9.6.16

Um banco a Sul e Sueste

Os bancos

Bancos, há-os por alamedas, ruas, jardins e avenidas; há-os aos centos, aos miles.  

Inteiriços, às ripas, em ferro, madeira, pedra, há por aí bancos dos mais variados tamanhos, côres e feitios.

Ganhar fôlego entre caminhadas, albergar ócios, acoutar velhos, são usanças para que os bancos se sentem talhados.

E mesmo em casa, de môchos junto à lareira a escabêlos aos pés da cama; de bancos-escadotes para alcançar a prateleira de cima a incómodos e quase nunca usados assentos de ferro, à chuva no quintal, também há uma imensa sorte de bancos que só ganham número ao fazer-se uma mudança.

Nestes tempos novos de concentração de lojas em edifícios imensos, com parques subterrâneos para automóveis empilhados como convèses de navios, escadas e passadeiras rolantes entre pisos e compridos chãos p’ra caminhar – um cansaço para os desinteressados nas compras, para diminuídos físicos e para os velhos – há bancos plantados em lugares bem escolhidos desses chãos – sofás nalguns casos – que já vou usando por necessidade de dar tempo aos músculos das pernas de repôrem o nível de oxigénio.

Os bancos soalheiros, são nos jardins, os mais procurados pelos vèlhinhos que buscam o calor que lhes vai falecendo no corpo. Cabeça coberta, às vezes os olhos fechados e o queixo apoiado nas mãos assentes numa bengala que seguram entre as pernas, tomam ali o seu banho diário de energia.

Mas não se fica por aqui o papel que os bancos podem ter.

Na alameda de Faro, sob o caramanchão junto à parede do antigo Liceu João de Deus, havia uma bancada em alvenaria rematada a azulejo, num recanto de tal modo escondido, que os namorados em vias de incêndio, iam lá ter sem dar por isso. A atestar que fôra palco de combate a um fôgo, corria à boca pequena que alguém ali esquecera umas cuèquinhas de imaculado côr-de-rosa.

Àcerca destoutro singular e meritório uso dado aos bancos, piorou-se ao passar do fôfo assento almofadado das carruagens para a secura rija da traseira dos automóveis, perdendo-se assim, tanto no espaço quanto na macieza dos estofos. Há mesmo registo da reclamação de damas mais licenciosas que viveram com desgosto a difícil transição, sem que os seus protestos colhessem junto dos amantes, inebriados com o novo papel activo de condutores, a fardamenta necessária e o futuro que a máquina barulhenta prenunciava.


Um banco a Sul e Sueste

A Oeste da Doca da Marinha havia três grupos de pontões de atracação. Logo ao lado, um cais para os cacilheiros grandes; depois a estação de Sul e Sueste, dos barcos de ligação aos combóios no Barreiro; e por fim, a zona dos cacilheiros pequenos, já perto do Cais das Colunas, onde anteriormente atracavam.

As três áreas eram bem demarcadas: e a dos cacilheiros pequenos limitada por um muro gradeado e um portão que se fechava à cidade entre a meia-noite e as seis da manhã.

A uns vintes metros do portão, um banco de pedra bem enraízado na calçada. Umas quantas toneladas de mármore branco, branco homogéneo, o encôsto cortado com perfil de curva sinuosa, uma espécie de éle mal desenhado rematado com volutas, a tentar reproduzir – sem grande êxito – a forma repousada das nossas costas.

Exposto ao tempo, perdera o polimento. Baço, de um brilho mate a esconder os pequeníssimos cristais, era um banco harmonioso de formas que na sua singeleza passava despercebido a quem não precisasse dele, tal como o irmão gémeo que o olhava distante, lá do lado do Campo das Cebôlas.

Recebido quando rapazinho em casa de amigos na Rua do Paraíso e no Bêco do Surra e mais tarde freguês assídüo dos eléctricos das carreiras de circulação da Graça, que atravessavam as Escolas-Gerais, tornei-me chegado a Alfama. A isso se deve, quem sabe, a preferência que dava à Parreirinha quando desafiava a regra do internato da Escola Naval e trocava o sono justo a que tinha direito no Alfeite por uma insone noite de fado, temperada a vinhos e petiscos.

Pelas quatro da manhã o cansaço chegava à sala e bocejo a bocejo ia de uma a outra mesa e dava conta da gente. Começava a debandada. Esfregando os olhos já mais fechados que abertos, era também essa a minha hora de saír, trôpego aos primeiros passos, mas ganhando equilíbrio com o ar frio de inverno que banhava a cidade.

Desperto de novo, lá descia pelo Jardim do Tabaco à marginal do Infante, antevendo já o suplício da espera por um barco que me levasse à outra banda. Mas à aproximação daquele já tão conhecido e quase íntimo banco de outras noites, assomavam de novo a indolência e o relaxe que precedem o sono.

Estava vazio. Podia deitar-me ao comprido. Ainda sobrava banco. Deitei-me como sempre para o lado direito, a cabeça sobre o cotovelo dobrado a fazer de almofada, na manga aveludada do encorpado moscou inglês do dólman.

Silêncio. Silêncio que tornava – será possível? – mais frio ainda, o gêlo daquela mole imensa de mármore que deixara de ver o sol tantas horas atrás. O primeiro contacto foi de arrepio, mas a quentura dos vinte anos, regulada pela enrugada rijeza dos balões do termostato, permitiu que as trocas de calor fossem rápidas e tivéssemos chegado a um entendimento: ele aceitava um pouco do meu calor e eu rejeitava quanto pudesse o frio que me dispensava.

Não tardou que a dormência falasse mais alto. Resguardei as mãos, uma prensada entre a cara e o braço, a outra no bolso das calças, ajustei-me como pude às curvas da pedra, imaginei como seria melhor estar metido nos lençóis de uma cama quente e tive um pensamento de respeito e dó pelos desgraçados sem teto. E apaguei.

Como é que em condições tão adversas, o meu inconsciente terá sido capaz de se pôr a sonhar?

Versos muito chorosos da Cruz de Guerra na voz da Berta Cardoso, havia pouco ouvidos na Parreirinha, sublinhados por uma guitarra langorosa, misturavam-se com o toque de alvorada de um clarim que num crescendo de aproximação à minha camarata calou tudo o resto. 

Há mecanismos incríveis!

Aquele clarim acordou-me mesmo a tempo de apanhar o primeiro cacilheiro.


José Guerreiro

CLV, 9 de Junho de 2016

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