8.7.13

singradura com algum balanço

                                                                           "A criança que fui chora na estrada.
                                                                           Deixei-a ali quando vim ser quem sou;..." 
                                                                                            Fernando Pessoa

Deixando o Lobito

Desde os dez anos que estar junto dos pais e da irmã era circunstância rara. Não lhe foi por isso estranho, abalar sem eles para Lisboa. Inusitado, foi que as férias grandes de três meses, que merecera, tivessem encolhido para dez dias. Mas os anos lectivos estavam – e bem – sincronizados com as estações do ano e não com o calendário civil; havia que apanhar o combóio do segundo trimestre, já em marcha na Metrópole. Além disso, duas semanas de mar não podiam senão ser creditadas como tempo de lazer. Foi debruçado no convés da segunda classe do ‘Império’, o adeus que fez para a muralha do cais do Lobito, de onde lhe acenavam os seus. 


Com o paquete navegando devagar baía fora, foi revendo como em filme a parte da meninice feliz que ali deixava:

Os longuíssimos passeios de bicicleta, à tarde, em bando - uma vintena de moços e moças - a caminho do Rádio Clube (CR6RK), ou da Restinga, pedalando para onde quer que fosse, em chilreada que por vezes era gritaria;

A ponte-cais da Capitania, onde pescava roncadores – uma espécie de mucharras – tantos quantos quisesse; ou garoupas de palmo e meio, que fritinhas, ficavam de lamber os beiços; para seu mal, também de vez em quando, um ou outro ‘baiòcu’ que não conseguira cortar a linha à dentada, estragando-lhe ainda assim a pescaria;

Nas pedras a descoberto na baixa-mar por debaixo das casuarinas junto ao paredão branco com ameias, 


ficavam agora em paz os caranguejos, primos dos que usava apanhar com mestria, de parceria com a irmã, até encher a vasilha que servia de medida. Vertidos depois na panela, temperados e cozidos pela mãe, quantas vezes lhes foram lanche…

E o barco de bimba comprado pelo pai por cem angolares, trazido a remos do Lobito Velho por um marinheiro da Capitania…  Bimba, uma madeira esponjosa, uma espécie vegetal de grande poder de flutuação, decerto aparentada com o papiro. Os troncos justapostos e apenas cravados com grandes pregos de pau, mesmo sem painel de popa, faziam uma embarcação inundada mas inafundável. Era a sua gôndola privada. Remando com água pelos artelhos usava-a para passear, pescar e mergulhar. Que cem angolares tão rendosos em divertimento!


Mais além, ao rés-do-mar, via agora a piscina de água salgada em que gastava as manhãs, ora mergulhando, ora esbracejando com estilo, ora à torreira do sol com a maltesaria de férias;

Alongando o olhar para ré, ao fundo, por detrás do saco da baía adivinhava o Compão, a Caponte, a Rua 28 de Maio e tantos outros lugares, onde o levava a ‘Raleigh’ de todos os momentos, para importantíssimas tarefas, como comprar ‘O Mundo de Aventuras’, encomendado na Livraria Magalhães; ou ir à Luso-Americana pedir selos ao gerente, o Senhor Guardado; ou, ainda pelos selos, subir aos sempre muitos navios belgas atracados e aproveitar para melhorar o francês.  À cata de mais umas estampilhas também ia ao Hotel Esperança, onde o Fernando, filho do dono, e já conceituado filatelista, por vezes lhe dava uns selitos, sempre acompanhados de preciosos ensinamentos sobre a matéria. Foi aliás através dele que se fez membro de um clube internacional de trocas.

Virado para o continente, para o Lobito Velho, viu-se com o pai em casa do Senhor Américo, também algarvio e companheiro na Marinha, de onde saíra para se aventurar com sucesso a fazer farinha de peixe. Estavam atentos ao relato da bola. Jogava-se um Portugal-Espanha. Contra o costume, vitória lusa . Concentrados nas peripécias do jogo, não se deram conta de que o impúbere os imitava no festejo de cada golo com longos sorvos de Laurentina. Não tardou que se sentisse tonto. Foi a sua primeira vez. Consciente do risco, saiu sorrateiro e foi refazer-se, caminhando e respirando o ar fresco junto ao mar;

Como não lembrar os passeios à Catumbela ao Domingo? Sentado no quadro da ‘Raleigh’, iam até uma oficina junto ao Mercado onde escolhia uma ‘burra’ de aluguer e lá iam então, cada um em sua bicicleta, pedalando devagar, conversando, olhando a paisagem, nove quilómetros para lá, nove para cá;

Lembranças para sempre…

Mais acrescentaria ao filme – matéria para argumento não lhe faltava - mas afinal o ‘Império’ passou entre o Farol do Lobito e o Farolim da Restinga e chegou a mar aberto.

“Aqui CR6AA, posto emissor de Álvaro de Carvalho”, imaginou ter ouvido, como última despedida, de uma voz vinda da ponta da Restinga.

Luanda – S. tomé – Funchal – Lisboa

No dia seguinte, 3 de Janeiro de 1951, estava em Luanda. Passeou pelos lugares que ainda lembrava de cinco anos atrás, mas não tendo amigos para companhia, integrou-se sem dar por isso no circuito dos outros viageiros e aterrou na baixa. Foi à Livraria Lello e comprou ‘A diabólica casa isolada’, com que mais tarde veio a iniciar a colecção Agatha Christie. Devorou o livro com rapidez e arrependeu-se de não trazer mais para a viagem. Talvez em S. Tomé…


Mas não conseguiu. Tudo quanto lhe ocorre da escala ali feita, é a aterradora elegância de um enorme tubarão esbranquiçado nadando preguiçosamente sob os holofotes pendentes da borda, quase junto à água.

Tinha acabado de fazer catorze anos e era essa a idade que aparentava. Porém, habituado desde cedo a arvorar-se e de algum modo ser, senhor de si próprio, sentia-se mais velho. Não admira por isso que se tenha posto a jeito para completar a mesa de ‘King ’ que três adultos porfiavam conseguir sem sucesso. Não havia muita gente na segunda classe; e para além da bisca e da sueca pouco mais se jogava. Olharam-no com um misto de espanto e desdém que aumentou quando depois de saber que o jogo era a dinheiro, manteve o propósito de os confrontar, já que cada ponto valeria apenas um centavo. E em verdade, à chegada ao Funchal tinha acrescentado quase cinquenta escudos à sua riqueza.

Riqueza, de facto. Saíra do Lobito com um conto e oitocentos que os pais lhe haviam dado para despesas iniciais na capital e também a título de prémio pelos bons resultados escolares. Riqueza algo mitigada no Funchal, onde não resistiu ao chamariz das exposições de artesanato. Nos bordados, não se dispensou de comprar uma bonita toalha de chá para a mãe e mais uns quantos lencinhos não sabia bem para quem. Para o pai, levou uma caixa de madeira para cigarros. Ainda bem que para si nada foi cativante assaz; e pôde chegar a Lisboa com mais de um conto e trezentos.

O ‘Império’ atracou na Rocha do Conde de Óbidos na manhã de 16 de Janeiro. Esperava-o o Senhor Santos, Sargento Artilheiro nomeado para Escrivão da Capitania do Lobito onde sucederia a seu pai e a quem este pedira para ‘tomar conta do rapaz’ até embarcar para Angola. Depois de mútua e rápida apresentação, tomaram um táxi para o colégio onde ficou internado. Mesmo ao lado da Mata de Benfica. Vinte escudos, já com gorjeta, foi o preço da corrida. 

Colégio instituto lusitano

Feito um rápido reconhecimento do novo espaço, encetou no dia seguinte, uma sexta-feira, a freqüência do 5º ano, cujas aulas tinham começado havia já três meses e meio. Uns quantos alunos internos com os pais em África mais alguns alentejanos; e um número grande de externos das redondezas. Como sempre a adaptação foi fácil e em dois ou três dias estava integrado.

O Colégio Instituto Lusitano funcionava num edifício antigo com pretensões a palacete, ao fim da Avenida Grão Vasco, 


paredes meias com o Parque Silva Porto, frente ao busto do pintor que lhe dá nome.


O proprietário e director, Dr. Moreira, era um homem só, entrado em anos, a quem a malta tratava por ‘Pai Moura’. Passava por ser católico devotado, tinha sido ultrapassado pelo tempo e dirigia o estabelecimento como um ‘trust’ familiar, dando güarida a três ou quatro parentes. No leque de professores, todos homens, cabiam tanto militares desviados de funções, quiçá por razões políticas, como um estimável octogenário que fôra condiscípulo de Augusto Gil na ‘sagrada Beira’ e fazia da língua portuguesa uma devoção. Quanto a prefeitos, conheceu dois: um que combatera pelos rèpublicanos na guerra civil de Espanha, outro que freqüentara um Seminário e quase fôra ordenado.

Sentiu muito o frio daquele Janeiro, tão diferente dos que suportara nos quatro invernos do planalto huílano. Foi-lhe custoso ter passado em tão poucos dias, do Verão tropical do Lobito para o Inverno daquele inóspito casarão velho, de pé-direito tal, que mal revelava os requintados ornamentos de estuque que enriqueciam os tetos. Era ainda noite e já numa sala cheia de ar gelado que parecia renovar-se a cada momento, assistia à aula de Português, sentado numa carteira, que mesmo sendo de madeira, tão pronta estava em roubar-lhe o calor do corpo. O branco ártico das paredes e das portas imensas não ajudava e fazia juntar ao das mãos o enregelamento dos miolos. Até as maçanetas, lindas, de louça, quando olhadas, reflectiam frio. À secretária, o Dr. Direito, descido havia muito da Serra de Estrêla, parecia não sentir o mesmo desconforto. Sentia outro, o dos muitos anos. Com pouco cabelo, todo branco o que restava, fitava-nos com olhar àgüado e pálpebras vermelhas, por sobre os meniscos em quarto de lua, impostos numa quase invisível armação de arame brilhante:

- “…Vereis amor da pátria, não movido de prémio vil, mas alto e quase eterno;…”

Sendo que estudante é aquele que estuda, sempre dera pouca verdade literal à palavra. Não faltava às aulas, mas dava-lhes pouca atenção, preferindo abrir a Selecta Literária lendo e relendo os textos do fim do livro. Quantas vezes se terá emocionado coma leitura de ‘A aia’?  Acabadas as aulas, mais que estudar, apreciava as conversas, as disputas, as amizades com os companheiros; e procurava estar em todas. Já antes assim era e não lhe faltou coerência.

Bêco do Surra

A semana-inglesa era almejada mas não conseguida ainda. Do colégio saía porém ao princípio da tarde de sábado. Enfiava-se no eléctrico nas Portas de Benfica e saía nos Restauradores, frente ao Éden.  Curioso e interessado, caminhava pela Baixa, observando tudo. Anúncios, montras, pessoas… estas muito apressadas, sisudas, agasalhadas, bem vestidas, brancas quase todas, apenas um preto de longe em longe a dar à paisagem um ar de familiaridade. Gostava de andar de eléctrico. De preferência os que tivessem assentos de palhinha que melhor lhe recebiam o corpo; mas nem sempre se dispunha a esperá-los e continuava a marcha rápida para casa, onde o esperava a Dona Dôres, de sorriso pronto, a perguntar-lhe se tinha fome.

Por opção ou fatalidade, o casal não tinha filhos. O Senhor Santos era um homem inteligente e vivido. Dona Dôres, uma dona de casa confinada a ser dona de casa, porventura mal amada, marcada pela solidão e a quem a resolução do instinto maternal teria tornado alegre. O arremedo de maternidade que os cuidados tidos com aquele menino lhe propiciavam era uma bênção. Não era bonita, faltava-lhe anca, tinha buço pronunciado e verbo difícil, mas era atenta, bondosa, generosa…

A casa, um primeiro andar alto, ficava numa esquina sombria do Bêco do Surra, quase ao cimo da ladeira. Era uma construção mal amanhada, de paredes exteriores a que o prumo fôra mal apresentado, com dois janelicos que mais impediam que deixavam entrar luz. O interior, muito despido, não convidava ao lazer e por isso, para além dos tempos de comer e dormir, logo que podia escapava-se para a rua. Subidos uns quantos degraus estava na Rua dos Remédios, de onde, encostado ao gradeamento de ferro frente à Leitaria Alsaciana, conseguia ver uma nesga de rio. Em pouco tempo já o olhar lhe fugia para uma janela alta na Calçada do Forte onde se assomava uma cara bonita. Não tardou, percebeu que a moça também o olhava.

Tornou-se freguês da leitaria, desenhada com o traço e a cor com que ao tempo se faziam aqueles estabelecimentos, mais tarde desaparecidos, na sanha de promoção a pastelarias.

- Senhor Augusto, por favor, traga-me um galão e um bolo de arroz.    

Ainda a farinha de arroz concorria com a de trigo na feitura do bolo e o tornava tão diferente e saboroso, tão singular e nosso. O galão saturado de açúcar e o bolo, nem sempre lhe satisfaziam o apetite doce e rematava com um pedação de abóbora cristalizada que o sentava à mesa mais algum tempo, a fumar um cigarro e a fazer de homenzinho. Depois, atravessava a rua e ia postar-se ao varandim sobre a Rua do Museu de Artilharia, de atalaia à tão olhada janela.

O Senhor Santos usava chapéu à diplomata. Os homens adultos do início dos anos cinqüenta ainda faziam do chapéu um adereço obrigatório. O modo como era posto na cabeça, direito ou cambado, o estar mais ou menos enterrado, tal como o desenho do gesto cortês com que lhe pegavam para um cumprimento, ou o tamanho do concâvo da copa, individualizava-os. O chapéu à diplomata, pretensioso, era por norma cinzento, de bom fêltro, copa alta e aba enfeitada a cetim revirada para cima. Chapéu caro, dava a ilusão de um estatuto social superior. Nas relações do Senhor Santos, alguns amigos não o dispensavam.


‘Tomar conta do rapaz’ fez com que o rapaz viesse a conhecer meia-dúzia daqueles amigos. Eram todos sócios do Clube Recreativo dos Bem Intencionados, com sede num primeiro andar da Rua do Paraíso, onde se juntavam à volta de uma mesa grande, para disputas de baralho. Jogavam o ‘burro’. Com tanta apetência que tinha para jogos, não chegou a entender o mecanismo completo daquele. Parecia-lhe uma espécie de ´poker’ fechado. Havia quem falasse em ‘blefe’. Rejeitavam-se cartas, mas ainda se podia ir buscar jogo a esse resto. Dizia-se que se ia ‘às cascas’. Mais do que ao jogo em si, dava atenção aos gestos e expressões dos jogadores e ao manuseio ritmado das fichas, ora chocalhadas entre os dedos, ora percutidas irritantemente sobre a mesa. Como quase sempre é, havia à volta do pano verde gente a quem perder não faria diferença e outra que buscava um complemento do salário e só de raro não voltava a casa cabisbaixo.

Por inesperada coïncidência, muitos eram adeptos do clube da sua simpatia. Passou a ir com eles ver os jogos que aconteciam nas Salésias, domingo sim, domingo não. Maior coïncidência ainda, foi ser o pai da cara bonita da janela quem o levava ao futebol na sua reluzente arrastadeira Citroën preta.  Fez-se sócio de ‘Os Belenenses’. E não tardou que num domingo – 18 de Março - a filha acompanhasse o pai. A proximidade encantou-o. De combinação em combinação, a gente grande decidiu ir à noite ao ‘Royal’, ver o ‘O terceiro homem’. A juventude ficou sentada lado a lado.  Olhos fixos nas imagens mas a mente olhando a cadeira ao lado, roçou pela dela a sua mão. Invadiu-o uma sensação nova, complicada, quente e esquisita, que o arripiou. Meses depois, já morando com os pais e irmã, esperava-a à saída das aulas, acompanhava-a a casa e diziam as banalidades em moda.

rua do paraíso

De partida, o Senhor Santos passou a tarefa de ‘tomar conta do rapaz’ ao Senhor Eduardo, um amigo chegado, com quem o moço já estabelecera laços de simpatia. Casado e com uma filha de vinte e um anos, muito unidos, faziam uma família que sentia como se fôra dele. Passou então a ser recebido e a dormir aos sábados e domingos, no primeiro andar que habitavam na Rua do Paraíso. Casa modesta e aconchegada, onde se sentia muito bem. Lia os livros disponíveis na sala e já não descia tanto à rua. Continuava freguês da leitaria, e ia conhecendo mais gente: os gémeos Ferrari, o Joaquim Campos, gabado árbitro de futebol, o Manecas, filho do Senhor Elísio, com grande talento para desenho, o Albano da sapataria, etc.

Estava-se em Alfama e vivia-se uma vida de bairro. Nas proximidades toda a gente se conhecia, se cruzava a caminho da praça em Santa Clara e parava para uns dedos de conversa. Uma vida calma, com algumas dificuldades mas sem grandes sobressaltos.

A duzentos metros, mais acima, inacabadas e paradas, jaziam as obras de Santa Engrácia já em desesperança de que viessem a ser igreja. Passava lá às vezes. A grande espessura das tábuas que haviam vedado o acesso ao interior não fora convincente. Os pregos - quase cavilhas  -  que as tinham unido, retorcidos e disformes, ainda presos pela cabeça, eram uma ameaça para quem quisesse franquear a abertura praticada.  Nem por isso teriam sido poucas as aflições intestinais que ousaram consegui-lo. Olhando pelo buraco, via-se bem a imensa retrete em que fôra convertido aquele amplo chão, ainda não abençoado.  O zimbório monumental que lá do cimo escondia a estrumeira, não conseguia disfarçar o desagrado.

O Inverno não avançara o suficiente para que não fosse noite ao sair para o colégio às segundas-feiras, mas o fresco matinal já em nada se parecia com as madrugadas gélidas que arrostava quando dois meses antes dormia no Bêco do Surra e por ali deslizava sobre o empedrado liso e húmido direito ao chafariz  e à Rua da Alfândega. Agora descia a também muito pronunciada ladeira da Calçada do Forte e num pulo estava em Santa Apolónia. Apanhava o eléctrico dos operários e em poucos minutos, por quatro tostões, estava na Praça da Figueira e saía. Caminhava até aos Restauradores, onde quase sempre, aguardando passageiros para Benfica,  encontrava parado nos carris um eléctrico da carreira nº 1.

Escolhido lugar junto a uma janela, abrigado quanto possível, aguardava o tilintar da sineta que anunciava o início da viagem, já conhecida de còr, mas que sempre lhe parecia nova. Encantavam-no em especial os anúncios luminosos e coloridos de néon, completa novidade. Quando passava pelo Rossio não se cansava de olhar a simulação de galope dos cavalos que puxavam o coche do rèclamo ao ‘brandy’ Constantino. Enquanto subia a Avenida da Liberdade não lhe faltavam chamarizes de luz que apreciava como da primeira vez. Na António Augusto de Aguiar gostava de ver a seqüência ‘Scania’, ‘Tatra’ , ‘Minor’ a azul e mais acima, a amarelo, ‘Instituto de Beleza Arminda’. Ia balizando o conhecimento da cidade com os anúncios, mas também com prédios ou acidentes de terreno estéticamente mais apelativos que inscrevia na memória com facilidade. Era Palhavã, era o paralelipípedo do Instituto de Oncologia, vinha o Jardim Zoológico e entrava-se na interminável Estrada de Benfica. Chegado entretando o dia, tudo ganhava côr e vida. Àquela hora o eléctrico corria veloz, parava raras vezes, havia poucos passageiros, o revisor se calhar ainda dormia e só o badalo puxado pelo cordão de sola estendido por toda a composição fazia de vez em quando tinir a campaínha a pedir uma paragem; ou mais forte e vibrante, a dar sinal de passagem, soava o alarme exterior, junto ao solo, também ele ferro contra ferro, accionado por um pedal sob pèzada do guarda-freio.

Em Benfica, a pouca distância da igreja, saía frente à ‘Panificadora do Sul’ onde entrava para comprar um papo-sêco acabado de sair do fôrno, quentíssimo. Continuava a pé pelo mesmo passeio até à esquina da papelaria do Fontan e virava à esquerda, já na Avenida Grão Vasco. Alguns passos andados, entrava numa taberna de portas azuis ali abertas ao povo bebedor, sentava-se a uma mesa e pedia um queijinho fresco, mas acrescentava para obtenção de estatuto e como credencial para uso do espaço, um ‘copo de dois’ de tinto. Entalava o queijo no papo-sêco, saboreava com prazer o frugal e invulgar mata-bicho e num minuto estava no Instituto Lusitano pronto para a primeira aula.

Sessenta e dois anos passados, é interessante, em tempo de tanta dedicação à finança, contabilidade e orçamentos, deixar aqui em letra de forma, o custo do regresso ao colégio em cada manhã de segunda-feira: os já ditos quatro tostões do percurso de Santa Apolónia à Praça da Figueira; mais dez tostões do eléctrico dos Restauradores a Benfica; mais outros quatro tostões do papo-sêco; e ainda cinco tostões do queijo e outro tanto do vinho. Tudo somado, transportes e pequeno almoço, gastara vinte e oito tostões – dois mil e oitocentos réis, ou, na verdade, dois escudos e oitenta centavos.

Mar rugoso

No colégio, era-lhe mais simpático o grupo dos que ali andavam por andar, faziam do estudo uma desobrigação e se ocupavam em futeboladas, fugas ao prefeito em busca de sítio seguro p’ra fumar, histórias de pretensas vivências de gente grande e outras ocupações igualmente enriquecedoras. Tinha uma preparação escolar básica muito boa e nela confiava. Só conhecera bons professores. Com Dona Conceição Martins em Faro, com os professores Canedo e Vieira em Moçâmedes; e com o conjunto docente de excepção que encontrou no Liceu Nacional Diogo Cão em Sá da Bandeira, com todos eles e algum estudo não parou de aprender. Porém, a circunstância de crescimento que vivia somada à vontade de férias que não tivera, fizeram-no desembocar num quase vazio de vontade e descuidou por completo a habilitação nas matérias ensinadas desde Outubro, quase quatro meses em que não estivera presente. Para compôr o quadro fazia profissão de dúvida quando lhe afirmavam ser difícil o exame do quinto ano. ´Cantando e rindo’ ia gastando o tempo alegremente. Alegremente.

Descoberta há muito a masculinidade, não se cansava de a confirmar amiúde, esquecido já da puberdade difícil que tivera, das recomendações assisadas do Delegado de Saúde de Sá da Bandeira e das há muito acabadas bòlinhas negras de cânfora receitadas, que tinham afinal tido efeito contrário, dir-se-ia quase perverso. Fazendo jus à fase de maturação que atravessava, começava a ter olheiras e o rosto alongava-se-lhe encovado. Na versão curta e concisa da avó, andava ‘chupado das carochas’.


Nada lhe andava a correr bem. Na véspera da chegada dos pais, de regresso à Metrópole, numa incursão vespertina à Mata de Benfica onde às vezes ia sonhar estiraçado na relva, atirou-se ao chão como se o fizesse sobre um colchão, amparando a queda de costas, com as mãos. Alguém ali deixara uma lembrança, um osso bicudo e rijo que se lhe espetou no cutelo da mão direita, penetrando de tal modo que a ponta ficou a espreitar entre os dedos anelar e mínimo. A dor foi grande. Naturalmente. Guinchou um pouco quando retirou com cuidado o osso a mais, voltou ao colégio e mostrou o resultado ao director. Levaram-no a  um consultório na Estrada de Benfica onde foi observado por um médico que franziu o nariz. Sôro anti-tetânico, uma ‘micina’ qualquer tomada de poucas em poucas horas e contrôlo da temperatura ao longo da noite, que foi de S. João. Assustou a mãe quando no dia seguinte se apresentou no cais, de braço ao peito, pálpebras pendidas e um olhar vago e longínqüo de zombie.

Perto do consultório médico, entroncava na Estrada uma avenida que reconheceu, por já lá ter estado um par de vezes para ver cinema, numa dependência do Benfica clube. Aliás, uma desilusão de cinema. A luz projectora, muito fraca, punha-lhe à prova os olhos e em evidência a miopia encontrada aos doze anos num rastreio feito no liceu e ainda não corrigida, lembrando-lhe o refrão da cantiga plasmada numa brasileirice popular e posta em palco a propósito pelos finalistas: ‘Doutôrzinho, isso não se faz… Deixe a nossa vista em paz!’. Embora já gostasse muito de cinema e não houvesse outra sala nas imediações, não insistiu.

Quase acabara Abril quando morreu Carmona. Algum tempo decorrido, soube-se a data da ida às urnas. Perfilou-se Craveiro Lopes pela União Nacional; opuseram-se-lhe Arlindo Vicente e Quintão Meireles. Sobre este se escreveu em letras garrafais na alta empena do último prédio construído na João XXI qualquer coisa como ´Não queremos um almirante que navega em águas turvas’. Vivendo desde muito cedo o desejo de se juntar à Briosa, sentiu como ofensa pessoal o contundente escrito e passou a alimentar a esperança de que o almirante ganhasse. Esperança vã. 

os novos colegas

Seis ou sete rapazes, quase todos externos, freqüentavam o 5º ano. 



Seiça Neves, Fontan, Couto Rodrigues, Salvador e Palma Vaz, eram cinco deles. Fotografou-os várias vezes, tal como a muitos outros, ora em posições ora com expressões mais ou menos caricatas, como era de esperar nas idades que tinham. Até de cenas teatrais simuladas sobre o palco do ginásio do colégio colheu imagens, cada um dando largas à imaginação sob a batuta do Palma Vaz, mais dado a pisar as tábuas. 

  






Na festa do fim do ano lectivo, saíu daquele quinteto o elenco de ‘Todo o Mundo e Ninguém’ que colheu rüidosos aplausos de amigos e familiares na assistência. Parte integrante dos festejos foi também um sarau de ginástica aplicada, disciplina muito dinamizada pelo professor, um homem seguramente perto dos setenta anos, coxo e de bengala que conseguia atraír ao ginásio a rapaziada mais dotada. Não era o seu caso, em que o entusiasmo se ficava por admirar quem se aventurava nas traves ou sobre os plintos.

Com a família já regressada de Angola, teve no decurso da festa a visita inesperada do pai que o surpreendeu com bilhetes para o espectáculo de patinagem artística sobre gêlo em que se exibiam nessa noite os ‘Holiday on Ice’. Tal como os colegas entusiasmado com o desenrolar da festa insistiu em ver-lhe o fim. Ignorava a beleza de noite que o pai lhe propunha. A pachôrra que este teve em aceitar-lhe a teimosia só pode dever-se ao seu próprio desconhecimento do que iriam ver. Chegaram tarde e terão assistido apenas ao terço final da exibição. Que deslumbre de luz e côr! Que elegância e destreza! Que arrependimento! 

Não tardou muito voltou a faltar-lhe, em relação ao mesmo palco, o sentido de oportunidade que julgava ter. De novo com o pai – mãe e irmã ainda estavam em Faro – passeava pela Avenida da Rèpública junto ao Campo Pequeno que regurgitava de gente, quando este lhe propôs uma ida aos touros. Não quis. Que raio de melhor alternativa terão escolhido? Mistério! Não era e continua a não ser um aficionado da festa brava, que não hostiliza. Ao tempo, tudo que tinha visto de touros resumia-se a uma lide a cavalo em arena improvisada junto à piscina da Senhora do Monte, no Lubango. A lide fazia parte das comemorações do Tricentenário da Restauração de Angola tal como a inauguração da própria piscina, normalizadas e muradas  que tinham sido as margens do charco original. O cavaleiro era o Senhor Bretes, seu conhecido da Alfândega de Moçâmedes. A oportunidade perdida anos depois no Campo Pequeno, bem, essa foi não ter visto Manuel dos Santos executar por uma tarde o proibidíssimo final de dar morte ao touro na arena. Repêso de novo! E sem remédio.

acalmia breve

Estariam quase a terminar as aulas quando se pôs a questão de escolher casa em Lisboa. Por um par de dias teve pais e irmã vivendo numa pensão na baixa. Avaliadas muitas hipóteses de aluguer, soube que uma boa casa na Morais Soares fôra reprovada por ter o Alto de S. João próximo demais. Sendo que a vida não tem dimensão métrica, qual será a distância ideal do porto de abrigo temporário de uma morada ao definitivo cemitério? Também colaborou na busca e lembra-se de em domingo de muito sol ter calcorreado uma Avenida de Roma em construção, prédios ainda no tijolo, montes de andares de cinco assoalhadas disponíveis a oitocentos escudos, todos chumbados pela mãe porque… ficava muito longe! Foi eleito um primeiro andar na Conde de Monsaraz por novecentos mil réis, muito perto da casa na Penha de França, que habitara por pouco tempo, quando em 1940, com tosse convulsa, o levaram a mudar de ares e a fazer longos passeios pela mata do Alfeite a respirar o imenso pinhal. Guarda vagas lembranças desse tempo, em que decorria a Exposição do Mundo Português.

Tal como nas vésperas da partida para Angola visitaram o Jardim Zoológico,


aquando da volta este continuava a ser, sob pretexto de dá-lo a conhecer às crianças, um destino interessante e muito procurado pelos mais crescidos. Feliz por ter sido o elo de ligação da amizade surgida entre os pais e os Eugénio, exultou com o passeio das duas famílias ao… Jardim Zoológico.



Em pouco tempo se visitavam e faziam serões. O relacionamento das famílias evoluiu de tal modo que os casais vieram a tornar-se compadres quando os pais apadrinharam em S. Vicente de Fora8169 o matrimónio da Fernanda, anos depois ela própria e o marido padrinhos de casamento do menino feito adulto.




a justeza das coisas

E chegaram os exames que nem sequer se deu ao trabalho de temer. Ciente do pouco esforço investido no estudo das matérias ao longo do já de si minguado tempo de que dispusera, passou vagamente os olhos por um ou outro livro menos massudo e dispôs-se a esperar o milagre. Se algumas disciplinas havia que por apetência inata, em termos chãos, estariam no papo, havia as que não poderiam ser ultrapassadas sem trabalho; e este falecera-lhe. Tão bem que sabia arvorar-se em homenzinho para acamaradar, rir e folgar e que puto irresponsável era afinal quando a vida lhe pedia que crescesse.

Mal percebidos, quiçá mal ministrados, os ensinamentos catequéticos absorvidos, primeiro em Faro, na Capela de Santo António do Alto e depois em Moçâmedes num convento de freiras, aliados à sedução dos rituais, tornaram-no um pretenso católico, mal resolvido. Feita a comunhão solene a que de imediato se seguiu a confirmação do baptismo, quedou-se por aí a sua formação religiosa, a que só bastante mais tarde deu seqüência, então de uma forma independente e apartidária. Não obstante procurar convencer-se da bondade da ligeireza com que nos últimos meses encarara a profissão de estudante, bem lá no íntimo, a consciência acusava-o. Mas não com força bastante para um acesso de vontade e coragem que o fizesse tomar o boi pelos cornos e olhar os livros. Veio então ao de cima a confusão entre o poder do Além e as fraquezas terrenas: aplicou-se em interesseiras rezas, como se foram a sua parte de uma conta-corrente, em que, pataca a mim, pataca a ti, o estorno seria o milagre. A paga não chegou e zangou-se. Teve o desplante de ficar zangado.

Na manhã do primeiro dia de exames, a mãe, para além do cuidado no atavio do filho, esmerou-se no mata-bicho que incluiu a novidade de uma infusão de tília ‘p’ra que não estejas nervoso’. Quando saiu de casa não sabia ainda onde era o Liceu Camões. Foi a pé, quase pelo cheiro, em busca da Praça José Fontana. Sendo que a distância era maior que a da informação colhida e com o tempo a esgotar-se na procura, sobreveio-lhe uma intranqüilidade a que não era atreito e que atribüi ainda hoje à bem intencionada tília. Vá lá, sobre a hora, mas chegou.

Tudo correu como era justo que corresse. Chegou às orais, mas até mesmo a letras, que ultrapassou, não foi difícil a Sérvulo Correia, o reitor, identificar que a sua leitura de Matoso pouco fôra além da Antigüidade Clássica.       

Mezena
FZ, 07JUL2013









                                                                                                                      

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