A RODA
François
Com o exército francês em debandada de Espanha,
François, Sergent-Maréchal des logis, cansado dos riscos da guerra,
cada vez maiores, decidiu fugir também. Para Portugal, onde entrara com Soult e
voltara mais tarde destacado para as forças de Massena. Longe de França, longe
de casa, sucumbiu à bonomia lusa e desertou. Guardava boas recordações do Alto
Alentejo e do Ribatejo. Em Santarém, com uma jovem viúva, vivera uma aventura que
quase lhe custara as divisas, suspeito que fôra de ter bichanado à senhora uma
desusada procura de frescos que indiciava a deslocação das tropas para Sul.
Foi a direcção que acabou por tomar na fuga,
quando se apercebeu da dificuldade de esgueirar-se para poente, rumo inicial,
que o distanciaria mais rápido dos seus.
Promovido a Sargento-Marechal ao serviço de Massena
aquando da última invasão, François, de rapaz alegre e expansivo que fôra,
tornou-se ao fugir um homem de poucas falas que inspirava muitos mêdos. Parou
antes de chegar ao mar, à vista do Cêrro de S. Miguel, num monte tanto algarvio
na geografia quanto alentejano no aspecto e no amanho. Apresentou-se com o nome
de Joel, francês desmobilizado. Pareceu-lhe que um nome falso o encobria
melhor, na eventualidade de vir a ser procurado. Aceite devido à falta de
braços, olhado de soslaio, ali se acoitou e foi ganhando a confiança dos
patrões, à força de ser um trabalhador incansável, organizado e sabedor das
coisas do campo.
Breve assumiu a liderança dos moços da lavoura.
Dos amores vividos em Santarém trouxera umas luzes
de português, que depressa ampliou no sol a sol da lida. Interessado em
consolidar fuga e estatuto, fácil lhe foi aprender a arranhar uma linguagem que
se entendesse. Tinha andado à escola e obtido na língua nativa o que entre nós
veio a ser o primeiro grau. Não tardou também que com pedaços de jornal,
amarrotados de embrulhar toda a sorte de necessidades, alisados com cuidado e
paciência; e a ajuda de um ou outro livro de escola conseguido de almocreves,
tivesse chegado à escrita.Tornou-se um indispensável.
No carro de mula, primeiro acompanhado, depois só, passou
a ir ao moínho levar os pesados sacos de trigo; mais tarde já fazia as compras
para o monte. Era conhecido nas redondezas. Não se sabe em que freguesias foi prègando.
A verdade é que em pouco tempo, invejado, dele se dizia ter especial talento
para seduzir mulheres mal casadas e viver também dessas seduções e de outros
expedientes pouco claros. Tampouco havia a certeza de ser Joel o seu verdadeiro
nome, que constava ter herdado com o espólio de um resistente que atingira a
tiro e vira morrer. Decerto conversas de alcôva. O afrancesado, como por vezes lhe
chamavam, usava, é verdade, pequena medalha de cobre em que desvanecida e riscada
se adivinhava uma imagem com intenção de santidade. No verso, uma gravação
tosca: Joel.
Em pouco tempo se deu conta de poder acobertar-se
melhor pondo fim aos rumores que corriam e lhe criavam uma fama injusta que o
apoucava. Muito bem integrado no meio para um estrangeirado, passou a usar a
verdade e a abusar dela. Num ápice cessaram os boatos. Joel diluiu-se na
verdade. Não mais se lhe viu a medalha. Renasceu François.
Por ali se foi deixando ficar.
Quase quarentão, mais alto que baixo, forte e
ossudo, tinha no linguajar em que se exprimia, com a pronúncia gutural dos
erres de que não conseguia libertar-se, um dos seus encantos.
Brites
A bem mais que duas léguas do monte, ficava Pechão.
Numa pequena casa afastada das demais, caiada como quase todas, esquinas
debruadas a azul, telhado de quatro águas e rebuscada chaminé algarvia, Brites
de Souza vivia com a filha, que dava tardiamente os primeiros passos.
Amanhava a horta que com a casa e algumas moedas
lustrosas, completava o legado do pai, emigrado na Argentina, onde morrera de
desgôsto, dizia-se, depois de ali ter perdido a mulher.
O marido, que partira para os Brasis ia para dois
anos, pouco antes de a filha nascer, ainda não dera notícia.
Moça nova, no ponto, cheia de vontade de viver e
crendo-se abandonada, cedo se deixou enredar no paleio daquele homem já maduro,
que em tardinhas quentes de Setembro lhe passava à porta e se descobria com um
sorriso. Janelas entreabertas para que alguma distraída corrente de ar temperasse
o calor, ouvia o barulho dos cascos no chão em frente. Montando sempre a mesma
mula, homem e bêsta airosos e asseados, levavam vantagem no cotejo com os
varões do povoado, rudes, desleixados e mal ataviados, em cavalgaduras
lazarentas.
Perceber que do intenso cheiro a homem estavam
ausentes os odôres a vinho e a suòr que conhecera no seu, cativou-a. Em pouco
tempo, ao invés de aparecer porque lhe sentia a chegada, era ela que se punha
de janela, mais embonècada, ansiando-lhe a passagem. E como sofria quando ele
não vinha… A distância era grande e só de vez em quando François conseguia tempo
para o passeio a Pechão que começava a tornar-se uma necessidade.
Brites deixou-se embeiçar.
Caricioso mas não lamecha, sabedor, vigoroso e
firme, François, deixando-a ajustar-se-lhe e enlear-se nele e esvaír-se numa luxúria
partilhada e morna sequer sonhada, apagara-lhe da carne a lembrança do outro.
O lugar era isolado, sim, mas por pouco que se
deixasse ver, a sua presença perto da casa de uma mulher só, foi assinalada e
começou a ser pasto de invejas masculinas e mexericos do mulherio do povoado
distante. Usar a noite como aliada, chegar nunca antes do lusco-fusco – cuidados
menores para olhos curiosos – não foi bastante. A urgente necessidade um do
outro, pô-los a nu.
Vivendo havia tanto tempo como viúva de marido vivo,
Brites, moça bonita, raçuda e apetitosa nunca dera oportunidade aos avanços
tentados por um avèlhado ricaço, influente lavrador da região, em busca do
prazer dos últimos vigores. Fora conhecida a determinação com que enxotara o
homem e isso valera-lhe uma aura de honradez, agora em vivo contraste com o
crescente rumor de amasiamento.
Tão evidente se tornou o olhar crítico que lhe
lançavam, quando, de filha ao colo ia a compras à venda, tal como o
distanciamento nada acidental com que evitavam chegar-lhe à fala – nem aceno
nem salvação – que de jovial por natureza, a expressão se lhe franziu em cenho
cabisbaixo.
Também ele, por seu lado, passou a notar como à sua
aproximação, as conversas emudeciam ou passavam a murmúrios e se sentiu alvo de
olhares oblíqüos e alguma antipatia.
Conversaram muito. Que fazer?
O apêgo que os unia era bem mais forte do que já
sabiam ser e sobrelevou o medo de enfrentar o pequeno mundo em volta.
Resolveram arrostar com as conseqüências de um amancebamento às claras, fossem
elas quais fossem.
Decidiram viver juntos.
Determinado, François deixou o monte. O patrão ainda
lhe acenou com uma mancheia de notas para que ficasse. Coitado, desconhecia não
haver ouro que o desviasse da decisão, tão intensa fôra a descoberta do paraíso
terreno, da fonte de vida que a novidade daquela vida a dois com plena entrega
lhe mostrara.
Ela não chegara aos trinta e ele no cume do
trajecto, fortes de espírito, fortes de força, ousariam.
Dariam conta do pomar e da pequena veiga em que tudo
medrava.
Brites voltou a ser quem era. Andar decidido, porte
erecto, olhar firme e frontal. Até a filha, afeiçoada ao único homem conhecido,
que a mimava como se filha sua fosse, desabrochava numa criança robusta e
risonha que os alegrava.
Trabalharam muito. E colheram.
Não é que no íntimo, cada um deles não tivesse
considerado a possibilidade de outro filho. Naturalíssimo que acontecesse. Se
calhar por acôrdo tácito, eles que de tudo falavam… disso nunca.
Mas aconteceu.
Concepção
As regras não apareceram.
Guardou para si a suspeita de uma prenhez que sendo
embora prémio de uma afeição tão bonita quanto rara – e por isso, no íntimo, prémio
desejado – vinha envenenada da bastardia com que a sociedade puritana e cruel marcava
a ferrete os filhos nascidos fora do casamento consagrado.
Só agora, na eminência de a suspeita ser certeza, se
dispunha a imaginar o futuro concreto, que vislumbrava difícil. Para si
própria, sem dúvida. Mas o mêdo, a dôr maior, que lhe ocupava por completo o
pensamento, era vir a ter um filho marcado pelo labéu da ilegitimidade.
Que seria dele? Que seria deles?
Quereria ter uma amiga e não tinha, que a ajudasse a
pensar, a mostrar caminhos, a repousar-se das negras divagações que lhe
ocupavam as insónias recentes.
Quanto a François, poupá-lo-ia até estar certa do
seu estado.
Continuou a freqüentar a missa de domingo com a
unção de sempre. Mas desde que deixara ocupar o lado vazio da cama, não mais
tomara a hóstia, por uma sensação de perda do anterior estado de graça.
O padre, homem velho, careca, arredondado e
sangüíneo, brusco de gestos e de palavras com os fiéis, predicava um Deus de
tristeza, exigência e castigo que tresandava a maldade ao ameaçar com as
labaredas ateadas por Satã.
Claro que sabia o que se passava portas adentro
daquela casa. Meia dúzia de beatas embiocadas – pasquins de sacristia – esquecendo
que ira e inveja são pecados mortais e escorrendo saliva de gôzo pelo canto das
beiças, tê-lo-iam pôsto ao corrente do que julgavam saber e do que imaginavam.
Olhando com intenção a humilhada Brites, o sacerdote
fizera no último domingo uma homilia talhada à sua medida. Congeminou uma
parábola mal amanhada, ajustou-a como foi capaz ao alvo que escolhera e
dissertou sobre luxúria, vaidade, a mulher do próximo e o que mais lhe ocorreu
que pudesse ferir, não esquecendo um aceno com o anátema da excomunhão.
Olhos no lajedo frio da capela, lágrimas
silenciosas, mente vazia, Brites sentiu cada palavra como frecha.
Se assim era agora, como seria a maldição à chegada
da cria?
Confirmou-se. Brites estava cheia.
Só ela notava por enquanto o ligeiro inchamento do
ventre. Apertava-se mais na roupa com medo de se denunciar quando saía e para
se dar tempo de ganhar a coragem de abordar François.
Alegria, riso e contemplação que saüdam a renovação
da vida, deram lugar a tristeza, lágrimas, infelicidade e remorso. Ambos
cientes da punição a esperar de um povo fechado em convenções milenares que o
reino sustentava e o clero brandia,
temiam o futuro.
Mais virado para consôlo da mulher que se abatia em
desgôsto do que para ponderar uma tomada de posição que os protegesse, tornou-se
caseiro e preguiçoso e descurou a lida da horta. Tomava-a nos braços, mimava-a,
mas faltava convicção às idèias e palavras de alívio que lhe segredava, só com
esforço a não acompanhando nas lágrimas.
Sem réstia daquela vaidade feminina que tão bem lhe
ia, sem gôsto para o que quer que fôsse, arrastando-se pela casa, Brites
limitava à cozinha as suas tarefas qüotidianas. Era onde engendrava uma sopa ou
um caldo sensaborão, mais por via do filho que já lhe mandava sinais, do que pelos
que o aguardavam. Até a miúda sentia a mudança e de criança alegre e rüidosa que
era por natureza, agora perdia viço e buscava calada no colo de François o
calor que lhe faltava.
Sendo, como era, tão evidente o amor que os unia, a
afeição de François pela enteada e a imagem de harmonia familiar que passavam
para quem os olhasse sem preconceito, sempre acreditaram vir a conseguir uma
aceitação senão total, ao menos que chegasse para uma vizinhança sem
sobressaltos.
O filho a caminho que deveria trazer uma expressão
de verdade a todo o edifício afectivo, era na circunstância um escolho. Acrescentava
ao adultério – de algum modo atenuado já que não havia novas do marido – a
marca da ilegitimidade, que os marginalizava sem regresso.
Era impossível continuarem a viver assim.
Não tinham noção de quando, como e porquê, mas deram
por si a considerar a hipótese de desembaraçarem-se do pobre inocente. Não um
desmancho, que para além do perigo real a que a mãe se expunha, desdizia tudo
em que acreditavam, as mais íntimas convicções de ambos. Não. Por entre avanços
e recuos, hesitações e incertezas, tomou vulto a idèia de encobrir gestão e
parto e pô-lo na Roda.
Poderiam, quem sabe, segui-lo e mais tarde
adoptá-lo.
Como conseguimos ser tolerantes connosco próprios…
Fácil seria manter o nascimento em segrêdo, se como
a mulher lhe pediu, tivesse a ajuda de François. Mas ele teve medo. Com toda a
razão. Não só não tinha qualquer ciência do assunto, como sabia das guerras em
que participara, não ser fadado para cenas de sangue.
Do tempo em que trabalhara no monte e errava por
estradas e caminhos, lembrou-se de ter ouvido falar numa mulher que ajudava a
parir. Dela se dizia ser alcoviteira competente e contrariando o apôdo, capaz
de guardar segrêdos. Era a comadre Amância que vivia isolada e só nos arredores
de Estôi.
Encontrou-a. Combinaram que iria buscá-la quando o
momento parecesse prestes.
A roda
Estava atento aos gemidos da maquinaria do relógio
da Sé, à espera que badalasse as três. Acocorado entre caixotes que o
taberneiro da Porta Nova, atirara ao acaso para a rua, escondia-se nem sabia
bem de quê: o baixa-mar ainda vinha longe e nem vivalma no largo!... Mas não
queria deixar de cumprir o juramento – selado com um punhado de moedas que recebera
com avidez das mãos de François – de não se deixar ver, nem à criança. Com o
recém-nascido entrapado, agasalhado e seguro com firmeza sob o gibão em
farrapos, desceu ao Arco da Vila cosido com as paredes. Ali esperou uns minutos
até que os pulmões tomassem jeito e se refizesse o bater do coração, viu o
jardim vazio, correu para a Misericórdia, depôs o miúdo na Roda, rodou-a,
agitou frenético o badalo da sineta que ecoou estridente no ar húmido e fugiu
com a ligeireza silenciosa dos pés descalços direito à borda de água.
Sebastião
“Sebastião Exposto, dado pela Câmara desta cidade a
criar a Bernarda Maria, mulher de Manuel Guerreiro, da Tôrre do Natal,
freguesia da Conceição. Entrou na Roda no dia dezoito do mês de Abril de mil oitocentos
e vinte e nove, foi baptizado e postos os Santos Óleos, por mim, abaixo
assinado, no mesmo dia (?) supra. Foi padrinho Camillo da Luz, Sacristão
adjunto desta Sé, de que para constar fiz este termo que (?) dia mês era ut
supra. (?) (?) (?) (?) Joaquim Manuel Côrte Real”
Lisboa, Grandes Armazéns do Chiado, 1900. Sebastião Guerreiro da Tôrre
Bem poderá tudo isto ter assim acontecido.
José Guerreiro
CLV, 1 de Julho de 2016