23.6.15

O soneto e a emenda

Nas câmaras a bordo dos navios, nos trânsitos das vedetas pelo Tejo e noutros ócios navais, havia muito quem contasse histórias, umas vividas, outras ouvidas e quem sabe se algumas apenas imaginadas. Acredito que ainda seja assim.

Era aos mais velhos – claro – que cabia a função; e aos mais novos a tarefa de ouvir com atenção, para repetir aos vindouros e manter vivo o encadeado.

O protagonista desta história chegou à Marinha trinta anos antes da minha entrada na Escola Naval.

Ouvi-a contar umas quantas vezes, sempre igual na essência. Nunca por quem a tivesse testemunhado ou sequer escutado do próprio.

O enrêdo é simples e fácil de relatar. Dar precisão ao enquadramento não me é possível. Como não posso contar como foi, resta-me imaginar como possa ter sido. Que me relevem o propósito, aqueles que porventura saibam outros pormenores ou conheçam o caso com maior rigor.

A coisa deve ter-se passado pouco antes da Guerra Civil de Espanha.

É prática universal, dar assistência a unidades navais estrangeiras em portos nacionais. Dessa tarefa é incumbido um oficial – oficial de ligação – que se lhes apresenta ciente das razões da estadia, informa os comandos dos pormenores das visitas de cumprimentos mutüos, das facilidades logísticas, de locais interessantes a conhecer ou eventuais áreas a evitar; e procura ter resposta para as perguntas suscitadas pela curiosidade de quem chega.

O jovem tenente foi nomeado oficial de ligação junto de um navio de guerra estrangeiro que estaria em Lisboa por uma meia-dúzia de dias.

Como às vezes acontece, o embaixador da bandeira do navio ofereceu um jantar a que se seguiria baile, aos oficiais das duas marinhas e a personalidades afins. Para o evento, aprazado para a véspera da largada, foi naturalmente convidado o oficial de ligação.

Providenciou a limpeza da jaqueta, do colete, da calça de galão e da capa acabada de chegar do alfaiate onde fôra a pôr os ouros da nova patente na gola. Todas as peças foram passadas a ferro com esmêro. Mudou a cobertura ao boné e viu que os sapatos de verniz luziam azeitados. Comprou mais um par de meias de seda preta, novo colarinho de goma de pontas dobradas e conferiu que não lhe faltavam os atavios de fixação à camisa – botões metálicos de mola para prender o colarinho ao cós, atrás e à frente – e botões de punho condicentes com o figurino. A terminar, não se esqueceu do laço preto de seda nem de limpar com benzovaque as luvas de pelica branca.

A embaixada ocupava um velho palacete inchado de história. No átrio, interessante estatueta segurava ao alto uma tocha que alumiava a entrada da saleta onde eram servidos aperitivos. Em pequenas mesas redondas com toalhas de um adamascado branco vivo, havia pires com artísticos canapés. Sobre rodelinhas de pão pròdigamente untadas com maionèse, manteiga ou pàtê, brilhavam as mais variadas viandas. Criados de libré cirandavam entre os convivas equilibrando na mão pesadas salvas com copos, garrafas, gêlo e sifão, servindo-os a gôsto. Ao meio, a uma mesa maior coalhada de garrafas vistosas, um moço todo ele gestos, servia còqueteiles.

As bebidas desataram as línguas e o bruàá das conversas, a dois ou pouco mais intervenientes, foi subindo de intensidade. Havia pouco tempo meros desconhecidos, iam agora a caminho de ser amigos.

Até que se passou ao jantar.

O salão estava um poço de luz e o lustre central um deslumbre.

Mesa comprida, cadeiras de altura modesta e bonito espaldar artístico. Toalha rica e baixela invejável. Fazendo jus à fama, a loiça, muito diplomàticamente, era de Sacavém. Frente a cada lugar um pequeno cartão com o brasão hospedeiro e o nome completo do convidado. Ao nosso camarada coube ficar muito próximo da senhora da casa.

Para entrada foram servidos tomates recheados assados no fôrno.

Disposto com arte sobre o prato pequeno, um tomate bem escolhido, livre de imperfeições, a que o sol dera o seu colorido, a calote superior cortada e tapada por um ovo estrelado ajustado ao diâmetro. À volta, pequenos pedaços de toucinho fumado, tomate e cogumelos que antecipavam o refogado do recheio; e a alindar tudo isto, ao lado, um pequeno e perfumoso raminho verde de manjericão. A entrada prometia.

O banho quente e a secagem enérgica do corpo com o bom e espêsso turco de algodão, o barbear, a massagem com pedra-ume, o talco usado com fartura, o ajuste lento a cada peça de roupa até se sentir bem vestido, tudo feito com mais tempo que de costume, somados à viagem, aos dois copos de uísqui com soda e às conversas de circunstância, esfaimaram-no.

Agora, a visão de todos aqueles tomates coroados de amarelo pelo ovo, espicaçou-lhe o apetite.

Quando a mulher do embaixador deu sinal de remar, conteve-se contudo e remou manso.  Com dificuldade, que era homem de mesa farta. Esse domínio sobre a vontade de ingerir e de fazê-lo depressa, propiciou que tivesse tido tempo de saborear, que se tivesse concedido  tempo para gostar. O agrado foi grande. Ou por isso, ou tão sòmente por mera cortesia, decidiu tecer loas à cozinha.

Sobrepondo a sua voz ao surdo ruído dos talheres e das pequenas conversas que começavam a esboçar-se, sorridente e delicado apontou o olhar firme à obsequiadora e com sonoridade bem timbrada fez-se ouvir:

- Minha senhora! Que requinte de entrada… que promessa de jantar... Deliciosos tomates! Cheios… bem recheados, saborosíssimos… que tomates!? Oh! Que tomates! Que soberbos tomates!

Tão repetido e insistente martelar na mesma dúbia palavra, fez cessar o zunzum das conversas e as pessoas cruzaram olhares de interrogação, incrédulas com o teor do discurso.

Também o orador deu pelo silêncio. Sentiu em redor de si o peso reprovador de todos os olhares. Parou. Percebeu. E rápido, o sorriso ampliado, cravando a mira na cabeceira da mesa onde se sentava a dona da casa, soltou a pérola:

- Tomates!?... Frutos!!!


Mezena

23 de Junho de 2015

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