sementes de insurreição
postas a germinar por toda a África colonial, tinham ali terreno fértil. O
navio atingira um estado de prontidão que o recomendava para o desempenho de qualquer
missão e a que lhe foi destinada executar na Guiné - presença dissuasora –
parecia simples. Embora a revolta dos marinheiros da Casa Gouveia no cais do
Pidgiguiti já tivesse mais de dois anos, o PAIGC ainda não tomara as rédeas e o
período Guiné seria pacífico.
Depois destas incursões no futuro, voltemos ao agora, que
convém recordar neste discorrer de lembranças, será 29 ou 30 de Dezembro de
1961, em que regressámos à capital de Moçambique.
Sei que na última noite do ano jantei no Polana com ela e
com os pais. Havia uma zona do hotel vedada, que percebi estar destinada à
festa de fim do ano. Num daqueles repentes em que era useiro, escusei-me,
levantei-me da mesa e fui comprar dois ingressos para a festa. Caríssimos. Regressado
à mesa, convidei-a para meu par. Consultados os pais, mais os olhos que as
palavras, o convite foi aceite. Rejubilei.
Voltávamos a um baile… volvidos quase dois anos, tê-la-ia de
novo nos braços… as engrenagens da minha imaginação tomaram o freio nos dentes.
Logo eu, sempre avesso àquele muito programado festejo de
mudança de ano, a meter-me na balbúrdia e de vontade própria! Quem diria? Como
‘o sonho comanda a vida’, hem!, Gedeão?
Conversámos, bebemos, e dançámos, em volteios, ondas e
rodopios, de bem com a música, enlaçados não com o mesmo amoroso e quente
apêrto de outros tempos, mas tendo mesmo assim, cada um consciência do corpo do
outro. Tudo parecia encaminhar-se para um regresso e a seguir tudo ruiu. Quando
as cornetas e apitos nos deram fé da meia-noite, toda a gente à volta se
abraçava e ao meu apelo mudo deu a face a beijar e não a boca, aí, como num
passe de mágica, desfez-se um contacto, houve um apagão e ela deixou de ter
espaço na minha vida. Assim mesmo. Definitivo. O pensamento não chegou a ter presença.
Tão sòmente um automático e instantâneo sentimento de rejeição. Fui levá-la a
casa e horas depois ainda lá almocei, porque já antes aceitara o convite dos
pais.
O golpe de Beja ocorrido na noite anterior foi aturado tema
da conversa que mantive com o pai, que apesar do fracassado ataque ao quartel,
não escondia um sorriso reviralhista de satisfação pela tentativa, uma espécie
de apoteose do como tal conhecido, ‘ano horrível’ do regime.
Enquanto o ‘Bartolomeu Dias’ chegava, partíamos nós, numa
viagem sem história, para Bissau.
Nunca enjeitando uma boa compra em S. Vicente fui aos
bazares do costume e cheguei a bordo com uma câmara de filmar de 8mm ‘Carena Zoomex’,
uma espingarda-caçadeira ‘Robuste’ de dois canos laterais e um gravador
estereofónico ‘Grundig’. Notável a elasticidade do meu conceito de boa compra.
Para não falar de como a posse de tais bens seria inestimável contributo para a
minha felicidade. Se a espingarda, aliás uma belíssima arma, acabou no ‘Pedro
Nunes’ através de Bustorff Guerra e não me lembro do fim do gravador, conservo
treze filmes, tão toscos quanto a tecnologia da época produzia, que apesar
disso são preciosas cábulas de momentos vividos entre 1962 e 1969.
Bissau,
Bijagós e Ca.
Não termos uma guerra à proa não foi razão para que perdesse
força o Livro de Ordens do Comandante. Quase sempre navegando em rios,
estávamos condicionados não só pela
proximidade das margens, como pelos fundos baixos, mas tudo o que pudesse ser
feito, era feito. Continuava a arriar-se a baleeira,
fazia-se tiro para um alvo posto a flutuar, simulava-se um
salvamento, etc. Marcava-se presença aqui e ali, mais aturadamente no
arquipélago dos Bijagós; e fiscalizava-se a pesca – havia franceses a pescar
naquelas águas.
Traçado um rumo na carta, é sobre ele que o navegador tem
que fazer cair as posições que fôr observando; e isso é tanto mais necessário
quanto mais restritas forem as águas, o que na Guiné é particularmente verdade.
A confirmação constante de que o navio navegava por onde queríamos e não ao alvedrio
de ventos e correntes, era uma exigência do Comandante. Daí a inumerável
quantidade de observações que tinha que fazer. Quase em permanência na ponte, numa
das suas asas, atrás da repetidora da
girobússola, óculos alçados na testa e empunhando os binóculos em busca de uma
marca de referência que estivesse impressa na carta, era um instantâneo fácil
de captar. A Guiné é plana e baixa e os marcos geodésicos, sempre longe de nós,
são pequenos pontos brancos escondidos na finíssima fita castanha e verde das
margens, difíceis de encontrar, tal como alguns recortes costeiros referenciáveis.
Depois de reconhecidos, assentava os binóculos sobre o vidro da repetidora na
direcção aproximada do avistamento, repetia a busca com os binóculos ali
pousados e ajustava a alidade do aparelho de marcar ao azimute de avistamento.
Com rapidez, tirava os binóculos, baixava os óculos e procurava de novo a mesma
baliza, agora em tamanho real. Nem sempre conseguia à primeira e tinha que
repetir tudo. Marcado o ponto de referência, segurava nas mãos o rebôrdo da
ponte junto à porta do CIC (Centro de Informações em Combate), balançava o
corpo e atirava-me porta adentro. Em dois passos estava frente ao monitor do
velho KH 975, media a distância mais próxima a terra e com aquele azimute e
esta distância tinha um ponto. Repetidos estes gestos centenas e centenas de
vezes, em três meses de navegação naquele dédalo tortuoso de águas barrentas,
estraguei ainda mais os olhos. Os suplícios por que passa um míope… Em
compensação, todo o tempo aos saltos entre a ponte, o CIC e a casa das cartas,
melhorei imenso a forma física.
Mostrámo-nos muito nos Bijagós. Canhabaque e Bubaque
foram-nos familiares, mas também acenámos a Rubane, a João Vieira, etc.
Registei em 8mm cenas interessantes de Bubaque, como foi o caso de danças
tradicionais.
Pena que o apuro técnico das câmaras e dos filmes fosse
ainda tão incipiente, como é aliás visível em todos os fotogramas, como este em
que me exibo entre ‘bajudas de mama firmada’ (nem sempre tão firmada como isso)
e além do mais, pouco sorridentes para a maquineta.
Ainda tenho o cofió que aqui uso, comprado cinquenta anos
atrás no mercado de Bissau. A última vez que o pus, não há muito tempo, cruzei-me
em Leiria com um velho negro que ao olhar-me a cabeça assim coberta se abriu
num bonito sorriso cúmplice que devolvi com a simpatia que soube usar.
Inauguração
da Piscina de Bafatá
Talvez em Fevereiro, três camaradas tiveram a visita das
suas consortes: Loureiro de Sousa, Avilez e Carocho. Sortudos! Era uma prática
pouquíssimo comum à época.
Por essa altura, quem sabe se com a mira de obsequiar as
moças, alguém organizou uma interessantíssima excursão pelo interior da Guiné.
Utilizados vários meios de transporte, desde uma lancha de desembarque pequena
aos ‘jipes’, não esquecendo o popular 2 cavalos, tudo serviu para nos levar a
ver uma África quase intocada. Não sei com exactidão por onde andámos, mas
colectando lembranças e olhando o filme que fiz, arrisco que a lancha saiu de
Bissau, navegou Geba acima, meteu pelo Corubal, talvez até ao Xitole, fizemos
‘cambança’ para os automóveis, fomos ver uns rápidos – Cassilinta ? – passámos
por uma sólida ponte metálica comprida e seguimos para Bafatá, decerto passando
por Bambadinca. Dali fomos para Mansôa e regressámos a Bissau.
Em Mansôa era famoso o jacaré cego, que toda a gente queria
ver, e viu. Mas em Bafatá tínhamos tido a nossa hora de importância, como
inauguradores da piscina. Foi um acontecimento e tanto. Junto ao rio e com
casas por perto, entre paredes brancas e com um pórtico triangular de acesso à
prancha, com a bandeira portuguesa içada, a piscina era uma festa. Dezenas e
dezenas de miúdos, os corpos castanhos molhados brilhando ao sol numa imensa… -
ia dizer chilreada, mas era muito mais do que isso – era uma algazarra, um
festival de gritos e água pelo ar, de gargalhadas, de contentamento em estado
puro.
Por conta própria, fizemos mais sortidas exploratórias do
mato guineense. Sei que estive em Fá, perto de Bambadinca e de um Rio Geba
ainda criança, numa estação agrária. Ali dormi uma noite e de manhãzinha fui
estrear a espingarda. Não sendo grande caçador, contentei-me com um pombo
verde.
De áfrica em áfrica, cruzava-me às vezes com gente que antes
vira em diferente lugar e circunstância. O director que conheci nesta estação
de Fá, fui encontrá-lo na Zambézia nos anos setenta; e já neste milénio, numa paisagem menos africana, fomos ao mesmo tempo hóspedes do Hotel
do Bussaco. Coisa pequena… este planeta!
Bento
Pertunhas
A bordo da ‘Diogo Gomes’ não se chamava assim.
Era a Ordenança Externa. A praça que desempenhava esta
função tinha que ter o aval de confiança de toda a guarnição. Lidava com
dinheiros e era a estação de correio do navio. De mala a tiracolo e sabre à
cinta, era fiel depositário nos dois sentidos, não só da correspondência
oficial como das missivas entre os 180 homens da guarnição e a rectaguarda. Uma
missão com o seu quê de sagrado.
Nos dias de ‘São Avião’ era esperada com ansiedade a sua
vinda de terra. Não tocava trompa nem usava óculos como mestre Bento Pertunhas;
nem sequer se dava ares ou perdia tempo em delongas. Não dava ao momento a
gravidade acrescida do outro e acompanhava a entrega de correspondência com o
sorriso de um homem bom. Sorriso logo reproduzido nos olhos do destinatário do
envelope. E quantos mais houvesse e mais mãos se erguessem para os recolher,
mais o ar ficava leve e limpo.
Com os laços familiares enfraquecidos, só a espaços trocando
notícias com as amizades mais chegadas e fazendo ainda o luto pelos últimos
amores, não recebia cartas. Olhos mais atentos entre as três visitas femininas com
que partilhávamos a câmara e assistiam às cerimónias de distribuição do
correio, notaram o meu isolamento a um canto, alheio à chamada. Soube mais
tarde que isso deu origem a condoídos comentários mais ou menos casamenteiros e
a bem intencionados propósitos de colmatar o meu vazio de ‘Julieta’.
De volta a Lisboa, a ‘Milita’ mexeu tão bem os cordelinhos
que acabei por vir a conhecer a jovem que ela tinha em mente para o papel. Em
poucos dias estava embeiçado. Resultou. De tal modo que o casamento vai em
cinqüenta anos e ainda dura.
Lisboa
Na transição para Abril recebeu-se uma mensagem que ordenava
a substituição de um 2º tenente não especializado da classe de Marinha, que
deveria voltar a Lisboa e apresentar-se na 1ª Repartição. Éramos três nestas
condições e o comando entregou-nos a tarefa de escolher o eleito. Mostrou-se
interessado o Isaías e concordámos. Entretanto percebi que deveria aproveitar a
ocasião para tentar apaziguar questões surgidas entre familiares, o que o Gi aceitou. Coube-me pois regressar antes do fim da comissão. Chegou o Anacleto, a
quem entreguei a pasta.
O meu bota-fora ficou registado em filme, feito no aeroporto
de Bissalanca em 19 de Abril de 1962. Olho com enlêvo as longínqüas personagens
que se agitam nas imagens, que se riem, que me abraçam e confirmam o
companheirismo que nos unia.
Viajei num DC-4 da Força Aérea e ao princípio da tarde
estava no Marquês, à porta do Militar Naval. Vinha a sair o Barata, que me fez
uma grande festa e me deu a novidade: estavam à minha espera na Escola de
Fuzileiros. Fiquei surpreso. A ingenüidade trazida do berço não me permitira
cogitar essa tão provável hipótese. Começámos por descer a pé a avenida e não
sei o que nos fez mudar de rumo. Terão sido tiros? Assevero que aparecemos no
Bairro Alto à frente de umas fardas cinzentas com poláinas, vestindo corpos
agachados da Guarda Nacional Rèpublicana, caras façanhudas e armas aperradas,
que pareciam arremedar um filme da 2ª Guerra. Na dúvida esquivámo-nos ao
contacto e corremos Calçada da Glória abaixo, com todo o risco que tem, fazê-lo
naquela rampa. Tínhamos caído em plena repressão de estudantes, na crise académica
de 1962. Na Guiné, onde amadurecia uma guerra, não tinha visto armas apontadas
a ninguém. Chegado a Lisboa, já andava a fugir à frente delas… Heróis do mar!
Depois de treze meses longe, acertar numa quinta-feira de
Endoenças para voltar a Lisboa, quando tanta gente arrenega o bulício e vai
pedir arrêgo junto a seus maiores, à lareira de um convívio pascal de aldeia,
fez que me sentisse só e desàsado. É que, safo das espingardas, recolhido ao
Alfeite e acordado cheio de viço, nada mais aconteceu nem se previa que
acontecesse. Valeu-me o Cantinho, velho conhecido do liceu de Faro tornado
amigo já ‘nestas casas’, que permanecia conhecedor dos meandros da noite. E foi
pela mão dele que mesmo em Sexta-feira Santa, não me contive e fui pecar. Cada
um com sua ‘manuela’, acordámos em tardia manhã de Aleluia ao cimo da Duque de
Loulé.
E foi já lavado da pecaminosa noite que me fiz encontrado e conheci ‘Julieta’.
Apresentações
Segunda-feira, 23 de Abril, 1ª Repartição. Já tinha a guia
entregue e aguardava sentado que me chamassem, quando entrou Rosa Coutinho.
Abraçámo-nos sem palavras. Vinha do cativeiro de vários meses, começado em Boma,
com passagem sabe-se lá por onde. Fi-lo ciente de como sentia o que havia
sofrido. Num mutismo constrangido, não correspondeu senão com vagos monossílabos.
Terá sido o silêncio, condição obrigatória para a liberdade? Falou-se ao tempo numa
acção pouco voluntariosa dos diplomatas encartados, correndo que a libertação
se devera à diplomacia popular paralela de portugueses anónimos emigrados no
Congo. Estava magro, frágil e cabisbaixo. Uma sombra dele próprio. Pudera!
Disseram-me que não estava ainda decidido o meu destino, mas
passados uns dez dias fui mesmo para a Escola de Fuzileiros. Ia começando mal a
minha estadia. Assim que cheguei fui à inspecção médica. O inspector foi o Dr.
Pinto Bastos de Morais, o ‘Almocinho’. Médico da Escola Naval enquanto lá
estive, éramos velhos conhecidos. Só que me fez a pergunta errada:
- Então
diga lá de que é que se queixa?
- Ó
doutor eu não estou aqui p’ra me queixar, venho p’ra ser inspeccionado.
Parece que o senhor tinha razão, grande parte da malta ia
ali para se queixar. As coisas compuseram-se e ‘ganhei’ uma guia para a consulta
de Cirurgia do Hospital da Marinha, mor de uma rotura de ¼ do quadricípete direito
feita quatro anos antes no ginásio da Escola Naval.
Ao almoço fui interpelado da cabeceira da mesa pelo Melo
Cristino - companheiro de desoras ao balcão do bar do Militar Naval - com uma saüdação
efusiva à minha chegada. Porque estava longe, pus os óculos enquanto falávamos.
Ao meu lado o Penha, que tinha acolitado a inspecção médica:
- Ó
homem, devia ter dito que usa óculos… Vou passar-lhe guia p’rá Oftalmologia.
E não é que foram os olhos o impedimento para Fuzileiro
Especial? A perna direita, com uma porção rôta do músculo da coxa, que às vezes
um esforço mal equilibrado fazia romper um pouco mais e me punha a coxear, essa
foi aprovada. A vontade omnipresente do Almirante Roboredo nublava o julgamento
dos médicos quando se tratava de aptidão para fuzileiro. Fui então chutado para
o Hospital de S. José e sujeito a choques eléctricos nas duas coxas para
comparação das reacções musculares de cada uma. Exame inconclusivo. O que eu
sentia como uma séria limitação física para o Curso de Fuzileiro Especial e
mais grave ainda para um futuro desempenho de acções sob a bóina daquela especialização, não teria
passado de imaginação. Caso estranho é que ainda hoje é visível a depressão na
coxa.
Resumindo: em menos de um mês na escola, fiz duas divisões,
levantei um auto e fui destacado para o Draga-Minas ‘Horta’, onde fui Imediato
do Guise.
Tinha voltado ao mar.
Mezena
29 de Dezembro de 2012
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