17.2.12


Ventos de independência

NRP “Sal” – Junho a Dezembro de 1960

Tudo tinha ficado tremido depois da minha ousada investida na véspera da partida. Em boa verdade nada mais fizera que obedecer ao impulso primordial.
Fui repelido. Não tanto, creio, por razões de ordem moral, antes pelo inesperado do avanço. É que eu era um moço muito certinho. E ela…, ela acabara de chegar aos dezanove anos. Além do mais, corria apenas 1960, que ia quase pela metade; e não obstante sermos ambos livres de peias, a comunidade era cruel para quem a desafiava.

O certo é que poucas horas depois, manhã cedo, estava no meu quarto na Messe do Alfeite, tão afectuosa como sempre; e a seguir, no pontão de onde largaram o “Sal” e o “S. Vicente” cumpriu os rituais de despedida. Talvez eu não tenha sabido interpretar todos os sinais… mas, parecia ultrapassado o desagrado que a minha manifestação de desejo tão clara e nuamente mostrado tinha provocado. E as choradas palavras de arrependimento com que, ao telefone, logo após, tentei redimir-me, poderiam ter colhido… Vermelha e velha, aquela típica cabine telefónica lisboeta, ali plantada sob as janelas da casa dela, era de uma oportuna e  romântica posição estratégica!

Largámos na manhã de 3 de Junho de 1960.


A bordo, três oficiais da classe de Marinha e um do Serviço Geral que chefiava as Máquinas. Sendo eu o mais moderno dos primeiros, coube-me, como era praxe, ser navegador; e também – soi-disant – oficial de Administração Naval. Mais ainda: face à escassez de bonés, calhou-me em sorte chefiar mais cinco serviços. Como contrapeso e ainda por ser o mais moderno, fazia os quartos  ‘mais leves’: do meio-dia às quatro e da meia-noite às quatro. Acrescia que quase diariamente, quando por volta das quatro e meia me aconchegava no beliche, bêbado de sono, em busca de algum descanso até às oito, aparecia no camarote o cabo sinaleiro, com uma mensagem de quilómetro, urgente e cifrada, acabada de receber da Cabina de TSF. Era por azar aquela a hora de boa propagação para a Radiodifusão RT (para navios da Armada a longa distância). Ninguém mais sabia mexer na KL-7, nem para isso estava credenciado. Fiz muitas directas... Mas, era um jovem tenenteco de 23 anos e tudo podia.  Este pequeno desabafo não pretende ser (não é) uma queixa. Se o fosse estaria requentada de  cinquenta e tal anos. Afirma apenas que era penoso num pequeno navio trabalhar sobre o decalque da organização pensada para os maiores e isso tornava por vezes difícil levar a carta a Garcia. 

Não recordo que tenhamos ido ao Funchal mas devemos tê-lo  feito. Tocámos Las Palmas. Já lá estivera dois anos antes e isso fazia de mim um entendido na topografia da cidade e conselheiro no que às compras dizia respeito. De pouca valia porém quanto às mercas próprias. Começara a moda dos gravadores; e sem 'papel' que chegasse para os melhores, comprei  uma quarta ou quinta escolha que cedo me desiludiu e acabei por vender mais barato ao enfermeiro do navio,  João Plácido Saramago, que se não era primo do outro disfarçava mal, tal a semelhança fisionómica. Também comprei um relógio que acabou no pulso do piloto que me ajudou a conhecer o Zaire. Oferecido. Relógio e gravador foram comprados de uma forma caricata bastante aciganada. Apagaram-se-me alguns pormenores, mas sei que houve dois relógios, dois gravadores e duas lojas envolvidas. Com o primeiro “monhé”, o negócio, muito segundo os cânones, meteu sofá, deu direito a ‘whiskey’ e a longa conversa. Embrulhado e pago o gravador, saí ledo e ligeiro rua abaixo, onde mais lojas se perfilavam. Poucos passos caminhados, fui interpelado por um segundo “monhé”, à porta de mais um bazar. [Que leva aí tão bem escondido? Um gravador. Quanto custou? Deixe-me ver. Ah! Mas eu vendo isso mais barato. Não acredito. Venha ver!... Era verdade. Negócio ajustado. Espere aí que vou devolver este. Que relógio interessante. Quanto custa? Compro]. Voltei à primeira loja, onde o vendedor me prometeu  devolver as pesetas se além do gravador lhe mostrasse a factura. [Há pouco não trazia relógio. Comprou-o lá? Quanto? Mas isso aqui fica-lhe muito mais barato. Espere um pouco que vou buscar a factura, devolvo o relógio e já cá volto]. E assim foi. Por certo nenhum deles deixou de ganhar, inda que menos; e eu, no decurso da barganha dei livre curso à minha provável costela marroquina.

Fomos também  a Dakar. O Senegal tinha alcançado havia pouco a independência. A cidade estava bonita. Entrei numas livrarias. Passeava-me pela rua principal quando fui travado por uma farda desconhecida. Muitas sirenes, muitas motos e automóveis. A velocidade e a cortina de segurança em volta do carro do presidente não impediram que tivesse visto um sisudo Senghor refastelado no luxuoso automóvel. Mais tarde, a caminho de um beberete de circunstância, passei por uma pronunciadíssima ladeira que olhava com soberba para o mar que a seus pés a acariciava de lado. Um postal que me ficou.

S. Vicente. Não recordo nada. Tenho que ir a Lisboa, ao Arquivo-Geral de Marinha, onde deve estar o Diário Náutico, para ter a certeza que a memória que tenho do percurso não me está a atraiçoar.

De Cabo Verde para a Guiné o sol teimou em não se mostrar.  Apanhei-o duas ou três vezes por pequenas nesgas de céu e consegui uma altura meridiana. Introduzi os resultados das observações na navegação estimada que vinha fazendo e fiquei com uma noção da posição dos navios. Não era muito consistente. Mas, considerados todos os parâmetros envolvidos na estima e os dados obtidos com o sextante pareceu-me a posição mais provável. Costa com fundos traiçoeiros, fazer a aterragem à Guiné amedrontava e tirava o sono a muito comandante e punha em brios a vocação, o saber e os dotes dos navegadores. A aproximação à Bóia de Espera fundeada ao largo, frente à foz do Geba, era feita com pinças e requeria muitos dados que nem sempre compareciam. No ‘S. Vicente’, a tarefa de navegar foi entregue ao imediato. Comparadas as posições estimadas pelos dois, distavam umas dezenas de milhas. Olhado com desconfiança pelo comandante que me dirigiu palavras desencorajadoras e pouco abonatórias, vi o meu imediato ser também ele cometido à tarefa da navegação. Passou a haver três posições estimadas. Continuei a pôr na carta a ‘minha posição’.  Os comandantes optaram por um rumo de aproximação intermédio em que a estima por mim feita pouco importava. Houve momentos de muita tensão. O radiofarol de Caió apareceu tarde e a más horas e o sinal materializado no osciloscópio, não fornecia uma direcção precisa. De repente, a sonda passou a dar fundos assustadoramente baixos. Reduziu-se a velocidade e foram-se ajustando os rumos, cada vez mais de acordo ‘comigo’. Recorreu-se ao prumo para cotejar a sonda. Tacteava-se o horizonte com binóculos. Alguém julgou ter visto a Bóia de Espera no horizonte, muito longe da proa. Que não podia ser. A bóia teria que estar mais p’ra Norte. Não ali. Vejam bem. Mas era a bóia. Era a bóia!  A minha estima sempre estivera correcta! O navegador - bom navegador - era eu. Voei da ponte para o camarote. Precisava de desfazer em lágrimas a emoção que feita um nó me tolhia a respiração. Um breve pranto de quase raiva, que ninguém viu, de que ninguém soube. Voltei à ponte, seguro de mim.

Seguiu-se Abidjan. Ali - depois do semi-fracasso que tive com o Ivo Cruz, na 6ª Repartição da Direcção-Geral de Contabilidade Pública (era este o nome?), quando lhe pedi o adiantamento de um mês de subsídio de embarque para o pessoal - reencetei as minhas funções administrativas com a ‘difícil’ tarefa de um saque de divisas no Crédit Lyonnais. Não me saí mal. Sem tarimba para o que fazia, não terei seguido a cartilha tal como era praticada pelos profissionais...  Razão porque o sargento Ganhão, o fiel, um adventício de formação artilheira, mas meu braço direito para a ‘escriba’,  vaticinava com um sorriso de orelha a orelha: “Vamos ser todos presos!”.

Em Janeiro de 1951, catorze anos acabadinhos, passageiro de segunda classe no “Império”, viajando sozinho para Lisboa e não enjeitando uma pretensiosa pose de adulto, um dar-me ares de cujo ridículo só muito depois tive ciência, estive em S. Tomé pela primeira vez. Não digo que me tenha apaixonado pela ilha, não tinha talvez ainda essa capacidade, mas gostei muito dos cheiros, da vegetação, do aconchego do calor húmido, dos panos brancos que me fizeram lembrar as vestes dos cabindas. Na segunda passagem, Setembro de 59, dava-me menos ares e ia mais atento. Gostei com mais força. Mas quem se apaixonou foi uma mocinha muito bonita, morena, pequenina, novinha ainda, com quem dancei num baile p’ra guarda-marinhas, que terá visto em mim e nos ouros do uniforme, a passagem por que quase sempre os ilhéus anseiam para chegar ao mundo. Tratei-a como se de uma irmã se tratasse. Reencontrámo-nos neste Junho de 1960. Mais mulherzinha e mais solta, tentou com palavras traduzir as emoções que antes lhe vira nos olhos. Com suporte da família, não se deixou convencer pelos obstáculos que lhe opus, mas a escala breve tornou tudo simples. De resto, estive ocupado com questões de serviço e a tradicional visita às roças: Água Izé como sempre.

Pouco depois da largada rumo a Luanda, no quarto do meio-dia às quatro, o sol deixou-se tapar, o dia escureceu para um cinzento negro; e uma nuvem baixa, estreita e comprida, quase preta, ocupou todo o horizonte na proa. A atmosfera electrizada adivinhava-se no suave lilás que nos envolvia. O mar continuava sem rugas e o vento não passava de uma aragem. Mas o conjunto prenunciava um adamastor enfurecido mais além. Assim foi. O tubo de aspiração de uma tromba de água a cerca de uma milha na amura de estibordo, surdiu do nada, a perfurar o céu, um extenso funil a alargar-se para cima, bem desenhado, de uma perfeita harmonia de formas. Figura ameaçadora. De existência breve, mas marcando presença sonora com estrondo, que foi também um silvo. Passámos por baixo da nuvem e mal o fizemos o vento cresceu assustador, fazendo uma tal pressão sobre a obra-morta do navio que este, qual veleiro, adornou uns dez graus para bombordo. Seguiu-se uma chuva pesada, densa, de riscos brilhantes obliquados com precisão pelo vento cuja força e direcção se mantiveram quase até Angola. Assim também a inclinação do navio. A chuva, essa, secou antes.

Luanda recebeu-nos bem.  Na Ilha de Nossa Senhora do Cabo, tratada pelo vulgo por Ilha de Luanda, atracámos ao ‘Carvalho Araújo’, agora chamado velho, abandonado ao papel de pontão,  cheio de manchas de ferrugem a ressumarem do casco outrora de um branco luminoso. Não é que não fosse já usado também,  o novo ‘Carvalho Araújo’ que o substituira. Só que pintado de azul-bebé ficava com um ar travesso de menino que lhe tornava aceitável  o apodo de ‘novo’. Regressado o comandante dos cumprimentos em terra, fomos à exploração próxima,  da nossa estação. Reencontrámos os camaradas e famílias com que estivéramos uns meses antes. Poucas novidades. Aos oficiais foram concedidas instalações de pernoita em Luanda. No edifício onde no porto, tinham sède, Capitania, Alfândega e outros serviços. Do lado oposto à tôrre com relógio que dava identidade à construção, eu e o imediato ocupámos o mesmo quarto, que não früimos muito, dado que ao longo dos cinco meses e meio desta primeira comissão em Angola, pouco estacionámos em Luanda. 


Mesmo assim, sendos nós camaradas de curso e amigos, aquele cenário foi palco de muitas conversas, tão longas quanto a pressa do sono de um qüotidiano cansativo permitia e que versavam quer as prosaicas questões de serviço, quer assuntos das nossas histórias próprias ou mesmo os nossos afectos distantes. Conversas de moços, já homens.

Poucos dias após a chegada, substituidas as canseiras da viagem pelas de adaptação dos serviços às novas circunstâncias, recebemos ordem para seguir para Nóqui.

Era 10 de Julho. Metemos piloto em Santo António do Zaire e subimos o rio. Aproximávamo-nos de Boma quando avistámos um navio cinzento com aspecto de mercantão. Não me foi difícil reconhecer o “Kamina”, navio auxiliar da Armada belga que nas manobras do ano anterior por aquelas mesmas paragens, fora o combóio. Muito cingido à margem norte, subia o rio com todo o vagar pelo que nos fomos paulatinamente adiantando. Já o víamos por ré do través de bombordo quando apontou sobre nós o projector e chamou. O sinaleiro de quarto respondeu à interpelação. Surpreendeu-nos a mensagem sucinta que enviou, em inglês e que rezava: “Are you ready to slash?

Em África sopravam ventos de independência. Nos últimos meses de 1959 e no princípio de 1960, os belgas sentaram-se à mesa em Bruxelas com os emergentes líderes políticos congoleses. Foram aprovadas entre outras coisas, a data da independência – 30 de Junho de 1960 – e as linhas mestras de uma constituição política provisória, que espelhava a monarquia constitucional belga e que foi adoptada no seu parlamento em 19 de Maio. O Movimento Nacional Congolês de Patrice Emery Lumumba e uma coalizão dos partidos nacionalistas radicais, ganharam a maioria dos assentos parlamentares nas eleições pré- independência de 22 de Maio de 1960, em conseqüência das quais, Lumumba veio a tornar-se primeiro-ministro e Joseh Kasa Vubu -líder da aliança dos bakongo (ABAKO)- chefe de estado.  Após o grande dia, os propósitos acordados duraram pouco. Em 5 de Julho, as Forças Armadas amotinaram-se. O motim espalhou-se, descontrolado. Amotinaram-se as guarnições da Força Pública e da Polícia. A cidade de Matadi quedou-se  deserta de europeus que amedrontados convergiram para o porto e embarcam nos navios mercantes ali surtos.

Percebia-se agora a razão de terem sido alterados os propósitos iniciais de estarmos mais uns dias em Luanda: fomos engrossar a pequena força naval que se posicionara expectante junto à fronteira Angola (Nóqui) – Congo (Ango-Ango).


A “Pacheco Pereira”, sob o comando de Camões Godinho, tendo a bordo o Comandante Naval de Angola, Isaías Newton da Fonseca, estava fundeada quase a meio do rio, a jusante da Ponta Ikungulu, onde, frente a Nóqui, a água correndo de Norte, faz uma curva muito pronunciada de quase noventa graus e passa a correr para Oeste. (No ano anterior, ali estive na “Nuno Tristão”, mais próxima de terra, com um ferro no fundo e espias para árvores em terra, mantendo-se paralela à forte corrente). Além da “Pacheco Pereira” – F 337 -, o “Carvalho Araújo” – A 524 -, do comando de Rosa Coutinho, atracado à ponte-cais de Nóqui. De braço dado, o “S. Vicente” – P 586 –, de Fonseca Gamito. E nós, o “Sal” – P 582 -, com Alcibíades da Cruz atracados ao “S. Vicente”, nosso irmão de classe. Comentou-se a mensagem do “Kamina” que mostrava não só os propósitos que animavam os súbditos do rei dos Belgas como o tipo de ajuda que esperavam de nós. Mensagem que aliás não tinha tido resposta. 



Com os navios cheios de brancos e Matadi vazia deles, pareceria ter deixado de ser precisa a intervenção das forças belgas que os protegeriam. Não foi assim. O bloqueio feito  pelos grevistas, quer dos caminhos de ferro quer do porto, que impedia o movimento de navios, tinha posto a distante capital, Léopoldville, muitas milhas a montante, em risco de asfixia por falta de abastecimento. Por isso, na noite de 10 de Julho, o comandante das Forças Metropolitanas ordenara a execução da Operação ‘Mangrove’  para retomar o controlo do porto e desarmar os amotinados. Para o efeito foi constituída uma ‘Task Force’ (3 corvetas da classe ‘Algérine’ e 3 vedetas fluviais, com fuzileiros navais, 1 companhia de caçadores e 1 companhia de infantaria) que largou de Banana às 02:15 e subiu o rio rumo ao objectivo. Entretanto, o Estado-Maior Operacional da Base militar de Kitona (Baki), tratou de assegurar cobertura aérea ao desembarque, o que se traduziu numa esquadrilha de 4 Harvard T-6, com ordens para fazer vôos de intimidação sobre os portos de Boma e Matadi quando começasse o ataque, não podendo usar os ‘rockets’ senão em caso de extrema necessidade. Ainda lhes foi ordenado que não voassem baixo. Às 10:15 a ‘Task Force’ estava perto do Caldeirão do Inferno, na curva do Zaire entre Nóqui e Matadi, onde, dizia-se, já alguns navios tinham sido sugados pelos redemoinhos, aliás sempre perigosos naquelas águas. A corveta “Dufour”  - F 903 - e a vedeta “Ourthe”, separaram-se da Força e fizeram-se ao cais de Ango-Ango para aí desembarcar tropas. Fuzileiros  tomariam e controlariam o porto petroleiro;  e a infantaria ia desarmar os polícias congoleses acantonados nas casernas. As duas corvetas e as duas vedetas restantes transportaram o grosso das tropas para Matadi e juntaram-se a uma outra corveta, ali estacionada havia alguns dias.


O dia 11 de Julho amanheceu bonito. Na ponte baixa, o imediato e eu conversávamos quando – eram as mesmas dez e um quarto – ouvimos o estrépito súbito de um metralhar crepitado,  muito próximo. Acto contínuo abaixámo-nos. Mas logo nos levantámos sem poder conter o riso: tínhamos procurado a protecção da sanefa de lona pintada de cinzento que delimitava o espaço. Levantámo-nos... a tempo ainda de ver soldados negros da guarnição de Nóqui, atirarem-se para debaixo das camas, na caserna que ali bem perto do cais se escancarava para nós. A coisa perdeu todo o caricato, quando percebemos que um avião Harvard  dos belgas atacara uma bateria congolesa perto da fronteira. Os ataques repetiram-se por quatro ou cinco vezes, com mais do que um avião. As aeronaves aproximavam-se em vôo rasante vindas da margem congolesa do rio, a um rumo algures entre Sueste e Lés-Sueste, sobrevoando ou muito próximo disso, os quatro navios portugueses e Nóqui, para dispararem sobre a posição congolesa.  Entrámos em postos de combate. Houve entretanto um interregno nos ataques aéreos. Face ao rumo dos aviões agressores, com sobrevôo do espaço português, foi considerado na “Pacheco Pereira” o cenário de uma eventual  ameaça dos congoleses aos navios, se não tomássemos uma atitude dissuasora junto dos belgas; e estes terão sido contactados, mostrando-se-lhes a situação de acto hostil em que nos punham. Chegou mesmo a equacionar-se a necessidade de fogo anti-aéreo nosso, contra aquelas aeronaves, se os ataques se repetissem. O que teria sido difícil porque o inesperado da situação apanhou as peças não completamente prontas. Não teria aliás sido necessário porque os ataques aéreos cessaram e os aviões desapareceram da área. Especulou-se àcerca da inoportunidade do impedimento das peças mas sem consequências.

Tudo parecia ter serenado à nossa volta. Mas mantivemos a prontidão.

De facto, as coisas tinham-se complicado em Matadi. Uma resistência para além do previsto e a perda de um avião ficavam a perder  com os 18 mortos e 32 feridos feitos entre os congoleses.

Já o Sol por ali tinha passado havia algum tempo quando da “Pacheco Pereira” largou o escaler a motor, hasteando uma bandeira portuguesa de quatro panos e levando a bordo um 2º tenente meu camarada de curso. Destino, Matadi. Missão: resgatar residentes de Nóqui e agentes da Pide em serviço de recolha de informações. Bandeira grande para ser bem identificada das margens mas grande demais para o tamanho da embarcação pois pendia sobre a água. Por uma questão de eventual necessidade de defesa levava armamento – as velhas e belíssimas ‘Mauser’ - e munições, nos caixões do escaler. - Vem a talhe de foice dizer que um ano depois, no mesmo rio mas no porto de Boma, Rosa Coutinho também levou armamento nos caixões, mas teve menos sorte: esteve preso muitos meses no Congo, tal como a guarnição do escaler -. Em Matadi a missão foi cabalmente cumprida e os resgatados entregues na fragata.


Às quatro da tarde a situação tornou-se crítica e a infantaria e os fuzileiros desembarcados em Ango-Ango, receberam ordem de retirar e reembarcar na “Dufour”. Esta apercebeu-se de que uma bateria congolesa tinha tomado posição numa colina fronteira - a que ficava muito exposta - e pediu para se afastar do cais. Antes que o tivesse feito atracou-se-lhe a vedeta com o resto da tropa retirada. Mal o transbordo foi feito a vedeta largou. 
Nesse justo momento a bateria congolesa, bem postada na colina, fez fogo sobre a corveta, atingindo-a. Ainda uma segunda salva e já na corveta se picavam amarras. 
De binóculos assestados tudo observávamos e íamos comentando. Sempre debaixo de fogo, correrias desencontradas da marinhagem no convés, ‘gerbes’ à volta do navio mostrando que o tinham enquadrado, uma desatracação aos solavancos (a circunstância não era para menos), ripostando com algum fogo errático e precipitado que atingiu um reservatório da Socopetrol não muito distante do cais do Ango-Ango…  e finalmente o navio ganhou rumo e velocidade e dobrou a Ponta Ikungulu. Levava a bordo quinze feridos, três dos quais graves, resultado do fogo da bateria. 
O reservatório da Socopetrol ardeu durante mais de quinze dias.

Também a situação em Matadi se tornou insustentável. Os navios belgas reembarcaram os militares e aguardaram que escurecesse para retirar. No meio do rio, a bandeira portuguesa no tope do mastro da “Pacheco Pereira” com um poderoso holofote sobre ela, a marcar posição no escuríssimo da noite, que o incêndio não mitigava, dava imponência ao cenário. Bem iluminadas também as nossas bandeiras no cais de Nóqui. Não tínhamos aliviado a prontidão. Na ponte do “Sal”, binóculos em punho, aguardava. 
Subitamente fez-se dia: uma munição iluminante lançada pela bateria congolesa mostrava as corvetas belgas navegando  velozes rio abaixo, deixado já o Caldeirão do Inferno para ré do través de estibordo. Mais algumas iluminantes foram lançadas. 
Depois, fogo da bateria de terra e fogo das corvetas. Muitos minutos de fogo intenso.  As corvetas ripostaram. Não pareceu que tivessem usado as peças de 3 polegadas: apenas as anti-aéreas Bofors de 40mm. E muito mal. Isso foi constatado com facilidade porque as munições tracejantes mostravam as trajectórias. Vi muitos tiros com demasiada elevação e mais ainda a ricochetearem na água para além de alguma dispersão na pontaria horizontal. O fogo de terra cessou antes do primeiro navio chegar ao enfiamento da “Pacheco Pereira”. 
Sobre estas corvetas, sabe-se que foram atingidas, mas não com tanta gravidade como a “Dufour”.

Um completo fiasco a operação ‘Mangrove’.

Dobrada Ikungulu pelos navios em fuga, o silêncio murmurado da água veloz voltou a ser senhor do rio.

Regressado a Luanda, li com sofreguidão algumas cartas que me esperavam. Nas dela, senti menos apêgo. Não a acompanhava. Continuava enlevado; e era enlêvo que punha nas palavras que lhe escrevia.

Sempre muito atarefado com trabalho – podem rir-se os que apoucam o suor dos militares – em Luanda pouco tempo de folga me restava; e a navegar, quase sempre para  Norte, nas reentrâncias da costa em que fundeávamos dificilmente encontraria quem cotejasse com vantagem a imagem que dela tinha.

Disse-me que o pai aceitara um cargo público em Lourenço Marques, para onde ia, com a mãe, passar férias. Sabido o barco – o “Pátria” – congeminei um encontro-surpresa. Luanda e Lobito eram escalas obrigatórias e o “Sal” cumpria uma pequena paragem na Ilha de Luanda. Pedi dois ou três dias de licença e preparei-me para a escoltar até ao Lobito. Consegui ir ao encontro do paquete na embarcação da Capitania que levava o piloto e as autoridades marítima e aduaneira e subi a escada do portaló, pouco antes da bóia de espera.



Surpreendi-a de facto. As surpresas, porém, nem sempre provocam os efeitos imaginados. Nessa mesma tarde, pouco depois da largada para Sul, o namoro estava acabado. Pensei que o desconsôlo fosse maior. No dia seguinte, no campo de aviação do Lobito, que tão bem conhecera uns anos antes, tomava um ‘Dakota’, de regresso à base.

Do navio, depois de ser dada volta aos serviços, nos dias em que  o calor apertava mais, íamos até à praia, a uns trezentos metros, no lado do mar da língua de areia. Ali fizemos algumas amizades singulares.



Em outras ocasiões ia dar uma volta até Luanda. Uma caminhada higiénica que muitas vezes tinha pausa no ‘Cortiço’, um bar de fim de tarde, convidativo, bem no fundo do saco da baía. Com uma música ambiente aveludada e bem escolhida, o ‘gin’ tónico tornava-se ainda mais relaxante. Era um ponto de passagem. Às vezes ia visitar uma paixão platónica dos doze anos que morava ali perto com os pais. Tínhamos uma espécie de imitação de namoro que nunca desabrochou. Conversa de sofá, idas ao cinema, um baile de vez em quando… mas Platão não arredou pé. Ainda somos amigos.

A propósito de dança, fui com alguns camaradas a um baile cheio de chique, o Baile da Cruz Vermelha. E também conservo no acervo fotográfico imagem para mo recordar.




O Capitão do Porto  era um oficial que se distribuía por muitos interesses. Simpatizava comigo e eu, para além disso, admirava-o. Sob pseudónimo, escrevia contos navais nos Anais do Clube Militar Naval que eram a minha primeira leitura quando os recebia. Estava em Luanda com mulher e filha. Com alguns anos menos do que eu, a moça, muito formosa, uma pele mate no sentido de ser levemente trigueira, um olhar limpo e frontal e uma figura elegante sem ser magra, atraía os olhares masculinos. Não me excluí a isso; e vi que de vez em quando os olhos dela também se fixavam em mim. Chegou a haver uns ‘empurrões’ de amigos comuns. Mas tive medo. Temi que se as coisas corressem mal viesse a estragar-se o relacionamento cordial com toda a família.

Foi este camarada que me incumbiu de uma tarefa inusitada. Creio que nunca cheguei a saber o porquê da visita a Luanda de dois ou três hidroaviões franceses vindos da base, no  Senegal. Durante os tempos de amaragem e descolagem, havia que manter uma grande área da baía liberta do movimento de embarcações. Ele lá achou que o perfil que via em mim era o indicado para fazer executar a parte prática da tarefa e requisitou-me ao comandante do “Sal” que anüiu. Pedi-lhe uma embarcação veloz. Arranjou-me uma bomba que hidroplanava num ápice. Pedi-lhe uma credencial. Deu-me uma com estes dizeres: “o Senhor tenente … manda em todos”. Uma delícia. Era um bacano.




Não muito tempo antes ou depois disto, não me lembro, chegaram a Luanda dois aviões da Rèpública da África do Sul, dois Avro Shackleton Mk3, ali usados para reconhecimento no mar, luta anti-submarina e ainda busca e salvamento. Em 2004 ainda havia na África do Sul, um destes ‘Shackleton’ que voava; e era caso único no mundo. Vieram participar em manobras connosco. Não com os patrulhas, mas pelo menos  a “Pacheco Pereira” participou. Embarquei num deles como observador. Uns monstros de tamanho e força. Quatro motores potentíssimos para oito hélices girando em cada motor aos pares e em sentidos contrários. Descolaram às quatro da manhã e acordaram Luanda tal a quantidade de decibéis debitados. Voei aos solavancos, qualquer coisa como oito horas sempre às voltas junto dos navios.  Acabei por me deitar e adormecer à popa, na zona transparente da cauda. Dormi se tanto uma hora e acordei vermelho do escaldão. 




No “Sal”, bem que os motores davam por vezes sinais de cansaço. Já era Dezembro quando um deles se recusou a rodar mais. Como a avaria fosse irreparável com os meios disponíveis em Angola, regressámos a Lisboa.

Penosa viagem. Dispondo de apenas um motor, o “Sal” arrastava-se Atlântico acima a pequeníssima velocidade. Vinte e quatro horas atrás, a “Pêro Escobar” seguia a nossa esteira a título de segurança. 


Assim foi até Las Palmas. A paragem seguinte – as etapas eram tão curtas quanto possível – seria o Funchal. Nem que tivesse sido programado, se o motor ainda vivo continuasse a cumprir, o navio estaria na Madeira por altura da celebrada festa do fim do ano. Mas primeiro era o Natal, um natal espanhol que nos preparávamos para comemorar. Longe das famílias, é certo, mas com o amparo do desamparo de todos os outros. E a coberto da trabuzana que se aproximava.

É então, que já com um temporal desfeito sobre a Grã Canária, “a las cinco de la tarde” do dia 24 de Dezembro de 1960, recebemos ordem  para largar de imediato, rumo a Lisboa. Largámos do Molhe do Generalíssimo pouco antes do crepúsculo.Com vagas desencontradas, altíssimas, vento muito forte, pouca visibilidade e um único motor já cansado, foi assim que encetámos a viagem de volta a casa. Tendo deixado de ser importante a potencial ajuda da “Pêro Escobar”, entretanto ainda a dias de distância, aquela ordem só podia significar que íamos “tirar o pai da fôrca”.

O pequeno e velho patrulha costeiro, coitado (coitados de nós), subia desesperadamente cada montanha de água e chegado à crista derramava-se por ali baixo, a ganhar fôlego, enfiava a proa no abismo salgado, esperava que o mar o reerguesse e repetia cada ciclo. Nem sempre. Algumas vezes o motor parava e ficávamos alguns minutos à deriva (uma eternidade). Era o tempo de substituir uns tubos, tubos de óleo de lubrificação, que teimavam em dar nas vistas.

A primeira vez que o sinistro silêncio aconteceu, mal tínhamos deixado o molhe pela alheta. Não gostei nada. Nada. Ficar no meio de um temporal entregue aos caprichos de Neptuno sem nenhuma defesa, fez-me passar por uma complexa sensação, difícil de descrever.  Casca de noz será a melhor imagem. Tubo reposto, era um alívio ouvir de novo o barulho familiar de toda a maquinaria, ter de novo luz, poder de novo escolher um rumo.

Véspera de Natal. Consoada soaria a eufemismo. A verdade é que só eu e o cozinheiro comemos alguma coisa nessa noite. Porque nenhum de nós enjoou.

A velocidade média do navio nas primeiras vinte e quatro horas foi inferior a cinco nós.

Esta etapa Las Palmas – Lisboa, onde chegámos a 29 de Dezembro, fez história entre os que a viveram.

Tal como no teatro as revistas têm a apoteose como seu último acto, também esta comédia teve um  apogeu final.

Um final de frustração.

Ao apresentar-se no Ministério, logo após a chegada, o Comandante constatou que ninguém se lembrava da ordem de largada dada ao navio dias antes. A pergunta que lhe fizeram foi:

-Que faz você aqui?


Mezena
17 de Fevereiro de 2012

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