Ventos de independência
NRP “Sal” – Junho a Dezembro de 1960
Tudo tinha ficado tremido depois da minha ousada investida na
véspera da partida. Em boa verdade nada mais fizera que obedecer ao impulso
primordial.
Fui repelido. Não tanto, creio, por razões de ordem moral,
antes pelo inesperado do avanço. É que eu era um moço muito certinho. E ela…, ela
acabara de chegar aos dezanove anos. Além do mais, corria apenas 1960, que ia
quase pela metade; e não obstante sermos ambos livres de peias, a comunidade
era cruel para quem a desafiava.
O certo é que poucas horas depois, manhã cedo, estava no meu
quarto na Messe do Alfeite, tão afectuosa como sempre; e a seguir, no pontão de
onde largaram o “Sal” e o “S. Vicente” cumpriu os rituais de despedida. Talvez
eu não tenha sabido interpretar todos os sinais… mas, parecia ultrapassado o
desagrado que a minha manifestação de desejo tão clara e nuamente mostrado
tinha provocado. E as choradas palavras de arrependimento com que, ao telefone,
logo após, tentei redimir-me, poderiam ter colhido… Vermelha e velha, aquela
típica cabine telefónica lisboeta, ali plantada sob as janelas da casa dela, era
de uma oportuna e romântica posição
estratégica!
Largámos na manhã de 3 de Junho de 1960.
A bordo, três oficiais da classe de Marinha e um do Serviço
Geral que chefiava as Máquinas. Sendo eu o mais moderno dos primeiros,
coube-me, como era praxe, ser navegador; e também – soi-disant – oficial de Administração Naval. Mais ainda: face à
escassez de bonés, calhou-me em sorte chefiar mais cinco serviços. Como contrapeso
e ainda por ser o mais moderno, fazia os quartos ‘mais leves’: do meio-dia às quatro e da
meia-noite às quatro. Acrescia que quase diariamente, quando por volta das
quatro e meia me aconchegava no beliche, bêbado de sono, em busca de algum
descanso até às oito, aparecia no camarote o cabo sinaleiro, com uma mensagem
de quilómetro, urgente e cifrada, acabada de receber da Cabina de TSF. Era por
azar aquela a hora de boa propagação para a Radiodifusão RT (para navios da
Armada a longa distância). Ninguém mais sabia mexer na KL-7, nem para isso
estava credenciado. Fiz muitas directas... Mas, era um jovem tenenteco de 23
anos e tudo podia. Este pequeno desabafo
não pretende ser (não é) uma queixa. Se o fosse estaria requentada de cinquenta e tal anos. Afirma apenas que era
penoso num pequeno navio trabalhar sobre o decalque da organização pensada para
os maiores e isso tornava por vezes difícil levar a carta a Garcia.
Não recordo que tenhamos ido ao Funchal mas devemos
tê-lo feito. Tocámos Las Palmas. Já lá
estivera dois anos antes e isso fazia de mim um entendido na topografia da
cidade e conselheiro no que às compras dizia respeito. De pouca valia porém
quanto às mercas próprias. Começara a moda dos gravadores; e sem 'papel' que
chegasse para os melhores, comprei uma
quarta ou quinta escolha que cedo me desiludiu e acabei por vender mais barato
ao enfermeiro do navio, João Plácido
Saramago, que se não era primo do outro disfarçava mal, tal a semelhança
fisionómica. Também comprei um relógio que acabou no pulso do piloto que me
ajudou a conhecer o Zaire. Oferecido. Relógio e gravador foram comprados de uma
forma caricata bastante aciganada. Apagaram-se-me alguns pormenores, mas sei que
houve dois relógios, dois gravadores e duas lojas envolvidas. Com o primeiro
“monhé”, o negócio, muito segundo os cânones, meteu sofá, deu direito a ‘whiskey’
e a longa conversa. Embrulhado e pago o gravador, saí ledo e ligeiro rua
abaixo, onde mais lojas se perfilavam. Poucos passos caminhados, fui
interpelado por um segundo “monhé”, à porta de mais um bazar. [Que leva aí tão
bem escondido? Um gravador. Quanto custou? Deixe-me ver. Ah! Mas eu vendo isso
mais barato. Não acredito. Venha ver!... Era verdade. Negócio ajustado. Espere
aí que vou devolver este. Que relógio interessante. Quanto custa? Compro]. Voltei
à primeira loja, onde o vendedor me prometeu
devolver as pesetas se além do gravador lhe mostrasse a factura. [Há
pouco não trazia relógio. Comprou-o lá? Quanto? Mas isso aqui fica-lhe muito
mais barato. Espere um pouco que vou buscar a factura, devolvo o relógio e já
cá volto]. E assim foi. Por certo nenhum deles deixou de ganhar, inda que
menos; e eu, no decurso da barganha dei livre curso à minha provável costela
marroquina.
Fomos também a Dakar.
O Senegal tinha alcançado havia pouco a independência. A cidade estava bonita.
Entrei numas livrarias. Passeava-me pela rua principal quando fui travado por
uma farda desconhecida. Muitas sirenes, muitas motos e automóveis. A velocidade
e a cortina de segurança em volta do carro do presidente não impediram que
tivesse visto um sisudo Senghor refastelado no luxuoso automóvel. Mais tarde, a
caminho de um beberete de circunstância, passei por uma pronunciadíssima
ladeira que olhava com soberba para o mar que a seus pés a acariciava de lado.
Um postal que me ficou.
S. Vicente. Não recordo nada. Tenho que ir a Lisboa, ao
Arquivo-Geral de Marinha, onde deve estar o Diário Náutico, para ter a certeza
que a memória que tenho do percurso não me está a atraiçoar.
De Cabo Verde para a Guiné o sol teimou em não se mostrar. Apanhei-o duas ou três vezes por pequenas
nesgas de céu e consegui uma altura meridiana. Introduzi os resultados das
observações na navegação estimada que vinha fazendo e fiquei com uma noção da
posição dos navios. Não era muito consistente. Mas, considerados todos os
parâmetros envolvidos na estima e os dados obtidos com o sextante pareceu-me a
posição mais provável. Costa com fundos traiçoeiros, fazer a aterragem à Guiné amedrontava e tirava o sono a muito comandante e punha em brios a vocação, o saber e os dotes dos navegadores. A aproximação à Bóia
de Espera fundeada ao largo, frente à foz do Geba, era feita com pinças e requeria muitos dados que nem sempre compareciam. No ‘S. Vicente’, a tarefa de navegar foi entregue ao imediato.
Comparadas as posições estimadas pelos dois, distavam umas dezenas de milhas.
Olhado com desconfiança pelo comandante que me dirigiu palavras desencorajadoras
e pouco abonatórias, vi o meu imediato ser também ele cometido à tarefa da
navegação. Passou a haver três posições estimadas. Continuei a pôr na carta a
‘minha posição’. Os comandantes optaram
por um rumo de aproximação intermédio em que a estima por mim feita pouco
importava. Houve momentos de muita tensão. O radiofarol de Caió apareceu tarde
e a más horas e o sinal materializado no osciloscópio, não fornecia uma
direcção precisa. De repente, a sonda passou a dar fundos assustadoramente
baixos. Reduziu-se a velocidade e foram-se ajustando os rumos, cada vez mais de
acordo ‘comigo’. Recorreu-se ao prumo para cotejar a sonda. Tacteava-se o
horizonte com binóculos. Alguém julgou ter visto a Bóia de Espera no horizonte,
muito longe da proa. Que não podia ser. A bóia teria que estar mais p’ra Norte.
Não ali. Vejam bem. Mas era a bóia. Era a bóia! A minha estima sempre estivera correcta! O
navegador - bom navegador - era eu. Voei da ponte para o camarote. Precisava de
desfazer em lágrimas a emoção que feita um nó me tolhia a respiração. Um breve
pranto de quase raiva, que ninguém viu, de que ninguém soube. Voltei à ponte,
seguro de mim.
Seguiu-se Abidjan. Ali - depois do semi-fracasso que tive
com o Ivo Cruz, na 6ª Repartição da Direcção-Geral de Contabilidade Pública
(era este o nome?), quando lhe pedi o adiantamento de um mês de subsídio de
embarque para o pessoal - reencetei as minhas funções administrativas com a
‘difícil’ tarefa de um saque de divisas no Crédit Lyonnais. Não me saí mal. Sem
tarimba para o que fazia, não terei seguido a cartilha tal como era praticada
pelos profissionais... Razão porque o
sargento Ganhão, o fiel, um adventício de formação artilheira, mas meu braço
direito para a ‘escriba’, vaticinava com
um sorriso de orelha a orelha: “Vamos ser todos presos!”.
Em Janeiro de 1951, catorze anos acabadinhos, passageiro de
segunda classe no “Império”, viajando sozinho para Lisboa e não enjeitando uma
pretensiosa pose de adulto, um dar-me ares de cujo ridículo só muito depois
tive ciência, estive em S. Tomé pela primeira vez. Não digo que me tenha
apaixonado pela ilha, não tinha talvez ainda essa capacidade, mas gostei muito
dos cheiros, da vegetação, do aconchego do calor húmido, dos panos brancos que
me fizeram lembrar as vestes dos cabindas. Na segunda passagem, Setembro de 59,
dava-me menos ares e ia mais atento. Gostei com mais força. Mas quem se
apaixonou foi uma mocinha muito bonita, morena, pequenina, novinha ainda, com
quem dancei num baile p’ra guarda-marinhas, que terá visto em mim e nos ouros
do uniforme, a passagem por que quase sempre os ilhéus anseiam para chegar ao
mundo. Tratei-a como se de uma irmã se tratasse. Reencontrámo-nos neste Junho
de 1960. Mais mulherzinha e mais solta, tentou com palavras traduzir as emoções
que antes lhe vira nos olhos. Com suporte da família, não se deixou convencer
pelos obstáculos que lhe opus, mas a escala breve tornou tudo simples. De
resto, estive ocupado com questões de serviço e a tradicional visita às roças:
Água Izé como sempre.
Pouco depois da largada rumo a Luanda, no quarto do meio-dia
às quatro, o sol deixou-se tapar, o dia escureceu para um cinzento negro; e uma
nuvem baixa, estreita e comprida, quase preta, ocupou todo o horizonte na proa.
A atmosfera electrizada adivinhava-se no suave lilás que nos envolvia. O mar
continuava sem rugas e o vento não passava de uma aragem. Mas o conjunto
prenunciava um adamastor enfurecido mais além. Assim foi. O tubo de aspiração
de uma tromba de água a cerca de uma milha na amura de estibordo, surdiu do
nada, a perfurar o céu, um extenso funil a alargar-se para cima, bem desenhado,
de uma perfeita harmonia de formas. Figura ameaçadora. De existência breve, mas
marcando presença sonora com estrondo, que foi também um silvo. Passámos por
baixo da nuvem e mal o fizemos o vento cresceu assustador, fazendo uma tal
pressão sobre a obra-morta do navio que este, qual veleiro, adornou uns dez
graus para bombordo. Seguiu-se uma chuva pesada, densa, de riscos brilhantes
obliquados com precisão pelo vento cuja força e direcção se mantiveram quase
até Angola. Assim também a inclinação do navio. A chuva, essa, secou antes.
Luanda recebeu-nos bem. Na Ilha de Nossa Senhora do Cabo, tratada pelo
vulgo por Ilha de Luanda, atracámos ao ‘Carvalho Araújo’, agora chamado velho,
abandonado ao papel de pontão, cheio de
manchas de ferrugem a ressumarem do casco outrora de um branco luminoso. Não é
que não fosse já usado também, o novo
‘Carvalho Araújo’ que o substituira. Só que pintado de azul-bebé ficava com um
ar travesso de menino que lhe tornava aceitável
o apodo de ‘novo’. Regressado o comandante dos cumprimentos em terra,
fomos à exploração próxima, da nossa
estação. Reencontrámos os camaradas e famílias com que estivéramos uns meses
antes. Poucas novidades. Aos oficiais foram concedidas instalações de pernoita
em Luanda. No edifício onde no porto, tinham sède, Capitania, Alfândega e
outros serviços. Do lado oposto à tôrre com relógio que dava identidade à
construção, eu e o imediato ocupámos o mesmo quarto, que não früimos muito,
dado que ao longo dos cinco meses e meio desta primeira comissão em Angola,
pouco estacionámos em Luanda.
Mesmo assim, sendos nós camaradas de curso e amigos, aquele
cenário foi palco de muitas conversas, tão longas quanto a pressa do sono de um
qüotidiano cansativo permitia e que versavam quer as prosaicas questões de
serviço, quer assuntos das nossas histórias próprias ou mesmo os nossos afectos
distantes. Conversas de moços, já homens.
Poucos dias após a chegada, substituidas as canseiras da
viagem pelas de adaptação dos serviços às novas circunstâncias, recebemos ordem
para seguir para Nóqui.
Era 10 de Julho. Metemos piloto em Santo António do Zaire e
subimos o rio. Aproximávamo-nos de Boma quando avistámos um navio cinzento com
aspecto de mercantão. Não me foi difícil reconhecer o “Kamina”, navio auxiliar
da Armada belga que nas manobras do ano anterior por aquelas mesmas paragens,
fora o combóio. Muito cingido à margem norte, subia o rio com todo o vagar pelo
que nos fomos paulatinamente adiantando. Já o víamos por ré do través de
bombordo quando apontou sobre nós o projector e chamou. O sinaleiro de quarto respondeu
à interpelação. Surpreendeu-nos a mensagem sucinta que enviou, em inglês e que rezava:
“Are you ready to slash?”
Em África sopravam ventos de independência. Nos últimos
meses de 1959 e no princípio de 1960, os belgas sentaram-se à mesa em Bruxelas
com os emergentes líderes políticos congoleses. Foram aprovadas entre outras
coisas, a data da independência – 30 de Junho de 1960 – e as linhas mestras de
uma constituição política provisória, que espelhava a monarquia constitucional
belga e que foi adoptada no seu parlamento em 19 de Maio. O Movimento Nacional
Congolês de Patrice Emery Lumumba e uma coalizão dos partidos nacionalistas
radicais, ganharam a maioria dos assentos parlamentares nas eleições pré-
independência de 22 de Maio de 1960, em conseqüência das quais, Lumumba veio a
tornar-se primeiro-ministro e Joseh Kasa Vubu -líder da aliança dos bakongo
(ABAKO)- chefe de estado. Após o grande
dia, os propósitos acordados duraram pouco. Em 5 de Julho, as Forças Armadas amotinaram-se.
O motim espalhou-se, descontrolado. Amotinaram-se as guarnições da Força
Pública e da Polícia. A cidade de Matadi quedou-se deserta de europeus que amedrontados
convergiram para o porto e embarcam nos navios mercantes ali surtos.
Percebia-se agora a razão de terem sido alterados os
propósitos iniciais de estarmos mais uns dias em Luanda: fomos engrossar a
pequena força naval que se posicionara expectante junto à fronteira Angola (Nóqui)
– Congo (Ango-Ango).
A
“Pacheco Pereira”, sob o comando de Camões Godinho, tendo a bordo o Comandante
Naval de Angola, Isaías Newton da Fonseca, estava fundeada quase a meio do rio,
a jusante da Ponta Ikungulu, onde, frente a Nóqui, a água correndo de Norte,
faz uma curva muito pronunciada de quase noventa graus e passa a correr para
Oeste. (No ano anterior, ali estive na “Nuno Tristão”, mais próxima de terra,
com um ferro no fundo e espias para árvores em terra, mantendo-se paralela à
forte corrente). Além da “Pacheco Pereira” – F 337 -, o “Carvalho Araújo” – A
524 -, do comando de Rosa Coutinho, atracado à ponte-cais de Nóqui. De braço
dado, o “S. Vicente” – P 586 –, de Fonseca Gamito. E nós, o “Sal” – P 582 -,
com Alcibíades da Cruz atracados ao “S. Vicente”, nosso irmão de classe.
Comentou-se a mensagem do “Kamina” que mostrava não só os propósitos que
animavam os súbditos do rei dos Belgas como o tipo de ajuda que esperavam de
nós. Mensagem que aliás não tinha tido resposta.
Com os navios cheios de brancos e Matadi vazia deles, pareceria
ter deixado de ser precisa a intervenção das forças belgas que os protegeriam. Não
foi assim. O bloqueio feito pelos
grevistas, quer dos caminhos de ferro quer do porto, que impedia o movimento de
navios, tinha posto a distante capital, Léopoldville, muitas milhas a montante,
em risco de asfixia por falta de abastecimento. Por isso, na noite de 10 de
Julho, o comandante das Forças Metropolitanas ordenara a execução da Operação ‘Mangrove’ para retomar o controlo do porto e desarmar
os amotinados. Para o efeito foi constituída uma ‘Task Force’ (3 corvetas da
classe ‘Algérine’ e 3 vedetas fluviais, com fuzileiros navais, 1 companhia de
caçadores e 1 companhia de infantaria) que largou de Banana às 02:15 e subiu o
rio rumo ao objectivo. Entretanto, o Estado-Maior Operacional da Base militar
de Kitona (Baki), tratou de assegurar cobertura aérea ao desembarque, o que se
traduziu numa esquadrilha de 4 Harvard T-6, com ordens para fazer vôos de
intimidação sobre os portos de Boma e Matadi quando começasse o ataque, não
podendo usar os ‘rockets’ senão em caso de extrema necessidade. Ainda lhes foi
ordenado que não voassem baixo. Às 10:15 a ‘Task Force’ estava perto do
Caldeirão do Inferno, na curva do Zaire entre Nóqui e Matadi, onde, dizia-se, já
alguns navios tinham sido sugados pelos redemoinhos, aliás sempre perigosos
naquelas águas. A corveta “Dufour” - F
903 - e a vedeta “Ourthe”, separaram-se da Força e fizeram-se ao cais de
Ango-Ango para aí desembarcar tropas. Fuzileiros tomariam e controlariam o porto
petroleiro; e a infantaria ia desarmar
os polícias congoleses acantonados nas casernas. As duas corvetas e as duas
vedetas restantes transportaram o grosso das tropas para Matadi e juntaram-se a
uma outra corveta, ali estacionada havia alguns dias.
O dia 11 de Julho amanheceu bonito. Na ponte baixa, o
imediato e eu conversávamos quando – eram as mesmas dez e um quarto – ouvimos o
estrépito súbito de um metralhar crepitado,
muito próximo. Acto contínuo abaixámo-nos. Mas logo nos levantámos sem
poder conter o riso: tínhamos procurado a protecção da sanefa de lona pintada
de cinzento que delimitava o espaço. Levantámo-nos... a tempo ainda de ver
soldados negros da guarnição de Nóqui, atirarem-se para debaixo das camas, na
caserna que ali bem perto do cais se escancarava para nós. A coisa perdeu todo
o caricato, quando percebemos que um avião Harvard dos belgas atacara uma bateria congolesa
perto da fronteira. Os ataques repetiram-se por quatro ou cinco vezes, com mais
do que um avião. As aeronaves aproximavam-se em vôo rasante vindas da margem
congolesa do rio, a um rumo algures entre Sueste e Lés-Sueste, sobrevoando ou
muito próximo disso, os quatro navios portugueses e Nóqui, para dispararem
sobre a posição congolesa. Entrámos em
postos de combate. Houve entretanto um interregno nos ataques aéreos. Face ao
rumo dos aviões agressores, com sobrevôo do espaço português, foi considerado
na “Pacheco Pereira” o cenário de uma eventual
ameaça dos congoleses aos navios, se não tomássemos uma atitude
dissuasora junto dos belgas; e estes terão sido contactados, mostrando-se-lhes
a situação de acto hostil em que nos punham. Chegou mesmo a equacionar-se a
necessidade de fogo anti-aéreo nosso, contra aquelas aeronaves, se os ataques
se repetissem. O que teria sido difícil porque o inesperado da situação apanhou
as peças não completamente prontas. Não teria aliás sido necessário porque os
ataques aéreos cessaram e os aviões desapareceram da área. Especulou-se àcerca
da inoportunidade do impedimento das peças mas sem consequências.
Tudo parecia ter serenado à nossa volta. Mas mantivemos a
prontidão.
De facto, as coisas tinham-se complicado em Matadi. Uma
resistência para além do previsto e a perda de um avião ficavam a perder com os 18 mortos e 32 feridos feitos entre os
congoleses.
Já o Sol por ali tinha passado havia algum tempo quando da
“Pacheco Pereira” largou o escaler a motor, hasteando uma bandeira portuguesa de
quatro panos e levando a bordo um 2º tenente meu camarada de curso. Destino,
Matadi. Missão: resgatar residentes de Nóqui e agentes da Pide em serviço de
recolha de informações. Bandeira grande para ser bem identificada das margens
mas grande demais para o tamanho da embarcação pois pendia sobre a água. Por
uma questão de eventual necessidade de defesa levava armamento – as velhas e
belíssimas ‘Mauser’ - e munições, nos caixões do escaler. - Vem a talhe de
foice dizer que um ano depois, no mesmo rio mas no porto de Boma, Rosa Coutinho
também levou armamento nos caixões, mas teve menos sorte: esteve preso muitos
meses no Congo, tal como a guarnição do escaler -. Em Matadi a missão foi
cabalmente cumprida e os resgatados entregues na fragata.
Às quatro da tarde a situação tornou-se crítica e a infantaria e os fuzileiros desembarcados em Ango-Ango, receberam ordem de retirar e reembarcar na “Dufour”. Esta apercebeu-se de que uma bateria congolesa tinha tomado posição numa colina fronteira - a que ficava muito exposta - e pediu para se afastar do cais. Antes que o tivesse feito atracou-se-lhe a vedeta com o resto da tropa retirada. Mal o transbordo foi feito a vedeta largou.
Nesse justo momento a bateria congolesa, bem postada na colina, fez fogo sobre a corveta, atingindo-a. Ainda uma segunda salva e já na corveta se picavam amarras.
De binóculos assestados tudo observávamos e íamos comentando. Sempre debaixo de fogo, correrias desencontradas da marinhagem no convés, ‘gerbes’ à volta do navio mostrando que o tinham enquadrado, uma desatracação aos solavancos (a circunstância não era para menos), ripostando com algum fogo errático e precipitado que atingiu um reservatório da Socopetrol não muito distante do cais do Ango-Ango… e finalmente o navio ganhou rumo e velocidade e dobrou a Ponta Ikungulu. Levava a bordo quinze feridos, três dos quais graves, resultado do fogo da bateria.
O reservatório da Socopetrol ardeu durante mais de quinze dias.
Também a situação em Matadi se tornou insustentável. Os
navios belgas reembarcaram os militares e aguardaram que escurecesse para
retirar. No meio do rio, a bandeira portuguesa no tope do mastro da “Pacheco
Pereira” com um poderoso holofote sobre ela, a marcar posição no escuríssimo da
noite, que o incêndio não mitigava, dava imponência ao cenário. Bem iluminadas
também as nossas bandeiras no cais de Nóqui. Não tínhamos aliviado a prontidão.
Na ponte do “Sal”, binóculos em punho, aguardava.
Subitamente fez-se dia: uma munição iluminante lançada pela bateria congolesa mostrava as corvetas belgas navegando velozes rio abaixo, deixado já o Caldeirão do Inferno para ré do través de estibordo. Mais algumas iluminantes foram lançadas.
Depois, fogo da bateria de terra e fogo das corvetas. Muitos minutos de fogo intenso. As corvetas ripostaram. Não pareceu que tivessem usado as peças de 3 polegadas: apenas as anti-aéreas Bofors de 40mm. E muito mal. Isso foi constatado com facilidade porque as munições tracejantes mostravam as trajectórias. Vi muitos tiros com demasiada elevação e mais ainda a ricochetearem na água para além de alguma dispersão na pontaria horizontal. O fogo de terra cessou antes do primeiro navio chegar ao enfiamento da “Pacheco Pereira”.
Sobre estas corvetas, sabe-se que foram atingidas, mas não com tanta gravidade como a “Dufour”.
Subitamente fez-se dia: uma munição iluminante lançada pela bateria congolesa mostrava as corvetas belgas navegando velozes rio abaixo, deixado já o Caldeirão do Inferno para ré do través de estibordo. Mais algumas iluminantes foram lançadas.
Depois, fogo da bateria de terra e fogo das corvetas. Muitos minutos de fogo intenso. As corvetas ripostaram. Não pareceu que tivessem usado as peças de 3 polegadas: apenas as anti-aéreas Bofors de 40mm. E muito mal. Isso foi constatado com facilidade porque as munições tracejantes mostravam as trajectórias. Vi muitos tiros com demasiada elevação e mais ainda a ricochetearem na água para além de alguma dispersão na pontaria horizontal. O fogo de terra cessou antes do primeiro navio chegar ao enfiamento da “Pacheco Pereira”.
Sobre estas corvetas, sabe-se que foram atingidas, mas não com tanta gravidade como a “Dufour”.
Um completo fiasco a operação ‘Mangrove’.
Dobrada Ikungulu pelos navios em fuga, o silêncio murmurado da água
veloz voltou a ser senhor do rio.
Regressado a Luanda, li com sofreguidão algumas cartas que
me esperavam. Nas dela, senti menos apêgo. Não a acompanhava. Continuava
enlevado; e era enlêvo que punha nas palavras que lhe escrevia.
Sempre muito atarefado com trabalho – podem rir-se os que
apoucam o suor dos militares – em Luanda pouco tempo de folga me restava; e a
navegar, quase sempre para Norte, nas
reentrâncias da costa em que fundeávamos dificilmente encontraria quem
cotejasse com vantagem a imagem que dela tinha.
Disse-me que o pai aceitara um cargo público em Lourenço
Marques, para onde ia, com a mãe, passar férias. Sabido o barco – o “Pátria” –
congeminei um encontro-surpresa. Luanda e Lobito eram escalas obrigatórias e o
“Sal” cumpria uma pequena paragem na Ilha de Luanda. Pedi dois ou três dias de
licença e preparei-me para a escoltar até ao Lobito. Consegui ir ao encontro do
paquete na embarcação da Capitania que levava o piloto e as autoridades
marítima e aduaneira e subi a escada do portaló, pouco antes da bóia de espera.
Surpreendi-a de facto. As surpresas, porém, nem sempre
provocam os efeitos imaginados. Nessa mesma tarde, pouco depois da largada para
Sul, o namoro estava acabado. Pensei que o desconsôlo fosse maior. No dia
seguinte, no campo de aviação do Lobito, que tão bem conhecera uns anos antes,
tomava um ‘Dakota’, de regresso à base.
Do navio, depois de ser dada volta aos serviços, nos dias em que o calor apertava mais, íamos até à praia, a
uns trezentos metros, no lado do mar da língua de areia. Ali fizemos algumas
amizades singulares.
Em outras ocasiões ia dar uma volta até Luanda. Uma caminhada
higiénica que muitas vezes tinha pausa no ‘Cortiço’, um bar de fim de tarde, convidativo,
bem no fundo do saco da baía. Com uma música ambiente aveludada e bem escolhida,
o ‘gin’ tónico tornava-se ainda mais relaxante. Era um ponto de passagem. Às
vezes ia visitar uma paixão platónica dos doze anos que morava ali perto com os
pais. Tínhamos uma espécie de imitação de namoro que nunca desabrochou.
Conversa de sofá, idas ao cinema, um baile de vez em quando… mas Platão não
arredou pé. Ainda somos amigos.
A propósito de dança, fui com alguns camaradas a um baile
cheio de chique, o Baile da Cruz Vermelha. E também conservo no acervo
fotográfico imagem para mo recordar.
O Capitão do Porto era
um oficial que se distribuía por muitos interesses. Simpatizava comigo e eu,
para além disso, admirava-o. Sob pseudónimo, escrevia contos navais nos Anais
do Clube Militar Naval que eram a minha primeira leitura quando os recebia.
Estava em Luanda com mulher e filha. Com alguns anos menos do que eu, a moça, muito
formosa, uma pele mate no sentido de ser levemente trigueira, um olhar limpo e
frontal e uma figura elegante sem ser magra, atraía os olhares masculinos. Não
me excluí a isso; e vi que de vez em quando os olhos dela também se fixavam em
mim. Chegou a haver uns ‘empurrões’ de amigos comuns. Mas tive medo. Temi que
se as coisas corressem mal viesse a estragar-se o relacionamento cordial com
toda a família.
Foi este camarada que me incumbiu de uma tarefa inusitada.
Creio que nunca cheguei a saber o porquê da visita a Luanda de dois ou três
hidroaviões franceses vindos da base, no Senegal. Durante os tempos de amaragem e
descolagem, havia que manter uma grande área da baía liberta do movimento de
embarcações. Ele lá achou que o perfil que via em mim era o indicado para fazer
executar a parte prática da tarefa e requisitou-me ao comandante do “Sal” que
anüiu. Pedi-lhe uma embarcação veloz. Arranjou-me uma bomba que hidroplanava
num ápice. Pedi-lhe uma credencial. Deu-me uma com estes dizeres: “o Senhor
tenente … manda em todos”. Uma delícia. Era um bacano.
Não muito tempo antes ou depois disto, não me lembro,
chegaram a Luanda dois aviões da Rèpública da África do Sul, dois Avro
Shackleton Mk3, ali usados para reconhecimento no mar, luta anti-submarina e
ainda busca e salvamento. Em 2004 ainda havia na África do Sul, um destes ‘Shackleton’
que voava; e era caso único no mundo. Vieram participar em manobras connosco.
Não com os patrulhas, mas pelo menos a
“Pacheco Pereira” participou. Embarquei num deles como observador. Uns monstros
de tamanho e força. Quatro motores potentíssimos para oito hélices girando em
cada motor aos pares e em sentidos contrários. Descolaram às quatro da manhã e
acordaram Luanda tal a quantidade de decibéis debitados. Voei aos solavancos,
qualquer coisa como oito horas sempre às voltas junto dos navios. Acabei
por me deitar e adormecer à popa, na zona transparente da cauda. Dormi se tanto
uma hora e acordei vermelho do escaldão.
No “Sal”, bem que os motores davam por vezes sinais de
cansaço. Já era Dezembro quando um deles se recusou a rodar mais. Como a avaria
fosse irreparável com os meios disponíveis em Angola, regressámos a Lisboa.
Penosa viagem. Dispondo de apenas um motor, o “Sal”
arrastava-se Atlântico acima a pequeníssima velocidade. Vinte e quatro horas
atrás, a “Pêro Escobar” seguia a nossa esteira a título de segurança.
Assim foi até Las Palmas. A paragem seguinte – as etapas
eram tão curtas quanto possível – seria o Funchal. Nem que tivesse sido
programado, se o motor ainda vivo continuasse a cumprir, o navio estaria na
Madeira por altura da celebrada festa do fim do ano. Mas primeiro era o Natal,
um natal espanhol que nos preparávamos para comemorar. Longe das famílias, é
certo, mas com o amparo do desamparo de todos os outros. E a coberto da
trabuzana que se aproximava.
É então, que já com um temporal desfeito sobre a Grã
Canária, “a las cinco de la tarde” do dia 24 de Dezembro de 1960, recebemos
ordem para largar de imediato, rumo a
Lisboa. Largámos do Molhe do Generalíssimo pouco antes do crepúsculo.Com vagas
desencontradas, altíssimas, vento muito forte, pouca visibilidade e um único
motor já cansado, foi assim que encetámos a viagem de volta a casa. Tendo
deixado de ser importante a potencial ajuda da “Pêro Escobar”, entretanto ainda
a dias de distância, aquela ordem só podia significar que íamos “tirar o pai da
fôrca”.
O pequeno e velho patrulha costeiro, coitado (coitados de
nós), subia desesperadamente cada montanha de água e chegado à crista
derramava-se por ali baixo, a ganhar fôlego, enfiava a proa no abismo salgado,
esperava que o mar o reerguesse e repetia cada ciclo. Nem sempre. Algumas vezes
o motor parava e ficávamos alguns minutos à deriva (uma eternidade). Era o
tempo de substituir uns tubos, tubos de óleo de lubrificação, que teimavam em dar nas
vistas.
A primeira vez que o sinistro silêncio aconteceu, mal
tínhamos deixado o molhe pela alheta. Não gostei nada. Nada. Ficar no meio de
um temporal entregue aos caprichos de Neptuno sem nenhuma defesa, fez-me passar
por uma complexa sensação, difícil de descrever. Casca de noz será a melhor imagem. Tubo reposto, era um
alívio ouvir de novo o barulho familiar de toda a maquinaria, ter de novo luz, poder
de novo escolher um rumo.
Véspera de Natal. Consoada soaria a eufemismo. A verdade é que só eu e o
cozinheiro comemos alguma coisa nessa noite. Porque nenhum de nós enjoou.
A velocidade média do navio nas primeiras vinte e quatro horas
foi inferior a cinco nós.
Esta etapa Las Palmas – Lisboa, onde chegámos a 29 de
Dezembro, fez história entre os que a viveram.
Tal como no teatro as revistas têm a apoteose como seu
último acto, também esta comédia teve um
apogeu final.
Um final de frustração.
Ao apresentar-se no Ministério, logo após a chegada, o
Comandante constatou que ninguém se lembrava da ordem de largada dada ao navio
dias antes. A pergunta que lhe fizeram foi:
-Que faz você aqui?
Mezena
17 de Fevereiro de
2012
Muito bom. Bela viagem pelos mares e pelas recordações.
ResponderEliminar