De camarão a licôr
Tal como na Metrópole, a Marinha estruturava-se nos
territórios de além-mar em tôrno de dois núcleos complementares, um militar e
outro civil.
Os capitães dos portos, sendo embora militares, integravam o
ramo civil, eram a Autoridade Marítima nas áreas sob sua jurisdição; e para
assuntos de natureza militar naval tinham um segundo chapéu: eram Comandantes
de Defesa Marítima.
Enquanto que outros licenciamentos de pesca eram obtidos nas
Capitanias e até nas Delegações Marítimas, os de camarão, eram concedidos no
cimo da estrutura civil, a Direcção dos Serviços de Marinha em Lourenço Marques.
Devia-se isto à necessidade de um contrôlo geral distante, face ao apetite pelo
lucro que o negócio da pesca, congelação, embalagem e exportação de camarão estava
provocando.
Quando cheguei a António Enes – Outubro de 1970 – havia já
uns quantos barcos dedicados a esta rentável actividade. Uma meia-dúzia.
Com alguma contenção, foram sendo concedidas mais licenças,
criaram-se empresas que compraram barcos cada vez mais bem equipados e em pouco
tempo havia em Moçambique uma considerável frota dedicada à captura de camarão,
quase toda ela sedeada ou estacionando em dois portos: António Enes e
Quelimane.
Entende-se: a maioria dos rios de Moçambique desàgüa no
centro do território; e são as suas águas que roçam os leitos e transportam à
foz os nutrientes que enriquecem os comedoiros do Índico, fazendo da área um
manancial de vida marinha.
As embarcações usavam quase sempre duas redes de arrasto
pelo fundo, com pesadas portas que as mergulhavam e afastavam mantendo cada uma
a seu bordo.
Os sacos, quando içados ao fim de cada lanço carregavam grande
quantidade de pescado.
A diferença de preço entre o camarão e o resto era tão
grande que só aquele era aproveitado. Um dó. O excedente voltava ao mar sem
vida. A um ou outro mestre de maior confiança cheguei a pedir que me salvasse uma
mancheia de pequenas azevias. Fritinhas, deliciava-me com elas.
Talvez em 1971, uma empresa que obtivera licenças de pesca
de camarão, elegeu Moma como ponto de apoio e construiu ali uma planta fabril
desenhada para o efeito. Criada por quatro sócios, incluía um madeirense
radicado na África do Sul, um ou dois donos de um afamado restaurante de
Lourenço Marques e um algarvio, Simão Zorrinha, o único de que conservo o nome.
Era o homem que se mexia no terreno e freqüentava o balcão da Capitania em
cumprimento das burocracias.
Os resultados de pesca da companhia não terão sido
diferentes dos das congéneres ou dos previstos aquando do investimento no
negócio. Porém, razões outras, quiçá relacionadas com qüotas e divisão de
lucros, provocaram em alguns meses, atritos grandes que apontavam o fim da
sociedade.
Assisti na Capitania ao acendimento das divergências e
custou-me vê-lo. Era questão que passava ao lado do Capitão do Porto, mas o
homem que existia por detrás da função não resistiu e emitiu opinião sobre a
fragilidade das razões invocadas para desfazer a empresa. Parece que as minhas
palavras fizeram eco naqueles espíritos agastados e a decisão foi protelada.
Foi essa decerto a razão do convite para mediar um
entendimento entre as partes. Tarefa que extravazava as funções que exercia mas
que me agradou. Vivia ao tempo em fase de muita auto-confiança e o desafio de
carácter quase diplomático que se me punha foi inapelável. Aceitei.
Alguns dias depois, um pequeno avião veio buscar-me ao
‘soi-disant’ aeroporto de António Enes e levou-me a Moma, onde me esperavam os
quatro sócios.
Devo ter-me sentido vaidoso do poder algo salomónico de que
me vi investido, mas acredito que o não tenha denunciado. A reünião foi
amigável e os desavindos sócios predispuseram-se a um entendimento. Quero
acreditar ter tido virtude nisso. Foi decidido manter a sociedade. Claro que
como qualquer lusa comemoração – potenciada ainda pelos áfricos calores - tudo
terminou em grande e bem regada comezáina.
Todo contente lá voei de volta a penates.
Um dia, não muito tempo depois, a caminho do almoço, andados
os poucos metros do gabinete até casa, fui surpreendido por um inesperado
caixote de madeira, deixado por desconhecidos no chão da entrada. Sem ser
enorme, não era pequeno. Curioso, munido de martelo de orelhas, despreguei a
tampa, levantei-a e deparou-se-me um amontoado de camisas de palha vestindo
inúmeras garrafas. Um cartão identificava o conteúdo como presente de
agradecimento dos sócios agora avindos. As bebidas vinham do restaurante de
Lourenço Marques e devo dizer que quem escolheu as garrafas percebia da poda. Mais
tarde não faltou também como contra-pêso – belíssimo contra-pêso - um frasco de
‘Chanel nº 5’ para a senhora da casa.
Há não muito tempo, depois de mais de quarenta anos comigo,
abri uma garrafa de ‘Grand Marnier’ recebida nesse caixote. O lacre e o rótulo
já ratados não retiraram ao licôr um acendrado e delicioso sabôr.
- Á nossa!
José Guerreiro
13 de Agosto de 2014
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