14.7.13

MISTÉRIOS DO PARAPATO
-Uma espécie de crónica serôdia-

O embrião deste escrito foi criado para o jornal ‘Macua’ e nele publicado há anos.
Nunca me aventurei a discorrer senão sobre vivências próprias, as que mais conspícua marca inscreveram na memória.
O tempo tem-se encarregado de aclarar algumas recordações que a par de ajustamentos semânticos, fui aditando à escrita; e daí versões sucessivamente diferentes.
Tomou forma neste conjunto de retalhos, uma súmula da minha viagem de guarda-marinha, efeméride tão importante neste ofício.  
O tema deu guarida aos mistérios em ‘A Voz da Abita’ conhecido blogue naval que também os publicou.  


Entre a inércia mediterrânica que desde sempre se me cola pegajosa e a tola pretensão de aceder a escrever alguma coisa porventura interessante, tenho-me balançado descontente, preocupadíssimo por não participar na feitura do jornal e afinal ansioso por fazê-lo. Ora imaginando bonitas frases ora caindo na vacüidade dos temas, revivo a angústia do estudante preguiçoso e cábula que conheci (fui) na juventude.
Ultrapassadas, por agora, pretensão e inércia, aqui estão os mistérios do Parapato:

Antes do fechamento do Canal de Suez, as viagens de guarda-marinhas em fim de curso faziam-se de hábito à volta de África. Era o périplo de África. Depois, passou a descer-se a costa Oeste, rodear o tormentoso cabo e ir por ali acima até à foz do Rovuma, inverter rumos e fazer a viagem de volta. Foi assim comigo.
Não fizemos a viagem desejada. Nunca se faz a viagem desejada.


Desrespeitando as regras, tinha feito uns rabiscos a giz no quadro da nossa sala de estudo com alusões aos pretendidos destinos para a viagem e que quase me valeram um castigo. De um convívio com cadetes italianos de visita a Lisboa no navio-escola ‘Amerigo Vespucci’, trouxe a idèia, que copiei, de contar os dias em falta para o fim do curso a partir dos cem dias. Por eles baptizada como ‘MAK p’ (de ‘mancano p giornni’), materializei a contagem no quadro, onde sei que durante uns anos fez carreira.

Não fomos ao Brasil como fizéramos constar na vedeta das cinco. Tampouco às Canárias, se bem me lembro. Largámos aí pelo meio de Agosto e viemos passar o Natal a casa. De permeio, muito mar, mais algum saber, uns quantos dias em terra, matada pouca da muita sede de vida e, convenho, um saldo final de satisfação.

No mês anterior à largada, Hailé Selassié II, Imperador cristão da Etiópia, visitara Portugal.
Esteve embarcado e navegou na fragata Nuno Tristão, que para melhor o receber foi alvo de alguns alindamentos em áreas como a camarinha do Comandante e a câmara de oficiais. 


A Nuno Tristão durou mais uns anos. Voltei a encontrá-la e fotografei-a junto aos Baixos do Tombali, frente à Ilha do Como, de bordo do contra-torpedeiro Vouga, quando este se preparava para a render na Operação Tridente, em fins de Janeiro ou início de Fevereiro de 1964.

Foi neste navio que embarcou a metade do curso a que me coube pertencer. Claro que ficámos contentes. Iríamos usufruir dos requintes dispensados ao Negus da Abissínia. Confesso que não dei por eles.
A outra metade do curso embarcou na mana Diogo Gomes. E andou menos contente quase toda a viagem. Não por falta de requinte. A coisa só melhorou com uma mudança intramuros: o oficial imediato foi despromovido a um patamar do tipo ministro sem pasta e as suas funções passaram a ser exercidas por outro. Gerir homens, comandar, é complicado. Nem todos sabem.

À chegada ao Mindelo, lá estava, como depois se tornou hábito, o Vicente, que vinha buscar roupa para lavar, mas se apresentava como ‘Vicente, piloto’, sendo que a pilotagem era imprescindível na noite despida de luz dos meandros da ilha. Bom piloto, o Vicente. Voltei pr’a bordo muito mais sábio depois de me ter conduzido ao espaço onde presenciei uma sessão do famoso 'cola-cola', interpretado por duas mulheres negras, avançadamente grávidas, alegres e luzidias.

Seguiu-se a Guiné. Assistimos pela primeira vez à cena da bóia de espera, com muitos binóculos assestados ao horizonte na proa e a oferta de uma grade de cervejas a quem fizesse o avistamento.
E o rádio-farol de Caió que tardava em dar sinal… e a sonda que indicava cada vez menos fundo… e as águas tão barrentas… De facto não era pêra  doce aterrar na Guiné; pior ainda se o Sol não tivesse aparecido para uma altura meridiana que garantisse a latitude. Bem, havia que aproar a Meca, medir o fundo o tempo todo e confiar… Confiar nas batimétricas, na carta… no profeta.
Ao fim, como sempre seria, lá íamos nós Geba acima em demanda de Bissau.

Não me lembro de ter ouvido falar sobre a rebelião no cais do Pidjiguiti, ocorrida apenas dias antes.
Admito que às vezes andava na Lua (e não ando?). Terá sido essa a razão?

Saído de um jantar-recepção, com mais uns quantos, integrei uma caçada que ficou célebre entre nós, Curso de Pedro Nunes. O alvo seria um felino feroz. Falava-se em onça. A direcção da expedição, já muito nocturna, era do chefe do cais de Bissau que conduzia um jipe e fornecera as armas. Por onde andámos, não sei. Mas rodámos muito. Tampouco fiquei com uma noção clara do tempo gasto. Recolecto na memória  a excitação vivida, a expectativa do encontro com a presa, os saltos do carro… e finalmente dois pequenos olhos brancos faíscando sob a luz do farolim. Ràpidamente, uma espingarda apontada…
- Não atire, não atire!... gritou o homem.
Não era para menos. Estávamos num quintal dos arredores de Bissau e os olhos eram de um gatinho.

Só no regresso, a navegar para Norte, visitámos o Príncipe. Depois São Tomé. Mas porque quero acabar em Moçambique, falo desde já deste pequeno arquipélago. De pouco me lembro aliás. Houve quem fosse ao Príncipe. Eu, não. Parvamente. Fiquei sem conhecer o sabor de um gabadíssimo guizado de macaco. Em São Tomé estivemos fundeados na Baía de Ana Chaves. Fomos à roça Água Izé. Claro, era quase obrigatório. Em expedição posterior, recordo-me bem de andar a apanhar camarão, empoleirado em arbustos. Não se riam. Era onde muitos ficavam após as cheias.
O solo, de um castanho gordo e úbere, a vegetação pintada a verde forte, tudo grande, tudo luzidio.
Uma terra feita por um deus inspiradíssimo.

Angola. Uma costa alta quase toda. Bem definida. O recorte na carta, reproduzido ponto a ponto no monitor redondo do radar de navegação, o velhinho Decca 974. Tal uma, tal outro.
Fizemos manobras com os belgas que nos acompanhavam desde Lisboa. Interrompidas enquanto estivemos em Cabo Verde e na Guiné, terminaram ao fazerem-se ao Zaire. Uns quantos navios. O ‘Kamina’ era o combóio. Alguns draga-minas belgas e nós, integrávamos a cobertura. Não sei qual terá sido o eufemismo para submarino. Foz do Zaire e costa adjacente, foram o palco final das manobras. Seguimos para Luanda. Dias depois voltámos. Fundeámos em Santo António do Zaire e Cabinda, onde a Diogo Gomes perdeu o ferro de estibordo, razão porque não subiu o rio até Nóqui. Foi só até Boma e voltou a Luanda para recolher um ferro emprestado, do Carvalho Araújo.

Entrados no Zaire fomos atracar no cais de Boma, na margem direita, no Congo Belga.
Extensão suficiente de rio para que o atrito da suspensão ferrosa na água tivesse deixado os cascos limpos de caramujo, luzidios, prontos para serem pintados.
Houve alguns eventos sociais, para rematar o êxito das operações, como de costume.
Fez-se um jogo de futebol, entre portugueses e belgas. Perdemos por 2 a 1. Em disputa uma enorme taça.
Quando com as equipas formadas para a cerimónia de entrega do prémio e os capitães lado a lado me preparava para aplaudir o adversário, o Chefe Militar belga fez menção de me entregar a taça. Balbuciei umas palavras de recusa, insinuei com um gesto de mãos que a entregasse ao vencedor, mas o senhor tinha-a fisgada. Lancei um olhar de socorro ao Comandante Naval de Angola de pé na tribuna que me fez um sinal de assentimento.
Muito obediente, recebi a taça que tinha perdido. Em tais apuros e num francês exaurido pela falta de uso, nem imagino os termos em que me terei mostrado agradecido. Uma cena algo surreal.
Dali fomos - taça passando de mão em mão - visitar a fábrica de cerveja Primus. E foi um troféu cheio e bem pesado que pus à boca para início da rodada cervejeira. Alegria a rodos. Excessiva nalguns casos.

Em Luanda, fizemos o nosso estágio de hidrografia.
Lá teremos deixado modesto contributo para o levantamento de um canto do porto.

Julgo ter sido a descer esta costa, que uma tarde, o comandante se mostrou na ponte e interpelou um dos dois guarda-marinhas de quarto, que calhou fosse eu:
- Ó guarda-marinha… qual é o rumo?
- Um nove três, senhor comandante.
- Bem me parecia… bem me parecia! – comentou com ar sabedor, depois de humedecer o indicador nos lábios e expô-lo espetado à aragem.
Este nosso camarada era um pândego que tendo sabido rodear-se de uma guarnição de oficiais de muito mérito fez da viagem um cruzeiro de férias. Nada gabarola, exibia-se para os mais novos:
- Debaixo deste cadáver já passaram mais de duas mil mulheres!

Aterrámos em quase tudo que é baía na costa angolana.
Nunca mais atingíamos o escalão superior do subsídio de embarque.
Mas lá chegámos à União Sul-Africana. Fomos para a base naval de Simmonstown, onde atracámos quase noite. Noite, que varei em Cape-Town, a 25 milhas, por terra. E que narrada, daria só por si um romance. Um dia conto, se perder a vergonha. Foi tão mau, que se calhar não perco.

Aqui, nos mares que os nossos maiores romperam e com cujos Adamastores partilharam segredos e mitos, éramos esperados para participação num conjunto de exercícios designados CAPEX 59. Mais exigentes do que os tidos com os belgas. Uns quantos navios sul-africanos, nós e duas fragatas inglesas: Linx e Leopard. A esta última foi imposta uma quarentena e acabou por não participar.
Escalámos Durban. E também Port Elizabeth. A “Diogo Gomes” foi a East London em vez.

Ficaram-me nos olhos pelo inusitado, os casacos de cores vivas às risquinhas que os muitos madeirenses que simpàticamente nos convidavam, usavam nos clubes. Com os emblemas sobre o bolso, autenticavam a ascensão na escala social e o sucesso da sua aventura.
Sempre pronto para novas tecnologias, em Cape Town encantei-me num pequenino receptor de rádio transistorizado que cabia na algibeira do casaco. Novidade absoluta. Comprei-o por onze libras. Uma fortuna para guarda-marinha. Ainda o tenho. E se calhar funciona.

Lourenço Marques foi uma surpresa. Mas senti-me mais em casa na Beira.
Com familiares em ambas as cidades, os primos 'coca-colas' ofenderam-se com a preferência.
Da Ponta do Ouro a Palma, onde os navios puderam entrar, entraram.
Futebol e basquete foram pretextos de aproximação às populações. Visitas a fazendas e fartas comezàinas, igualmente. Lembro-me de uma bruta basquetebolada no pavilhão do Malhangalene, mas já não sei contra quem jogámos.
Ao longo da viagem, o contacto com as populações foi sempre aturado. Tornou-se-me visível um tratamento mais negativamente descriminado para com os nativos de Moçambique, relativamente aos de outras paragens sob administração nossa. Concisamente… mais racista.

É certo que o general De Gaulle oferecera dois meses antes a autodeterminação à Argélia e que o Ghana já era independente desde 1957. Mas as lutas independentistas permaneciam apenas latentes; e quem nesse tempo viajasse por África (quase toda), fá-lo-ia com inteiro à-vontade. Moçambique não fugia à regra – para a banja de Mueda faltavam ainda sete meses. Por essas e outras razões, as nossas incursões por terra adentro eram de todo desatentas à coisa política. Um pouco menos à realidade social.

A Primavera meridional ia a meio.
Foi por esse tempo que avistámos a Ilha de Mafamede, escolhida  pelo sultão Hassane para sua sepultura.
Com a ilha do sultão na esteira, as fragatas Diogo Gomes e Nuno Tristão, cruzaram a barra no preia-mar, que os fundos são baixos e o diabo tece-as; e torcendo e retorcendo rumos, entre bóias e sapais chegaram frente à Vila de António Enes e fundearam. A terra já antes fora Angoche e tornou a sê-lo depois da independência, mas nem portugueses nem moçambicanos lhe conseguem acertar com o nome: Parapato, que é como lhe chamam os naturais.

Caras escanhoadas e ardentes de Acqua Velva ou barbas aparadas com rigor geométrico (era a primeira vez que as podíamos deixar crescer), banhos tomados a correr, na pouca água que a aguada deixava ainda escorrer, mal secos, que melhor não se podia, tal a humidade, vestimo-nos com roupa adequada ao trópico. E com a ansiedade costumeira aguardámos a hora das licenças, desta vez mais cedo.

Nas águas calmas do porto, o pequeno escaler a motor, ‘gasolino’, como lhe chamava o estado-menor, navegou bem apainelado e com todos os sinais da Ordenança, mas ronceiro, para a ponte-cais.
Azar! A água já escorrera, ocorria o baixa-mar e ficámos distantes. Entre nós e a ponte… só matope.
Mas a mais primária solução aguardava-nos atenta e apresentou-se.
E foi sobre alguns ombros, à vista bem pouco atléticos, disponíveis na mira de uma quinhenta, que com o seu quê de ridículo nos deixámos levar.
Mal dotado para equilíbrios, a cada momento preocupado em não cair, perdi com pena minha, a visão decerto risível, de uns quantos pares de pernas pretas engolidas pelo matope, trôpegas do peso acrescido, num vaivém lento e desengonçado entre a embarcação e terra firme; e anormalmente longe das pernas, mãos brancas, enclavinhadas umas sobre carapinhas, agitadas outras, frenéticas, tentando firmar-se no ar, ondulando tudo numa coreografia de bailado burlesco.
Com surpresa nossa, ninguém caiu.

A vila era pequena.
Começámos por ir ver o campo de futebol, onde pouco depois jogaríamos uma partida com a equipa do burgo. Era um rectângulo de areia solta delimitado por uma espécie de corrimão de madeira, pregado sobre espeques, por sua vez espetados no solo. O raro casario contígüo fazia adivinhar uma urbanização que começava a desenhar-se. Assim foi anos mais tarde. E ao campo de futebol foi destinada a incumbência de jardim.
Conhecida a arena, dispersámo-nos, cada um em busca do seu ângulo próprio de conhecimento mais detalhado da povoação.

Não sei o número de ordem do sentido peculiar usado pelos homens do mar em busca dos locais que conscientemente ou não desejam encontrar. Certo é, que uma vez o pé em terra, não tardam a ser vistos nos Cais de Sodré e Bairros Altos dos chãos que calcorreiam.
Nos meus saüdáveis quase vinte e três anos e após não sei quantos dias de mar, mal dei por mim estava no Ingúri.


O bairro não tinha ainda o aspecto ordenado, ortogonal, que um administrador lhe deu nos anos sessenta.
Era um granel de cubatas sem rei nem roque, onde só por sorte nos orientávamos.
Que Dédalos terá arquitectado o intrincado labirinto de cubatas que fazia o Ingúri, é uma dúvida que flutuará para sempre no mar das minhas ignorâncias. Mas quero crer que o desenho radicava na noção dos 'Qasbah', que ali chegara pelo convívio aturado com os comerciantes árabes, que além de mercadoria levaram o Alcorão aos macuas.



Na altura não me detive na busca de razões para o desenho daquele aglomerado. Tampouco para a fé professada pelos moradores. Ou para ser mais preciso, pelas moradoras.

E numa palhota escolhida a esmo entre as que me pareceram adequadas, fui durante algum tempo visita bem recebida e benquista. Tempo esse, em que a ampulheta não funcionou. Não a virei.

Mal medido o tempo gasto e o caminho caminhado, encetei o regresso a correr, única maneira de chegar a horas ao jogo. Ocorreu-me afinal, que tinha um relógio no pulso. E corri, corri… tendo de parar amiúde para retomar fôlego. Claro.

Não era um habilidoso p’ró futebol. A bola, às vezes, até me atrapalhava um pouco.  Devia à velocidade e ao pontapé violento, a ponta-direita que ocupava na equipa.
Velocidade e pontapé violento, os mesmos que ‘Os Balantas’ da Guiné viram, para o convite mais tarde feito para jogar por eles.
Mas voltemos à desabalada corrida para o jogo de futebol.
Foi ainda entre palhotas, que um dos pés – que toda a vida me têm traído – mal posto sobre um sulco que a chuva cavara, me atirou ao chão. Escabujei, gemi, impei… temi a necessidade sem apêlo de gritar pela ajuda de alguém. Mas quis a sorte que a torcedura não tivesse sido tão violenta quanto parecera e acabei por poder levantar-me. A custo, inicialmente a muito custo, lá me arrastei, mancando, direito ao centro da vila.

Assisti ao resto do jogo apoiado à vedação. Melhor assim.
Ainda bem que não pude jogar. Mesmo sem a queda, que poderia ter feito em campo?
Teria sido um fracasso.
Senti isso com uma evidência tal, que recebi a entorse como um providencial acaso.


É que, meus caros, parte grande da minha energia, porventura a mais rica, tinha-a deixado naquela bela e enigmática moça macua que tão bem me acolhera… e me iniciara nos mistérios do Parapato.

José Guerreiro
Fuzeta, 14 de Julho de 2013


  

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