16.4.16

Um lampejo sobre Angola


Ala p’ró liceu


Tinha acabado de fazer dez anos, quando me puseram fora de casa.

Vivíamos no sul de Angola, em Moçâmedes, onde meu pai era o escrivão da Capitania. Além de duas escolas primárias havia apenas a Escola de Pesca; e por aí se ficava a formação possível.

Os anos lectivo e civil coïncidiam, para que as férias grandes batessem no verão meridional. Acabei a 4ª classe na Escola 49 e logo de seguida, no início de Janeiro de 1947 fiz exame de admissão aos liceus na Escola 55.

Naquela terra imensa, dois liceus chegavam – chegariam? – para os pedidos de matrícula de gente apostada na valorização académica de mais sete anos de estudo: em Luanda, o ‘Salvador Correia’ e em Sá da Bandeira, o ‘Diogo Cão’.


Foi fácil escolher este último, que além de estar quatro vezes mais perto de casa dispunha de um belíssimo internato para cento e vinte rapazes.


Vejo com estranheza o desgosto dos moços que se desesperam com o segundo corte do cordão umbilical e o isolamento, independência e responsabilização a que ficam sujeitos em circunstâncias tais. Não fui assim. Aliás, comecei logo por viver feliz o tempo de preparação da viagem, com atenta participação activa nas diligências necessárias: ele foi o malão em mulemba, feito pelo senhor Piedade, ele foi o enxoval, que incluiu roupas de lã contra o frio do planalto da Huíla, a balalaica de càqui em que fiz muito empenho, por me parecer que viria a dar-me o ar de gente que via nos homens que as vestiam; ele foram por fim, os apêlos ao bom comportamento e dedicação aos livros.      

Abril de 1947 estava no início, quando no campo de aviação de Moçâmedes me enfiaram no avião, um biplano bimotor Dragon, para 7 passageiros.



Com o mesmo destino, viajava o Bauleth, moço já espigadote, a quem minha mãe pediu que olhasse por mim na viagem. Claro que não me ligou nenhuma. O destino, esse, estava mil e oitocentos metros mais alto, na cidade capital da Huíla, Sá da Bandeira, ou Lubango, como ainda lhe chamávamos apesar de ter sido rebaptizada.

Ninguém chorou, mas acredito que minha mãe tenha engolido lágrimas; e que teria gostado de me ver mais tristonho pela separação… Valha a verdade, curioso é que eu estava; e imbuïdo de um incipiente espírito de aventura que me tinha ficado do aprendizado da história e bebido em leituras infantis como ‘O Mosquito’. Só mais tarde percebi que tinha perdido o colo materno. Mas mantivemos sempre uma correspondência epistolar rica, em que se me não entregava por completo, deixava entrever com verdade, a verdade da minha vida e onde sem lamechices o nosso amor estava presente.

A segunda metade da viagem foi acidentada, feita num céu de nuvens escuríssimas, sob chuva intensa, entre relâmpagos e trovões - uma despedida das águas de Março realçada com a aproximação às serras da Leba e da Chela. Foi o início da aventura.  

As aulas começaram a 14 de Abril.


Os rituais de praxe preencheram grande parte da manhã. Tive sorte porque uma terceiranista se encantou no meu jeito frontal e sorridente e me deu protecção. Assim, ninguém me tesourou o cabêlo ou me fez malandrice de vulto. E lá consegui tomar assento na turma C do 1º ano. Era uma turma de trinta e poucos rapazes e eu tinha o número 23. Sem grande história, o aproveitamento foi bom e passei à etapa seguinte. Fiz amigos p’rá vida.

A grande novidade do 2º ano foi haver meninas na turma A, a que acediam os alunos que vinham com melhores notas. Esta vizinhança das saias, quando todos chegávamos à puberdade e íamos sofrendo o ajustamento do corpo à invasão das hormonas, deu origem a muitos olhares curiosos, comentários segredados e risinhos disfarçados. Mais entre elas; que os eles, menos ousados, mais tímidos e envergonhados, se defendiam com poses de macho. Acredito que esta proximidade de géneros durante o crescimento o tenha tornado mais fácil e harmonioso.

Com uma ou outra transferência, - pouquíssimas – nos terceiro e quarto anos, voltámos a ser quase os mesmos. Companheiras desse percurso, foram as irmãs Teresa e Helena Henriques Guimarães, na fotografia com a Margarida entre elas, durante uma excursão que fizemos ao Jau em 1950. Recordo ter aqui dançado com a Teresa, o que não entendo, pois além de ainda não saber dançar, de onde viria a música? Na imagem de grupo estou ao lado dela, talvez depois da bailação.



Filhas de um conhecido empresário, Helena e Teresa chegaram ao liceu vindas da União Sul-Africana onde estudaram, internas num colégio. Passavam-nos um bigode a inglês.

Havia mais três na irmandade: Chaleca, a primeira, mais à frente nos estudos, e mais novos, a Niné e um rapaz. Além das três que comigo freqüentaram o liceu não conheci mais ninguém da família. Nem sequer o patriarca, homem importante no burgo.


Licença ilimitada

Venâncio Guimarães tinha a idade do século. Nascido em S. Pedro do Sul, degrau a degrau chegou à universidade e teve acesso à Escola Naval de onde saíu oficial.

Numa viagem que fez a Angola, seduzido pelo mar sereno, o calor morno e os arvoredos floridos, deixou-se enlevar nos encantos de África. Tendo um tio homónimo radicado no Lubango onde fazia fortuna, decidiu mudar de vida. Era novo, não passara de tenente, mas conseguiu a passagem à licença ilimitada e foi juntar-se ao tio.

Durou pouco tempo o seu contributo para a Venâncio Guimarães & Companhia. Não se ajustando bem às idèias naturalmente mais velhas do tio, deixou-o e fundou uma firma concorrente, a Venâncio Guimarães, Sobrinho, que prosperou ràpidamente.

Com quase tudo por fazer na colónia, era fácil estender-se a novas áreas de exploração e negócio sem grande risco – o mar não estava longe – a tempo de recuar se não vingasse. Peixe, farinha, óleo e conservas, congelação, moagem, mas também importação e exportação, máquinas e ferramentas, transportes rodoviários, comércio geral, tipografia, edição e encadernação, cerveja, foram alguns dos meios de consolidação do pequeno império do ex-tenente.

Tenente embora, tratavam-no por comandante, título honorífico que ganhou com a sua crescente implantação na sociedade chicoronha.

Viajei um par de vezes em camionetas da carreira Venâncio entre Sá da Bandeira e Benguela, quando o couto de férias mudou para o Lobito, onde meu pai passou a servir. Também o fiz em camionetas da concorrência. Conservo um documento que após quase setenta anos tem importância que bonde para ser mostrado. Trata-se de uma guia de remessa do atrás citado malão, pesado demais para me acompanhar num dos Dakotas entretanto chegados à DTA – Divisão de Exploração dos Tranportes Aéreos de Angola – para substituir os Dragon.


A camioneta da carreira da SIL que fez este transporte, era habitualmente conduzida por Romero Miranda, um bacano com manhas de caçador que se fazia acompanhar de uma velha carabina 22 longo, para o que desse e viesse. Tratei sempre de viajar perto dele para lhe ouvir mirabolantes histórias de caça.


Terceira Rèpública

A maioria dos brancos em Angola tinha ali investido a vida. Muita gente vendera no ‘puto’ as courelas avoengas para aumentar o património na ‘nossa África’. Atemorizados, empurrados de roldão para as fronteiras, uns quantos anos encaixotados à pressa nas traseiras do quintal – no pregar as tampas, dalguns caixotes se ouviam queixumes, tal o aperto das gerações que lá tiveram de caber – saíram, como puderam, em direcção a muitos mundos.

Dezenas de barcos fugiram de Angola pela calada. Entre eles uma embarcação de pesca de Venâncio Guimarães que acabou por demandar Olhão, onde ao tempo era eu o Capitão do Porto.

Peregrinos do Verão algarvio visitaram-me muito em quatro anos na cidade cubista; e algumas amizades do período angolano não faltaram. Do Abel Lara, companheiro de internato, finalista do liceu quando eu começava e de quem não sabia desde então, recebi apenas um telefonema.

O Abel, ingénüo responsável pelo fumador temporão que fui e padrinho da alcunha – ‘Varela’ – que ainda hoje me identifica quando regresso à juventude, casado com a Teresa, queria falar-me do barco que o sogro pusera à venda, saber da documentação necessária e de outras eventuais implicações do acto. Na verdade, procurava uma asa que o protegesse de qualquer empecilho burocrático.

Quando os papéis foram entregues, não havia desconformidades – ainda bem – e a embarcação foi transacionada.


Os livros

Dias passados, de surpresa, Venâncio Guimarães fez-se presente ao balcão da Capitania e pediu que o recebesse. Fui buscá-lo à entrada e conduzi-o ao meu gabinete. Apresentámo-nos, não regateámos comandâncias e mantivemos uma cordial e tranqüila conversa por mais de uma hora. Afinal, um ror de tempo depois conhecia o pai das minhas amigas.

Queria agradecer-me a agilização do processo, a brevidade da burocracia… Lá lhe disse que não havia de quê, o pessoal agira como sempre, pela cartilha; e todo o mérito assentava no acêrto da documentação.

Ultrapassados os galhardetes, passámos à parte interessante do diálogo. Falámos de Angola, da família também, mas detivemo-nos mais na então ainda nova rèpública.

Curioso de saber como vivia e sobrevivia um homem velho – estava com oitenta anos – ao esbulho da riqueza acumulada, reduzido a uma inactividade de todo nova, à perda do estatuto além conquistado e à agressividade da recepção reservada aos perigosos colonialistas, foi esta a resposta:

- Sim, valia mais de um milhão de contos o que por lá me ficou. Muito dinheiro, mas apenas isso, dinheiro. Os bancos conhecem-me… emprestaram-me vinte mil contos, dediquei-me à suinicultura em Rio Maior e já sou um dos maiores produtores de porcos do país. Agora há uma coisa que não consigo esquecer:

- Não me deixaram trazer os meus livros. Isso, não lhes perdôo!





José Guerreiro

CLV, 16 de Abril de 2016









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