17.2.12


Ventos de independência

NRP “Sal” – Junho a Dezembro de 1960

Tudo tinha ficado tremido depois da minha ousada investida na véspera da partida. Em boa verdade nada mais fizera que obedecer ao impulso primordial.
Fui repelido. Não tanto, creio, por razões de ordem moral, antes pelo inesperado do avanço. É que eu era um moço muito certinho. E ela…, ela acabara de chegar aos dezanove anos. Além do mais, corria apenas 1960, que ia quase pela metade; e não obstante sermos ambos livres de peias, a comunidade era cruel para quem a desafiava.

O certo é que poucas horas depois, manhã cedo, estava no meu quarto na Messe do Alfeite, tão afectuosa como sempre; e a seguir, no pontão de onde largaram o “Sal” e o “S. Vicente” cumpriu os rituais de despedida. Talvez eu não tenha sabido interpretar todos os sinais… mas, parecia ultrapassado o desagrado que a minha manifestação de desejo tão clara e nuamente mostrado tinha provocado. E as choradas palavras de arrependimento com que, ao telefone, logo após, tentei redimir-me, poderiam ter colhido… Vermelha e velha, aquela típica cabine telefónica lisboeta, ali plantada sob as janelas da casa dela, era de uma oportuna e  romântica posição estratégica!

Largámos na manhã de 3 de Junho de 1960.


A bordo, três oficiais da classe de Marinha e um do Serviço Geral que chefiava as Máquinas. Sendo eu o mais moderno dos primeiros, coube-me, como era praxe, ser navegador; e também – soi-disant – oficial de Administração Naval. Mais ainda: face à escassez de bonés, calhou-me em sorte chefiar mais cinco serviços. Como contrapeso e ainda por ser o mais moderno, fazia os quartos  ‘mais leves’: do meio-dia às quatro e da meia-noite às quatro. Acrescia que quase diariamente, quando por volta das quatro e meia me aconchegava no beliche, bêbado de sono, em busca de algum descanso até às oito, aparecia no camarote o cabo sinaleiro, com uma mensagem de quilómetro, urgente e cifrada, acabada de receber da Cabina de TSF. Era por azar aquela a hora de boa propagação para a Radiodifusão RT (para navios da Armada a longa distância). Ninguém mais sabia mexer na KL-7, nem para isso estava credenciado. Fiz muitas directas... Mas, era um jovem tenenteco de 23 anos e tudo podia.  Este pequeno desabafo não pretende ser (não é) uma queixa. Se o fosse estaria requentada de  cinquenta e tal anos. Afirma apenas que era penoso num pequeno navio trabalhar sobre o decalque da organização pensada para os maiores e isso tornava por vezes difícil levar a carta a Garcia. 

Não recordo que tenhamos ido ao Funchal mas devemos tê-lo  feito. Tocámos Las Palmas. Já lá estivera dois anos antes e isso fazia de mim um entendido na topografia da cidade e conselheiro no que às compras dizia respeito. De pouca valia porém quanto às mercas próprias. Começara a moda dos gravadores; e sem 'papel' que chegasse para os melhores, comprei  uma quarta ou quinta escolha que cedo me desiludiu e acabei por vender mais barato ao enfermeiro do navio,  João Plácido Saramago, que se não era primo do outro disfarçava mal, tal a semelhança fisionómica. Também comprei um relógio que acabou no pulso do piloto que me ajudou a conhecer o Zaire. Oferecido. Relógio e gravador foram comprados de uma forma caricata bastante aciganada. Apagaram-se-me alguns pormenores, mas sei que houve dois relógios, dois gravadores e duas lojas envolvidas. Com o primeiro “monhé”, o negócio, muito segundo os cânones, meteu sofá, deu direito a ‘whiskey’ e a longa conversa. Embrulhado e pago o gravador, saí ledo e ligeiro rua abaixo, onde mais lojas se perfilavam. Poucos passos caminhados, fui interpelado por um segundo “monhé”, à porta de mais um bazar. [Que leva aí tão bem escondido? Um gravador. Quanto custou? Deixe-me ver. Ah! Mas eu vendo isso mais barato. Não acredito. Venha ver!... Era verdade. Negócio ajustado. Espere aí que vou devolver este. Que relógio interessante. Quanto custa? Compro]. Voltei à primeira loja, onde o vendedor me prometeu  devolver as pesetas se além do gravador lhe mostrasse a factura. [Há pouco não trazia relógio. Comprou-o lá? Quanto? Mas isso aqui fica-lhe muito mais barato. Espere um pouco que vou buscar a factura, devolvo o relógio e já cá volto]. E assim foi. Por certo nenhum deles deixou de ganhar, inda que menos; e eu, no decurso da barganha dei livre curso à minha provável costela marroquina.

Fomos também  a Dakar. O Senegal tinha alcançado havia pouco a independência. A cidade estava bonita. Entrei numas livrarias. Passeava-me pela rua principal quando fui travado por uma farda desconhecida. Muitas sirenes, muitas motos e automóveis. A velocidade e a cortina de segurança em volta do carro do presidente não impediram que tivesse visto um sisudo Senghor refastelado no luxuoso automóvel. Mais tarde, a caminho de um beberete de circunstância, passei por uma pronunciadíssima ladeira que olhava com soberba para o mar que a seus pés a acariciava de lado. Um postal que me ficou.

S. Vicente. Não recordo nada. Tenho que ir a Lisboa, ao Arquivo-Geral de Marinha, onde deve estar o Diário Náutico, para ter a certeza que a memória que tenho do percurso não me está a atraiçoar.

De Cabo Verde para a Guiné o sol teimou em não se mostrar.  Apanhei-o duas ou três vezes por pequenas nesgas de céu e consegui uma altura meridiana. Introduzi os resultados das observações na navegação estimada que vinha fazendo e fiquei com uma noção da posição dos navios. Não era muito consistente. Mas, considerados todos os parâmetros envolvidos na estima e os dados obtidos com o sextante pareceu-me a posição mais provável. Costa com fundos traiçoeiros, fazer a aterragem à Guiné amedrontava e tirava o sono a muito comandante e punha em brios a vocação, o saber e os dotes dos navegadores. A aproximação à Bóia de Espera fundeada ao largo, frente à foz do Geba, era feita com pinças e requeria muitos dados que nem sempre compareciam. No ‘S. Vicente’, a tarefa de navegar foi entregue ao imediato. Comparadas as posições estimadas pelos dois, distavam umas dezenas de milhas. Olhado com desconfiança pelo comandante que me dirigiu palavras desencorajadoras e pouco abonatórias, vi o meu imediato ser também ele cometido à tarefa da navegação. Passou a haver três posições estimadas. Continuei a pôr na carta a ‘minha posição’.  Os comandantes optaram por um rumo de aproximação intermédio em que a estima por mim feita pouco importava. Houve momentos de muita tensão. O radiofarol de Caió apareceu tarde e a más horas e o sinal materializado no osciloscópio, não fornecia uma direcção precisa. De repente, a sonda passou a dar fundos assustadoramente baixos. Reduziu-se a velocidade e foram-se ajustando os rumos, cada vez mais de acordo ‘comigo’. Recorreu-se ao prumo para cotejar a sonda. Tacteava-se o horizonte com binóculos. Alguém julgou ter visto a Bóia de Espera no horizonte, muito longe da proa. Que não podia ser. A bóia teria que estar mais p’ra Norte. Não ali. Vejam bem. Mas era a bóia. Era a bóia!  A minha estima sempre estivera correcta! O navegador - bom navegador - era eu. Voei da ponte para o camarote. Precisava de desfazer em lágrimas a emoção que feita um nó me tolhia a respiração. Um breve pranto de quase raiva, que ninguém viu, de que ninguém soube. Voltei à ponte, seguro de mim.

Seguiu-se Abidjan. Ali - depois do semi-fracasso que tive com o Ivo Cruz, na 6ª Repartição da Direcção-Geral de Contabilidade Pública (era este o nome?), quando lhe pedi o adiantamento de um mês de subsídio de embarque para o pessoal - reencetei as minhas funções administrativas com a ‘difícil’ tarefa de um saque de divisas no Crédit Lyonnais. Não me saí mal. Sem tarimba para o que fazia, não terei seguido a cartilha tal como era praticada pelos profissionais...  Razão porque o sargento Ganhão, o fiel, um adventício de formação artilheira, mas meu braço direito para a ‘escriba’,  vaticinava com um sorriso de orelha a orelha: “Vamos ser todos presos!”.

Em Janeiro de 1951, catorze anos acabadinhos, passageiro de segunda classe no “Império”, viajando sozinho para Lisboa e não enjeitando uma pretensiosa pose de adulto, um dar-me ares de cujo ridículo só muito depois tive ciência, estive em S. Tomé pela primeira vez. Não digo que me tenha apaixonado pela ilha, não tinha talvez ainda essa capacidade, mas gostei muito dos cheiros, da vegetação, do aconchego do calor húmido, dos panos brancos que me fizeram lembrar as vestes dos cabindas. Na segunda passagem, Setembro de 59, dava-me menos ares e ia mais atento. Gostei com mais força. Mas quem se apaixonou foi uma mocinha muito bonita, morena, pequenina, novinha ainda, com quem dancei num baile p’ra guarda-marinhas, que terá visto em mim e nos ouros do uniforme, a passagem por que quase sempre os ilhéus anseiam para chegar ao mundo. Tratei-a como se de uma irmã se tratasse. Reencontrámo-nos neste Junho de 1960. Mais mulherzinha e mais solta, tentou com palavras traduzir as emoções que antes lhe vira nos olhos. Com suporte da família, não se deixou convencer pelos obstáculos que lhe opus, mas a escala breve tornou tudo simples. De resto, estive ocupado com questões de serviço e a tradicional visita às roças: Água Izé como sempre.

Pouco depois da largada rumo a Luanda, no quarto do meio-dia às quatro, o sol deixou-se tapar, o dia escureceu para um cinzento negro; e uma nuvem baixa, estreita e comprida, quase preta, ocupou todo o horizonte na proa. A atmosfera electrizada adivinhava-se no suave lilás que nos envolvia. O mar continuava sem rugas e o vento não passava de uma aragem. Mas o conjunto prenunciava um adamastor enfurecido mais além. Assim foi. O tubo de aspiração de uma tromba de água a cerca de uma milha na amura de estibordo, surdiu do nada, a perfurar o céu, um extenso funil a alargar-se para cima, bem desenhado, de uma perfeita harmonia de formas. Figura ameaçadora. De existência breve, mas marcando presença sonora com estrondo, que foi também um silvo. Passámos por baixo da nuvem e mal o fizemos o vento cresceu assustador, fazendo uma tal pressão sobre a obra-morta do navio que este, qual veleiro, adornou uns dez graus para bombordo. Seguiu-se uma chuva pesada, densa, de riscos brilhantes obliquados com precisão pelo vento cuja força e direcção se mantiveram quase até Angola. Assim também a inclinação do navio. A chuva, essa, secou antes.

Luanda recebeu-nos bem.  Na Ilha de Nossa Senhora do Cabo, tratada pelo vulgo por Ilha de Luanda, atracámos ao ‘Carvalho Araújo’, agora chamado velho, abandonado ao papel de pontão,  cheio de manchas de ferrugem a ressumarem do casco outrora de um branco luminoso. Não é que não fosse já usado também,  o novo ‘Carvalho Araújo’ que o substituira. Só que pintado de azul-bebé ficava com um ar travesso de menino que lhe tornava aceitável  o apodo de ‘novo’. Regressado o comandante dos cumprimentos em terra, fomos à exploração próxima,  da nossa estação. Reencontrámos os camaradas e famílias com que estivéramos uns meses antes. Poucas novidades. Aos oficiais foram concedidas instalações de pernoita em Luanda. No edifício onde no porto, tinham sède, Capitania, Alfândega e outros serviços. Do lado oposto à tôrre com relógio que dava identidade à construção, eu e o imediato ocupámos o mesmo quarto, que não früimos muito, dado que ao longo dos cinco meses e meio desta primeira comissão em Angola, pouco estacionámos em Luanda. 


Mesmo assim, sendos nós camaradas de curso e amigos, aquele cenário foi palco de muitas conversas, tão longas quanto a pressa do sono de um qüotidiano cansativo permitia e que versavam quer as prosaicas questões de serviço, quer assuntos das nossas histórias próprias ou mesmo os nossos afectos distantes. Conversas de moços, já homens.

Poucos dias após a chegada, substituidas as canseiras da viagem pelas de adaptação dos serviços às novas circunstâncias, recebemos ordem para seguir para Nóqui.

Era 10 de Julho. Metemos piloto em Santo António do Zaire e subimos o rio. Aproximávamo-nos de Boma quando avistámos um navio cinzento com aspecto de mercantão. Não me foi difícil reconhecer o “Kamina”, navio auxiliar da Armada belga que nas manobras do ano anterior por aquelas mesmas paragens, fora o combóio. Muito cingido à margem norte, subia o rio com todo o vagar pelo que nos fomos paulatinamente adiantando. Já o víamos por ré do través de bombordo quando apontou sobre nós o projector e chamou. O sinaleiro de quarto respondeu à interpelação. Surpreendeu-nos a mensagem sucinta que enviou, em inglês e que rezava: “Are you ready to slash?

Em África sopravam ventos de independência. Nos últimos meses de 1959 e no princípio de 1960, os belgas sentaram-se à mesa em Bruxelas com os emergentes líderes políticos congoleses. Foram aprovadas entre outras coisas, a data da independência – 30 de Junho de 1960 – e as linhas mestras de uma constituição política provisória, que espelhava a monarquia constitucional belga e que foi adoptada no seu parlamento em 19 de Maio. O Movimento Nacional Congolês de Patrice Emery Lumumba e uma coalizão dos partidos nacionalistas radicais, ganharam a maioria dos assentos parlamentares nas eleições pré- independência de 22 de Maio de 1960, em conseqüência das quais, Lumumba veio a tornar-se primeiro-ministro e Joseh Kasa Vubu -líder da aliança dos bakongo (ABAKO)- chefe de estado.  Após o grande dia, os propósitos acordados duraram pouco. Em 5 de Julho, as Forças Armadas amotinaram-se. O motim espalhou-se, descontrolado. Amotinaram-se as guarnições da Força Pública e da Polícia. A cidade de Matadi quedou-se  deserta de europeus que amedrontados convergiram para o porto e embarcam nos navios mercantes ali surtos.

Percebia-se agora a razão de terem sido alterados os propósitos iniciais de estarmos mais uns dias em Luanda: fomos engrossar a pequena força naval que se posicionara expectante junto à fronteira Angola (Nóqui) – Congo (Ango-Ango).


A “Pacheco Pereira”, sob o comando de Camões Godinho, tendo a bordo o Comandante Naval de Angola, Isaías Newton da Fonseca, estava fundeada quase a meio do rio, a jusante da Ponta Ikungulu, onde, frente a Nóqui, a água correndo de Norte, faz uma curva muito pronunciada de quase noventa graus e passa a correr para Oeste. (No ano anterior, ali estive na “Nuno Tristão”, mais próxima de terra, com um ferro no fundo e espias para árvores em terra, mantendo-se paralela à forte corrente). Além da “Pacheco Pereira” – F 337 -, o “Carvalho Araújo” – A 524 -, do comando de Rosa Coutinho, atracado à ponte-cais de Nóqui. De braço dado, o “S. Vicente” – P 586 –, de Fonseca Gamito. E nós, o “Sal” – P 582 -, com Alcibíades da Cruz atracados ao “S. Vicente”, nosso irmão de classe. Comentou-se a mensagem do “Kamina” que mostrava não só os propósitos que animavam os súbditos do rei dos Belgas como o tipo de ajuda que esperavam de nós. Mensagem que aliás não tinha tido resposta. 



Com os navios cheios de brancos e Matadi vazia deles, pareceria ter deixado de ser precisa a intervenção das forças belgas que os protegeriam. Não foi assim. O bloqueio feito  pelos grevistas, quer dos caminhos de ferro quer do porto, que impedia o movimento de navios, tinha posto a distante capital, Léopoldville, muitas milhas a montante, em risco de asfixia por falta de abastecimento. Por isso, na noite de 10 de Julho, o comandante das Forças Metropolitanas ordenara a execução da Operação ‘Mangrove’  para retomar o controlo do porto e desarmar os amotinados. Para o efeito foi constituída uma ‘Task Force’ (3 corvetas da classe ‘Algérine’ e 3 vedetas fluviais, com fuzileiros navais, 1 companhia de caçadores e 1 companhia de infantaria) que largou de Banana às 02:15 e subiu o rio rumo ao objectivo. Entretanto, o Estado-Maior Operacional da Base militar de Kitona (Baki), tratou de assegurar cobertura aérea ao desembarque, o que se traduziu numa esquadrilha de 4 Harvard T-6, com ordens para fazer vôos de intimidação sobre os portos de Boma e Matadi quando começasse o ataque, não podendo usar os ‘rockets’ senão em caso de extrema necessidade. Ainda lhes foi ordenado que não voassem baixo. Às 10:15 a ‘Task Force’ estava perto do Caldeirão do Inferno, na curva do Zaire entre Nóqui e Matadi, onde, dizia-se, já alguns navios tinham sido sugados pelos redemoinhos, aliás sempre perigosos naquelas águas. A corveta “Dufour”  - F 903 - e a vedeta “Ourthe”, separaram-se da Força e fizeram-se ao cais de Ango-Ango para aí desembarcar tropas. Fuzileiros  tomariam e controlariam o porto petroleiro;  e a infantaria ia desarmar os polícias congoleses acantonados nas casernas. As duas corvetas e as duas vedetas restantes transportaram o grosso das tropas para Matadi e juntaram-se a uma outra corveta, ali estacionada havia alguns dias.


O dia 11 de Julho amanheceu bonito. Na ponte baixa, o imediato e eu conversávamos quando – eram as mesmas dez e um quarto – ouvimos o estrépito súbito de um metralhar crepitado,  muito próximo. Acto contínuo abaixámo-nos. Mas logo nos levantámos sem poder conter o riso: tínhamos procurado a protecção da sanefa de lona pintada de cinzento que delimitava o espaço. Levantámo-nos... a tempo ainda de ver soldados negros da guarnição de Nóqui, atirarem-se para debaixo das camas, na caserna que ali bem perto do cais se escancarava para nós. A coisa perdeu todo o caricato, quando percebemos que um avião Harvard  dos belgas atacara uma bateria congolesa perto da fronteira. Os ataques repetiram-se por quatro ou cinco vezes, com mais do que um avião. As aeronaves aproximavam-se em vôo rasante vindas da margem congolesa do rio, a um rumo algures entre Sueste e Lés-Sueste, sobrevoando ou muito próximo disso, os quatro navios portugueses e Nóqui, para dispararem sobre a posição congolesa.  Entrámos em postos de combate. Houve entretanto um interregno nos ataques aéreos. Face ao rumo dos aviões agressores, com sobrevôo do espaço português, foi considerado na “Pacheco Pereira” o cenário de uma eventual  ameaça dos congoleses aos navios, se não tomássemos uma atitude dissuasora junto dos belgas; e estes terão sido contactados, mostrando-se-lhes a situação de acto hostil em que nos punham. Chegou mesmo a equacionar-se a necessidade de fogo anti-aéreo nosso, contra aquelas aeronaves, se os ataques se repetissem. O que teria sido difícil porque o inesperado da situação apanhou as peças não completamente prontas. Não teria aliás sido necessário porque os ataques aéreos cessaram e os aviões desapareceram da área. Especulou-se àcerca da inoportunidade do impedimento das peças mas sem consequências.

Tudo parecia ter serenado à nossa volta. Mas mantivemos a prontidão.

De facto, as coisas tinham-se complicado em Matadi. Uma resistência para além do previsto e a perda de um avião ficavam a perder  com os 18 mortos e 32 feridos feitos entre os congoleses.

Já o Sol por ali tinha passado havia algum tempo quando da “Pacheco Pereira” largou o escaler a motor, hasteando uma bandeira portuguesa de quatro panos e levando a bordo um 2º tenente meu camarada de curso. Destino, Matadi. Missão: resgatar residentes de Nóqui e agentes da Pide em serviço de recolha de informações. Bandeira grande para ser bem identificada das margens mas grande demais para o tamanho da embarcação pois pendia sobre a água. Por uma questão de eventual necessidade de defesa levava armamento – as velhas e belíssimas ‘Mauser’ - e munições, nos caixões do escaler. - Vem a talhe de foice dizer que um ano depois, no mesmo rio mas no porto de Boma, Rosa Coutinho também levou armamento nos caixões, mas teve menos sorte: esteve preso muitos meses no Congo, tal como a guarnição do escaler -. Em Matadi a missão foi cabalmente cumprida e os resgatados entregues na fragata.


Às quatro da tarde a situação tornou-se crítica e a infantaria e os fuzileiros desembarcados em Ango-Ango, receberam ordem de retirar e reembarcar na “Dufour”. Esta apercebeu-se de que uma bateria congolesa tinha tomado posição numa colina fronteira - a que ficava muito exposta - e pediu para se afastar do cais. Antes que o tivesse feito atracou-se-lhe a vedeta com o resto da tropa retirada. Mal o transbordo foi feito a vedeta largou. 
Nesse justo momento a bateria congolesa, bem postada na colina, fez fogo sobre a corveta, atingindo-a. Ainda uma segunda salva e já na corveta se picavam amarras. 
De binóculos assestados tudo observávamos e íamos comentando. Sempre debaixo de fogo, correrias desencontradas da marinhagem no convés, ‘gerbes’ à volta do navio mostrando que o tinham enquadrado, uma desatracação aos solavancos (a circunstância não era para menos), ripostando com algum fogo errático e precipitado que atingiu um reservatório da Socopetrol não muito distante do cais do Ango-Ango…  e finalmente o navio ganhou rumo e velocidade e dobrou a Ponta Ikungulu. Levava a bordo quinze feridos, três dos quais graves, resultado do fogo da bateria. 
O reservatório da Socopetrol ardeu durante mais de quinze dias.

Também a situação em Matadi se tornou insustentável. Os navios belgas reembarcaram os militares e aguardaram que escurecesse para retirar. No meio do rio, a bandeira portuguesa no tope do mastro da “Pacheco Pereira” com um poderoso holofote sobre ela, a marcar posição no escuríssimo da noite, que o incêndio não mitigava, dava imponência ao cenário. Bem iluminadas também as nossas bandeiras no cais de Nóqui. Não tínhamos aliviado a prontidão. Na ponte do “Sal”, binóculos em punho, aguardava. 
Subitamente fez-se dia: uma munição iluminante lançada pela bateria congolesa mostrava as corvetas belgas navegando  velozes rio abaixo, deixado já o Caldeirão do Inferno para ré do través de estibordo. Mais algumas iluminantes foram lançadas. 
Depois, fogo da bateria de terra e fogo das corvetas. Muitos minutos de fogo intenso.  As corvetas ripostaram. Não pareceu que tivessem usado as peças de 3 polegadas: apenas as anti-aéreas Bofors de 40mm. E muito mal. Isso foi constatado com facilidade porque as munições tracejantes mostravam as trajectórias. Vi muitos tiros com demasiada elevação e mais ainda a ricochetearem na água para além de alguma dispersão na pontaria horizontal. O fogo de terra cessou antes do primeiro navio chegar ao enfiamento da “Pacheco Pereira”. 
Sobre estas corvetas, sabe-se que foram atingidas, mas não com tanta gravidade como a “Dufour”.

Um completo fiasco a operação ‘Mangrove’.

Dobrada Ikungulu pelos navios em fuga, o silêncio murmurado da água veloz voltou a ser senhor do rio.

Regressado a Luanda, li com sofreguidão algumas cartas que me esperavam. Nas dela, senti menos apêgo. Não a acompanhava. Continuava enlevado; e era enlêvo que punha nas palavras que lhe escrevia.

Sempre muito atarefado com trabalho – podem rir-se os que apoucam o suor dos militares – em Luanda pouco tempo de folga me restava; e a navegar, quase sempre para  Norte, nas reentrâncias da costa em que fundeávamos dificilmente encontraria quem cotejasse com vantagem a imagem que dela tinha.

Disse-me que o pai aceitara um cargo público em Lourenço Marques, para onde ia, com a mãe, passar férias. Sabido o barco – o “Pátria” – congeminei um encontro-surpresa. Luanda e Lobito eram escalas obrigatórias e o “Sal” cumpria uma pequena paragem na Ilha de Luanda. Pedi dois ou três dias de licença e preparei-me para a escoltar até ao Lobito. Consegui ir ao encontro do paquete na embarcação da Capitania que levava o piloto e as autoridades marítima e aduaneira e subi a escada do portaló, pouco antes da bóia de espera.



Surpreendi-a de facto. As surpresas, porém, nem sempre provocam os efeitos imaginados. Nessa mesma tarde, pouco depois da largada para Sul, o namoro estava acabado. Pensei que o desconsôlo fosse maior. No dia seguinte, no campo de aviação do Lobito, que tão bem conhecera uns anos antes, tomava um ‘Dakota’, de regresso à base.

Do navio, depois de ser dada volta aos serviços, nos dias em que  o calor apertava mais, íamos até à praia, a uns trezentos metros, no lado do mar da língua de areia. Ali fizemos algumas amizades singulares.



Em outras ocasiões ia dar uma volta até Luanda. Uma caminhada higiénica que muitas vezes tinha pausa no ‘Cortiço’, um bar de fim de tarde, convidativo, bem no fundo do saco da baía. Com uma música ambiente aveludada e bem escolhida, o ‘gin’ tónico tornava-se ainda mais relaxante. Era um ponto de passagem. Às vezes ia visitar uma paixão platónica dos doze anos que morava ali perto com os pais. Tínhamos uma espécie de imitação de namoro que nunca desabrochou. Conversa de sofá, idas ao cinema, um baile de vez em quando… mas Platão não arredou pé. Ainda somos amigos.

A propósito de dança, fui com alguns camaradas a um baile cheio de chique, o Baile da Cruz Vermelha. E também conservo no acervo fotográfico imagem para mo recordar.




O Capitão do Porto  era um oficial que se distribuía por muitos interesses. Simpatizava comigo e eu, para além disso, admirava-o. Sob pseudónimo, escrevia contos navais nos Anais do Clube Militar Naval que eram a minha primeira leitura quando os recebia. Estava em Luanda com mulher e filha. Com alguns anos menos do que eu, a moça, muito formosa, uma pele mate no sentido de ser levemente trigueira, um olhar limpo e frontal e uma figura elegante sem ser magra, atraía os olhares masculinos. Não me excluí a isso; e vi que de vez em quando os olhos dela também se fixavam em mim. Chegou a haver uns ‘empurrões’ de amigos comuns. Mas tive medo. Temi que se as coisas corressem mal viesse a estragar-se o relacionamento cordial com toda a família.

Foi este camarada que me incumbiu de uma tarefa inusitada. Creio que nunca cheguei a saber o porquê da visita a Luanda de dois ou três hidroaviões franceses vindos da base, no  Senegal. Durante os tempos de amaragem e descolagem, havia que manter uma grande área da baía liberta do movimento de embarcações. Ele lá achou que o perfil que via em mim era o indicado para fazer executar a parte prática da tarefa e requisitou-me ao comandante do “Sal” que anüiu. Pedi-lhe uma embarcação veloz. Arranjou-me uma bomba que hidroplanava num ápice. Pedi-lhe uma credencial. Deu-me uma com estes dizeres: “o Senhor tenente … manda em todos”. Uma delícia. Era um bacano.




Não muito tempo antes ou depois disto, não me lembro, chegaram a Luanda dois aviões da Rèpública da África do Sul, dois Avro Shackleton Mk3, ali usados para reconhecimento no mar, luta anti-submarina e ainda busca e salvamento. Em 2004 ainda havia na África do Sul, um destes ‘Shackleton’ que voava; e era caso único no mundo. Vieram participar em manobras connosco. Não com os patrulhas, mas pelo menos  a “Pacheco Pereira” participou. Embarquei num deles como observador. Uns monstros de tamanho e força. Quatro motores potentíssimos para oito hélices girando em cada motor aos pares e em sentidos contrários. Descolaram às quatro da manhã e acordaram Luanda tal a quantidade de decibéis debitados. Voei aos solavancos, qualquer coisa como oito horas sempre às voltas junto dos navios.  Acabei por me deitar e adormecer à popa, na zona transparente da cauda. Dormi se tanto uma hora e acordei vermelho do escaldão. 




No “Sal”, bem que os motores davam por vezes sinais de cansaço. Já era Dezembro quando um deles se recusou a rodar mais. Como a avaria fosse irreparável com os meios disponíveis em Angola, regressámos a Lisboa.

Penosa viagem. Dispondo de apenas um motor, o “Sal” arrastava-se Atlântico acima a pequeníssima velocidade. Vinte e quatro horas atrás, a “Pêro Escobar” seguia a nossa esteira a título de segurança. 


Assim foi até Las Palmas. A paragem seguinte – as etapas eram tão curtas quanto possível – seria o Funchal. Nem que tivesse sido programado, se o motor ainda vivo continuasse a cumprir, o navio estaria na Madeira por altura da celebrada festa do fim do ano. Mas primeiro era o Natal, um natal espanhol que nos preparávamos para comemorar. Longe das famílias, é certo, mas com o amparo do desamparo de todos os outros. E a coberto da trabuzana que se aproximava.

É então, que já com um temporal desfeito sobre a Grã Canária, “a las cinco de la tarde” do dia 24 de Dezembro de 1960, recebemos ordem  para largar de imediato, rumo a Lisboa. Largámos do Molhe do Generalíssimo pouco antes do crepúsculo.Com vagas desencontradas, altíssimas, vento muito forte, pouca visibilidade e um único motor já cansado, foi assim que encetámos a viagem de volta a casa. Tendo deixado de ser importante a potencial ajuda da “Pêro Escobar”, entretanto ainda a dias de distância, aquela ordem só podia significar que íamos “tirar o pai da fôrca”.

O pequeno e velho patrulha costeiro, coitado (coitados de nós), subia desesperadamente cada montanha de água e chegado à crista derramava-se por ali baixo, a ganhar fôlego, enfiava a proa no abismo salgado, esperava que o mar o reerguesse e repetia cada ciclo. Nem sempre. Algumas vezes o motor parava e ficávamos alguns minutos à deriva (uma eternidade). Era o tempo de substituir uns tubos, tubos de óleo de lubrificação, que teimavam em dar nas vistas.

A primeira vez que o sinistro silêncio aconteceu, mal tínhamos deixado o molhe pela alheta. Não gostei nada. Nada. Ficar no meio de um temporal entregue aos caprichos de Neptuno sem nenhuma defesa, fez-me passar por uma complexa sensação, difícil de descrever.  Casca de noz será a melhor imagem. Tubo reposto, era um alívio ouvir de novo o barulho familiar de toda a maquinaria, ter de novo luz, poder de novo escolher um rumo.

Véspera de Natal. Consoada soaria a eufemismo. A verdade é que só eu e o cozinheiro comemos alguma coisa nessa noite. Porque nenhum de nós enjoou.

A velocidade média do navio nas primeiras vinte e quatro horas foi inferior a cinco nós.

Esta etapa Las Palmas – Lisboa, onde chegámos a 29 de Dezembro, fez história entre os que a viveram.

Tal como no teatro as revistas têm a apoteose como seu último acto, também esta comédia teve um  apogeu final.

Um final de frustração.

Ao apresentar-se no Ministério, logo após a chegada, o Comandante constatou que ninguém se lembrava da ordem de largada dada ao navio dias antes. A pergunta que lhe fizeram foi:

-Que faz você aqui?


Mezena
17 de Fevereiro de 2012

10.2.12

Não é que em narrativas anteriores tenha esgotado Moçambique enquanto tema, não. Mas hoje resolvi vir à minha África primeira. O Império Colonial Português estava quase intacto. O endereço postal de uma carta para Angola incluia ainda os dizeres ‘África Ocidental Portuguesa’ seguidos então pelo nome da colónia. Ir para África era de facto uma aventura, pelo menos aos olhos dos que cá ficavam. Os que iam, queriam vencer e arrostavam qualquer condição, por vezes situações muito precárias de insalubridade, isolamento, clima… que ultrapassavam com força de vontade, a ajuda dos que os tinham precedido e sorte. Foi uma África assim que primeiro conheci. Cá vamos pois.   


Minha Primeira África  

A guerra acabara poucos meses antes, mas a visão das bandeiras aliadas desfraldadas na varanda do Governo Civil já se lhe escondia no mais recôndito da memória. As bichas para o pão e o azeite estavam esquecidas. Mas não esquecera a lúdica tarefa – uns quatro anos atrás -  da colagem de fitas de papel nos vidros das portas e janelas, em que tanto se empenhara a ajudar a mãe. Para evitar estilhaços – diziam - no caso do bombardeio com que a aviação alemã ameaçava. Era o tempo em que nos assomávamos à janela porque passava um automóvel , ou basbaques, parávamos a olhar no alto o aeroplano que nos sobrevoava. 
Agora, já tinha nove anos e andava na 3ª classe. A escola  do Bom João era do outro lado da rua; talvez por isso, muito de raro não chegava em último. No fim da aula,  Dona Conceição escrevia no quadro o nome do melhor aluno do dia; e o seu aparecia muitas vezes. 
Rapazinho vivo, curioso e observador, colhia dos adultos com que conversava amiúde, ensinamentos que assimilava de imediato. 
Foi quando eclodiu a notícia e se tornou alvo de atenção e curiosidade: ‘Então, vais p’rà África?’. Sentia-se importante. Não conhecia ninguém que tivesse ido para África. Sabia, das aventuras que lia n’ ‘O Mosquito’ que ali encontraria leões e elefantes. Pretos não seriam novidade para si pois conhecia o Pedro que vendia cautelas na baixa de Faro. 


Fazia-lhe espécie que a preocupação mais visível em casa fosse a escolha do tecido arrendado para feitura dos mosquiteiros ou que tivesse ido a casa da Antónia tirar medidas para uns pijamas frescos de popelina. 
Como viveu em festa a preparação da viagem custou-lhe ver lágrimas à despedida. Muita gente na estação, muitos acenos e o resfolegar do combóio a pôr fim à tensão visível nos rostos mais queridos.  
Cinco dias na Pensão Tomarense, em Lisboa, foram um suplício: sopa de nabo a todas as refeições desconjuntou-lhe as entranhas. 
E chegou o dia 23 de Fevereiro de 1946 em que o “Lourenço Marques” ” largou, rumo a Luanda, sem escala. Ainda hoje, sabendo embora que não viu a linha do Equador, tem bem presente a sua imagem colhida nos  binóculos preparados que lhe deram;  e ninguém  o convence que o paquete não a transpôs dando um salto.

                    

Mês e meio em Luanda, em casa de um amigo do pai, aguardando decisão sobre a Capitania em que lhe caberia ser escrivão, foi tempo de fazer uma nova amizade – o Chico, menino da casa. Apreendeu  cores, cheiros, sabores, o exotismo das vestes, o falajar esquisito, indecifrável  e risonho… Comeu e gostou logo de mamão, de anona, apreciou as doces laranjas do Loge, aprendeu a dizer matabicho…  
Estranhou que o dinheiro fosse outro, que se chamasse angolar, não gostou de ver a sua conhecida moeda de dez tostões substituída pela nota de um angolar.  E aquele papel roxo que valia dois angolares e meio, em vez da pequenina moeda de vinte e cinco tostões pareceu-lhe puro mau gosto. 
Sem escola, cirandava com o Chico até onde podiam, não se afastando muito de casa. Estava de férias. Que chegaram ao fim no princípio de Maio. 
A bordo do “João Belo”, foram para Moçâmedes, cidade mais pequena, no Deserto do Namibe. Foram viver para o Hotel Moçâmedes onde estiveram quatro meses; depois para uma casa na Capitania; e mais tarde para uma outra, alugada. Sempre novas experiências! 
Matriculou-se na Escola 49, onde o ano lectivo tinha começado no início de Abril. Bom aluno e com quase 5 meses de freqüência da 3ª classe em Faro, não lhe custou distinguir-se. Pouco depois já fazia exame antecipado que o Governador Geral deferira e passava para a 4ª. Muito bem sucedido no exame, seguiu-se a admissão ao liceu com idêntico resultado. Em vez de perder os 6 meses de dessincronização dos anos lectivos, ganhara-os. 
Os professores Canedo e Vieira e os colegas Frota, Bauleth, Nito, Figueira – guarda-redes das futeboladas na areia do recreio – e o David, seu amigo e parceiro de carteira – negro como um tição – serão sempre lembranças suas. 
Como os doces de ginguba (amendoim) e os chupa-chupas do quiosque do Faustino ou a muamba de pichelim (peixe seco). Ou ainda as quitetas (conquilhas) que mariscava mesmo por trás da Capitania! Belos petiscos. Burriés, chegou a ir apanhá-los de passeio ao Saco do Giraúl. 
Uma vez foi a uma caçada às “cabras de leque”, no Pico do Azevedo. A um miúdo tudo parece imenso… Mas o Pico do Azevedo, conspícua elevação em pleno deserto, estava mesmo enxameado de cabras. Foi o que viu, ‘claramente visto’.  Seu pai, ‘Mauser’ em pontaria, acertou na barriga de uma, que andou mais de uma hora a despejar tripas à frente da carrinha e só parou quando atingida numa pata. Africanices… 
Também não esquecerá como se pedia ao mestre para ir à retrete: ‘Sô pessor, posso ir ao deserto?’ A uns metros da escola, transposto um muro… já era de facto deserto. 
Mas peculiar mesmo era o jardim, onde depois do sol posto os caranguejos assentavam arraiais. À noite, eram aos milhares e num pacífico restolho aos nossos pés, passeavam connosco. Difícil era não os pisar.
De manhã muito cedo, o espectáculo era outro. Viam-se magotes de criados, carregando grandes penicos de esmalte, muito altos, a caminho da beira-mar, para despejo dos dejectos da véspera. Tempos outros… 
Na praça, com três ou quatro táxis, o Pinto, defesa do Atlético, dava nas vistas, ao volante de um ‘bruto’ e flamejante automóvel americano, vermelho carmim. 
Enquanto viveu no hotel, conheceu muitos pilotos da DTA, asas ao peito, sempre vestidos de branco (Camisa, calção, sapatos e meias altas) com as caixas dos óculos “Wilsonites” à cinta, óculos que eram a sua fascinação.  O Osvaldo, filho dos donos do hotel e a prima, Anita, foram amigos daquela curta permanência. Como também as filhas do Delegado de Saúde, homem robusto, sem braço esquerdo, que tinha perdido a defender-se do ataque de uma leoa, mais para Sul, para a zona de Porto Alexandre. 
Porto Alexandre, vila piscatória com o cheiro de Olhão, a que a escola o levou a fazer uma visita de estudo e onde numa fábrica (João Patrício Correia) viu o percurso do atum desde o  desembarque à saída em lata. 
Tão poucos meses e que deram para tanta coisa: foi também o tempo em  que as freiras da Missão lhe deram por finda a catequese iniciada na Capela do Alto de Santo António em Faro e recebeu Comunhão Solene e Crisma na Igreja de Santo Adrião.

Havia dois liceus em Angola, ambos chamados nacionais: um em Luanda, outro em Sá da Bandeira. Este, muito mais próximo de casa; e além disso dispondo de um internato que recebia alunos de todo aquele imenso território. Militares e funcionáros públicos pagavam mensalidades menores pelo alojamento dos seus filhos. Fazendeiros e outros profissionais, igualmente espalhados por Angola e com filhos a estudar, também para ali os mandavam. Não havia internato para raparigas, embora o liceu fosse misto. Claro que foi escolhido o Liceu Nacional Diogo Cão, em Sá da Bandeira, cidade que tendo já esse nome era também ainda, o Lubango. 
Tinha chegado o tempo próprio, estava com dez anos recém feitos e foi posto fora de casa. Os pais meteram-no num avião e… ala!



A DTA (Divisão dos Transportes Aéreos), criada em 1938 e renomeada DTA – Linhas Aéreas de Angola, em 1940, começou a voar em Julho de 1940, com aviões idênticos ao da imagem – o bimotor biplano inglês DeHavilland DH89A Dragon Rapide – com familiaridade tratado apenas por “Dragon”. Metia 7 passageiros. Foi numa destas aeronaves que teve o seu baptismo de voo. E que baptismo!... Subir à Serra da Chela – zona de assanhadas trovoadas africanas – entre chuva, vento, raios e coriscos… foi um baptizado de estalo.

Chegou uns dias antes do início das aulas. Com muito boa capacidade de adaptação, rápido se sentiu em casa. Foi conhecer o Senhor Cristão, que seria o seu encarregado de educação. Bàsicamente era um cofre. Assinava vales em que indicava o destino (presumido) do dinheiro e dele recebia angolares. Assim pagou as propinas, os livros, o material de desenho, etc. Com o tempo passou a ter mais necessidades e a fazer umas aldrabices, como comprar duas vezes o Dicionário de Francês – Português ou exagerar no número de frascos de tinta da china. O saldo era convertido em ‘chewing gum’, bolos, um pente ou uma lanterna (era um utensílio na moda) e cigarros. 

Sim, começou a fumar com dez anos. Mas não por muito tempo. Largou o vício logo aos 53. Foi o caso de ter sido interpelado por um colega de internato, o Abel Lara, que andava no 7º ano, e lhe pediu um cigarro. Que não tinha… que não fumava. ‘Como?... Aqui, quem não fuma é menina!’. Quem é que queria ser menina? Foi logo ao ‘Palhotas’, uma espécie de cantineiro cafrealizado com uma lojeca infecta e comprou um pacote de ‘Caricocos’ – 300 cigarros 


enfiados num cilindro de papel pardo. Tabaco forte mas bom. Daí a três ou quatro meses fumava como um homem. 
Este sistema algo endinheirado de viver não durou muito. O pai percebeu e impôs-lhe um programa tipo FMI do milénio passado e cortou-lhe a coleta. 
Nem pai nem mãe alguma vez foram a Sá da Bandeira, não tendo por isso sabido que chãos pisou o primogénito naqueles primeiros quatros anos de liceu. Mas confiavam nele. E esquecendo os riscos que se correm e as pequenas asneiras que se cometem como parte integrante do crescimento, não havia razão para que não confiassem. 
Nas férias grandes que começavam dias antes do Natal, ia para casa. Nas férias intermédias nem sempre foi. Mas nunca se deixou abalar por saüdades. Mantinha correspondência com a mãe e de quando em vez escrevia-se com o pai. Soube preencher bem o tempo com a aprendizagem de ser homem, aproveitando alguma independência e capacidade de decisão que a circunstância lhe conferia.

Sá da Bandeira, no planalto da Huíla, a 1760 metros de altitude, chegando em Junho a atingir temperaturas negativas, facilitava aos estudantes o uso de capa e batina. Muitos o faziam. Isso tinha a ver também com uma academia talhada à imagem de Coimbra e que obtivera por decreto do ‘Dux Veteranorum’ da praxe coimbrã, autorização para uma práctica idêntica. Assim era. Hoje, abencerragem dessa vida estudantil, sobrevive o Reino de Maconge, com a sua gerôntica mas sempre moça aristocracia, que se vai reünindo aqui e ali em sessões cada vez menos avinhadas.

O jovem bonjoanense sentia-se bem. Chegava-lhe alguma atenção nas aulas para levar a carta a Garcia. Tinha todo o tempo para brincar. Explorava a imensa área do internato. Ia comendo goiabas verdes pelo caminho; de parceria com mais dois ou três, ‘era dono’ de um mirangoleiro escondido numa espécie de pequena gruta onde se deleitavam a comer os mirangolos mais maduros, por vezes pagando o tributo ensanguentado cobrado pelos espinhos de protecção da planta; iam aos pássaros de chifuta (fisga) em punho, eram o terror das tchiriqüatas. No regresso às camaratas havia que ter-se cuidado, não lhes fosse aparecer ao caminho a Nina (Dona Virgínia, mulher do Director do Internato, Dr. Carlos Sotto-Mayor Negrão) que os podia vergastar com a sua vara de marmeleiro.

Chegou Dezembro. Saíram as notas finais e o nº 23 da turma ‘C’ do 1º ano, passou com boas médias. 
Enfiou as roupas, livros  e mais pertences, no malão de madeira de mulemba guardado na cave para o ano seguinte e foi com uma pequena mala apanhar o combóio para Moçâmedes. 

Ficou surpreendido ao encontrar o pai na baixa da cidade. Supunha-o na Baía dos Tigres, onde era agora Delegado Marítimo. Afinal já não era. Ia a caminho da Capitania do Lobito, escrivão de novo. Foi um encontro interessantíssimo, ele também surpreendido pela presença do filho, pensando que as aulas ainda duravam. Dois velhos amigos que por acaso se encontram e põem a conversa em dia. 
Foram os dois para o campo de aviação. O pai embarcou primeiro no ‘Dakota’ para o Lobito; o filho pouco depois, no ‘Stinson’, para a Baía dos Tigres. 

Mais um voo atribulado, desta vez por outras razões que não atmosféricas. É que o ‘Stinson’, pequena avioneta para piloto e mais três, levava os irmãos Trindade, dois engenheiros muito volumosos; e o de maior capacidade sentou-se-lhe ao lado no banco mais a ré. 
Vestiam ambos de càqui dos pés à cabeça, onde enterravam capacetes, também eles forrados a càqui. As meias altas pareciam grevas enroladas nas canelas. Espremido contra a fuselagem não conseguiu disfrutar a viagem. 

Pousaram na pista da Baía dos Tigres que era em simultâneo a rua principal. Trezentos metros de cimento sobre a areia, areia de praia, a única que havia na imensa península. 
A Oeste e a pouca distância da pista, uns quantos edifícios, todos da mesma traça: Hospital, Escola, Correios, Delegação Marítima, etc. Não foi difícil saber para onde ir.



E já em casa ouviu com espanto o que a mãe lhe contou. Saído do avião e caminhando pela pista de malinha na mão em direcção a mais uma nova e curta morada, fora visto pelo Henrique, homem quarentão, ali doméstico, que correra para dentro gritando: ‘Senhora, menino chegou, menino chegou!” Ora, não sendo esperado e pisando pela primeira vez o pequeno povoado, como é que Henrique o conhecera? Pelo andar, explicou ele, o andar que era igual ao do patrão. Ficou provada a importância dos genes. 

O enorme deserto que rodeava a Baía dos Tigres fazia do local uma prisão natural. Por isso muitos condenados eram para ali enviados e cumpriam as penas sem estarem enjaulados. Era o caso do Henrique, condenado por homicídio da mulher. 

Com excepção das autoridades e dos funcionários públicos – pouca gente – quase todos viviam da pesca: farinha e óleo de peixe. Sem terra arável e sem água potável o abastecimento chegava por mar. 
O ’28 de Maio’ pequeno navio do Estado, vinha regularmente encher o depósito de água. Trazia frescos  e transportava carga e alguns passageiros. 


Foi nele que com a mãe e a irmã seguiu rumo ao Lobito, ao encontro do pai; e da Consoada, a um par de dias de distância. 

Na ausência do chefe da família escoltava as mulheres da casa. 

Afinal, já tinha onze anos – tinha-os completado dias antes na Baía dos Tigres – o 1º ano do liceu era vencido, já fumava… 
Estava um homem.

Mezena


Escrito para o 'Macua' de Dezembro de 2011
 



9.2.12

Os 'Grelha' e a Praia dos Estudantes

Os ‘Grelha’ e a Praia dos Estudantes

A praia

Esta visita só será possível com ajuda da memória: a Praia dos Estudantes já não existe. Como se fora um ser vivo, nasceu, cresceu e morreu. Conhecemo-nos quando eu nem sequer gatinhava e ela embora pequenina e já em plena meia-idade, ainda exibia, ufana, a sua areia clara e fina, num chamariz. Estava-se nos meados dos anos trinta do século XX.

Os estudantes

No fim de 1945 a construção do novo liceu ia de vento em popa. Tal como os outros moços que nas tardes de Domingo iam à capela de Santo António do Alto para a aula semanal de catequese, também eu viajei veloz nas vagonetas, naquele dia de descanso inertes sobre os carris; que eram ao tempo as mais modernas ajudas ao dispor dos mestres de obras. Mas enquanto a portaria do velho liceu teve corrimãos de mármore, não deixei de contribuir com os fundilhos dos meus calções para os manter brilhantes como espelhos. Muito melhor do que as vagonetas. 

É fácil de imaginar que a praia tenha sido baptizada ‘dos estudantes’ porque eles ali se refrescavam nas tardes cálidas de Primavera ou retemperavam dos calores do latim e da matemática. Pareceria que a construção do Liceu Nacional de Faro no meio do amendoal que lá do Alto se derramava sobre a avenida e transbordava para o Bom João e para o Chalé das Canas, levaria mais estudantes à praia que agora lhes ficava a um quilómetro apenas. Engano. Era muito mais sua pertença, quando o liceu tinha João de Deus por patrono, ocupava o canto da Alameda e a linda porta nobre daquele jardim se abria airosa entre o edifício do ginásio e o corpo principal da velha escola. 

Entretanto, a necessidade de desenvolvimento de Faro através da sua natural ligação ao mar, obrigou a estabilizar a barra entre as ilhas da Culatra e da Barreta e à construção de um cais acostável. Na consolidação da barra e na feitura do cais novo, usou-se um sem número de grandes blocos paralelepipédicos de betão. O local encontrado para estaleiro foi um espaço amplo, antes terreno agrícola, entre a linha férrea e as hortas que bordejavam o caminho para a Praia dos Estudantes e muito próximo dela. Removida grande quantidade de terra, chegou-se a um apropriado chão plano. E bem no sítio onde a areia era mais farta e limpa, improvisou-se uma ponte-cais de madeira para atracação de batelões, usados no transporte daqueles enormes blocos para as obras. 

Por um lado a modificação da paisagem até ali campestre e convidativa ao sossego; e por outro a permanência aturada das embarcações na ponte e a faina de carregamento dos blocos, mataram o apelo ao passeio e ao banho. A praia deixou de ser dos estudantes. A praia deixou de ser praia. Pedaço a pedaço foi-se perdendo e acabou num imenso e triste lodaçal. Apesar disso, aquelas águas ainda serviram durante algum tempo de balneário aos estudantes que iam jogar à bola no ‘campo dos blocos’ - o estaleiro cada vez mais vazio, à medida que as obras avançavam.



O moinho da Francisquinha

A Praia dos Estudantes, até aos últimos anos 50 do século passado, foi procurada pelas gentes das proximidades: Bom João, Chalé das Canas, Pé da Cruz… para além, naturalmente, dos estudantes que a tinham descoberto e adoptado. Sempre foi identificada com o moinho de maré que ali havia - uma espécie de ex-libris - e com os seus proprietários. Mais ainda, depois de viúva, com a sempre presente e carismática Francisquinha, que contava entre as suas visitas habituais, figuras como o poeta Cândido Guerreiro ou o Dr. Agostinho, conhecido professor de matemática no liceu. É possível que o moínho do Bom João, moínho da Praia dos Estudantes, moinho do José Grelha e por fim moinho da Francisquinha, seja anterior ao século XIX. Não sei. Mas sei que no fim daquele século pertencia a Francisco Baptista do Nascimento - ‘Alqueirinho’- que o herdara de seu pai. Por precisar de dinheiro para livrar um filho da tropa, pô-lo à venda. E foi José das Chagas Grelha que em 31 de Outubro de 1898 o comprou por cem mil réis, ‘a moeda corrente no reino’.









Postadas hoje, 19 de Novembro de 2015, por só então terem sido encontradas e digitalizadas, as duas fotografias abaixo, foram tiradas pelo autor em Julho de 1980, durante um vôo feito a convite do seu amigo Hélder Martins.




  

  Ao longo de todo o limite ocidental da caldeira do moinho, ao lado do caminho para o Chalé das Canas, era parte integrante da propriedade, uma larga faixa de terra. Francisquinha, já viúva, concordou com a permuta de uma parcela que permitiu a construção da fábrica do Fritz. Parcela em que vivia com sua permissão, um descriminado misógino, o senhor Coelho. Entre pitas, levantara uma complexa construção de madeira e lata que semelhava a ponte de um submarino, onde algumas vezes comtemplei atento o seu talento para esculpir artefactos de cortiça.

     Virada para o moinho, a casa da horta do Belchior, tinha à frente um adro semicircular, protegido por um murete de pedra, cerca de um metro acima da areia da praia, onde os banhistas deixavam roupas e merendas. Era aqui que nos Santos Populares se armava um mastro e se dançava ao som do ‘fole’. E as moças menos afortunadas queimavam alcachofras na fogueira da noite de S. João, que mergulhavam em bacias com água, na esperança de as ver reflorir como mitológicas Fénix renascidas, o que simbolizaria… amor.  E havia quem visse claramente vista, a cara do amado naquele espelho de água. Espectáculo de ingenüidade e beleza antigas que tive o privilégio de presenciar  numa noite de Lua quase Cheia que se reflectia tanto na ria quanto na água de uma bacia que uma mocinha olhava siderada. Mas tal como a praia também a ingenüidade tinha os dias contados.

José das Chagas Grelha


O avô de José, Francisco das Chagas, nasceu em Tavira e foi moleiro. O pai, Manoel das Chagas Grelha (nesta geração, um tio-avô, almocreve, ganhou a alcunha de ‘Grelha’ que se tornou apelido) também foi moleiro e teve o moinho da Atalaia, ao Chalé das Canas. José das Chagas Grelha nasceu neste moinho em 3 de Dezembro de 1861 e também foi moleiro. Era um homem muito alto, muito forte, de olhos azuis claríssimos e tão tímido quanto alto e forte. Por esta altura, muitos moinhos de maré, desde o moinho dos Caliços – a Oeste de Olhão – até ao moinho do Penteado – pouco a Leste de Quarteira – pertenciam a gente de nome Grelha. José emigrou para a Argentina. Não terá tido sucesso e voltou com os bolsos tão vazios quanto os levara. A sua timidez inibia-o de aproximar-se das raparigas, continuando solteiro com quase quarenta anos. É aqui que a sua história se cruza com a de Francisca Palmira da Encarnação (Francisquinha).                                   

Francisca Palmira da Encarnação Grelha (Francisquinha)


A vida começou-lhe mal. Recém-nascida, foi abandonada à porta de José Pereira Caiador, na Rua das Lavadeiras, em Olhão, em 10 de Março de 1880. Deve ter tido conhecimento, de pelo menos parte da sua origem, pois dizia ter três irmãs: uma verdadeira e duas de criação. Mariana Peixeta ( mãe de José Gaziba) era a verdadeira. Das outras, uma casou com um Canceira, moleiro em Tavira. A outra, Gertrudes da Encarnação Correia, casou com Manoel das Chagas Grelha (Andarino), pescador e também moleiro. Francisquinha foi criada em Estoi, em casa de um padre, que, dizia-se, seria seu pai. Aí aprendeu a ler, escrever e contar, coisa rara no meio e na época. Depois seguiu uma das irmãs para Tavira; e num moinho no Rio Gilão, junto à ponte romana, foi aprender a ser moleira. ‘Gilão’, nome que adoptou para todos os cães que teve. 

Foi uma outra Francisca, ‘Francisca de Estoi’, mais tarde sua concunhada, segunda mulher do depois cunhado Manoel das Chagas Grelha Jr., que propiciou a aproximação entre o tímido José e a Francisquinha. Tornaram-se conversados. O namoro durou bastante tempo. Francisquinha, determinada, inteligente, via para além do imediato. Enquanto trabalhou no moinho do Canceira foi poupando vintém a vintém da sua decerto magra paga, na presunção de que caboucava o futuro. Não se enganava. Soube que estava à venda um moinho no sítio do Bom João, em Faro. Colectou informações favoráveis. Tentou entusiasmar o namorado, que com poucas moedas de lado se mostrava pouco afoito. Mas conseguiu convencê-lo quando o surpreendeu com um pé-de-meia que quase perfazia os cem mil réis necessários. E o moinho foi comprado. 

É crível que nos três anos que se seguiram, José, além de moer, se tenha dedicado a reparar a estrutura e aumentar-lhe as capacidades. De facto, aquando da compra havia apenas “dois aferidos” e depois passou a haver três jogos de mós. 

Entretanto em Tavira, Francisquinha exercitava o seu regime de frugalidade e poupança que manteve ao longo da vida, a par de uma fé inquebrantável. Casaram-se em 5 de Fevereiro de 1902. Em 17 de Novembro de 1902 nasceu José Francisco das Chagas Grelha, que se tornou conhecido como Zé Grelha. Em 30 de Outubro de 1904 nasceu Maria José das Chagas Grelha. Em 20 de Fevereiro de 1927 morreu José das Chagas Grelha. 

Viúva aos 47 anos, Francisquinha continuou moleira. Os filhos foram às suas vidas. Quase sempre teve alguém a ajudá-la, que começando por empregada acabava sendo da família. Assim foi com a Rosita, a Maria José do Vale e a Gracinda. Não tanto com a Julieta. Na última dúzia de anos ficou sozinha, tendo havido um interregno em que contratou uma sessentona para lhe fazer companhia, mas que durou pouco tempo. 

Terá moído a última vez em 1966, já com 86 anos. Morreu a caminho dos 91, em 5 de Agosto de 1970. 

Com pouco mais de metro e meio de altura e à volta de 45 quilos, arrastava sobre o chão do moinho,  lajeado de restos de mós velhas, sacos de trigo com peso maior que o seu. 

Manteve anos a fio a escrita de um diário, em folhas dobradas de papel ‘Almaço’ pautado. Ciosa da sua privacidade e da dos seus, em meados dos anos 60, enterrou, num baixa-mar de águas vivas, algures na lama da ria, grande quantidade de fotografias e outros documentos. Os excertos do seu diário a seguir mostrados, foram subtraídos a tempo pela nora.
  
                             Em 8 de Junho de 1966, ainda mandava picar uma pedra para moer.


                                     Em 22 de Janeiro de 1967, quase com 87 anos, conseguia ir a pé da Praia dos 
                                     Estudantes a Montenegro e voltar – 24 Km -  sem se cansar! 

À porta da cozinha, pendurava todos os anos para sua orientação, a 1ª página do jornal “O Século” do dia 1 de Janeiro que publicava o calendário do ano que começava. 
Electricidade foi benefício que não chegou a ter. Quando pediu a instalação, puseram-lhe obstáculos. Passados anos quiseram fazê-lo. Desinteressara-se. Para iluminar as mós em funcionamento, havia vários ‘papagaios’ pregados às paredes, tendo sempre uma posição mais favorável para o candeeiro. 
Tampouco teve água canalizada. Havia duas enfusas de barro num nicho baixo praticado na parede do corredor, com água que se ia buscar ao poço da cerca, mesmo junto à parede da fábrica do Fritz. 
Já quanto ao gás, fui um dia surpreendido com a novidade. A fornalha a carvão tinha-se despedido e sido substituída por um tosco fogão de duas bocas. Que de resto poucas vezes vi aceso. 
Também deixou de fazer o seu próprio pão, que antes cozia no forno erguido na comporta. Pão enorme, pesado e muito lêvedo, mas que era uma delícia barrado de banha ou com azeite e açúcar. 
Muito generosa tinha sempre o que dar: figos torrados, amêndoas, alfarrobas, estrelas, por vezes figos cheios. Da última vez que vi a Francisquinha, como de costume ofereceu-me de comer. Aceitei. Mas depois de muito matutar, concluiu que os carapaus fritos que pensava ter…’afinal comi-os anteontem’. Não comia portanto havia dois dias. Foi a prova provada da sua frugalidade.  
Contribuía religiosamente para as missões católicas. 
Lia muito. A par de alguma livralhada de cordel, leu Camilo, Júlio Dinis, Castilho e mais portugueses. Até o renomado oposicionista Rocha Martins esteve entre as suas leituras. Assinava as  ‘Folha de Domingo’, ‘A Avezinha’ e ‘Gazeta do Sul’. 
Muito considerada, era ouvida como conselheira no meio em que se movia. 
Acabou madrinha de trinta e três afilhados. 
Ao mesmo tempo cómico e enternecedor era ver a Francisquinha feita mãe, da sua pequenez física, olhando o filho bem lá em cima, a ralhar com o seu ‘Zèzinho’ que tinha feito alguma das suas.

José Francisco das Chagas Grelha


Ao invés de seu pai, o Zé Grelha nada tinha de tímido. Mulherengo, aos dezasseis anos já tinha amante. Casou duas vezes mas não deixou descendência. Criado em liberdade na Praia dos Estudantes, cedo tomou as rédeas da vida. Tornou-se pescador – um fisgador de eleição ao candeio – e caçador. Nos tempos piores chegou a fazer-se contrabandista e segundo se murmurou, espião. Só rumava para onde fosse dono de si próprio. Independente. Algo briguento, tornou-se conhecido nos bailes do Rio Sêco, em disputa pelas moças. Homem de muita força, como quase todos os Grelha, foi portador durante muitos anos do guião da ‘Procissão do Senhor Morto’ que sai da igreja da Misericórdia na Sexta-feira Santa, tarefa que requeria grande reserva de músculo principalmente em noites de vento. Depois de muitos anos sem ver a procissão que, recordo, via devotamente na meninice, voltei a vê-la duas vezes, com alguma desilusão face ao caos organizativo, poupança de rosmaninho no chão, guião envergonhadamente pequeno e apenas uma solitária matraca a anunciar o cortejo. Mas sempre com um Grelha segurando o pendão: primeiro vi o Hélder e depois, nesse último ano, o Valêncio.

Maria José das Chagas Grelha



Tal como o irmão criada na liberdade que o isolamento da Praia dos Estudantes permitia, sempre foi crítica dos excessos do Zèzinho. Nadava bem, num estilo muito seu e mergulhava da comporta do moinho para a caldeira. Era determinada, forte e destemida. Quando moça pequena punha em debandada da praia os moços mais afoitos, mantendo-os em respeito à bofetada. Concluiu um curso elementar de desenho, mas antes fez a instrução primária na escola da menina Teresinha, vizinha e amiga - comumente aceite como irmã - do padre Marcelino Franco, depois bispo do Algarve. Briosa, era boa aluna e detestava ser confundida pelo apelido com uma condiscípula sua prima que além de pouco aplicada aparecia mal ataviada e suja, não raro de monco pendurado do nariz. De tal modo se sentia humilhada que decidiu deixar de ser Grelha. Assim pensou e assim fez. Nunca mais assinou Grelha, nem legou o apelido. Iria pelos 14 anos quando se tornou conversada de um amigo do irmão que de barco lhe aparecia a cantar à janela; e que depois das voltas da vida, foi seu segundo marido e pai dos seus filhos. O primeiro casamento acabou mal. Testemunhou que havia outra mulher, pôs o homem a confêsso e saiu de casa de volta ao moinho. Interpôs acção de divórcio que ganhou. Isto, na aldeia grande que era Faro em 1933, deve ter sido um escândalo e tanto. Radicará aí a pouca vontade que tinha de viver na sua cidade natal, mas onde acabou por morrer em 5 de Maio de 1958. 

                                                             

     Praia dos Estudantes, Moinho, 26 de Dezembro de 1928. Francisquinha e a filha, ainda de luto pelo pai. A caldeira está
     vazia… até ao próximo preia-mar.


Ainda os estudantes

                               Setembro de 1952. Estudantes em férias na Praia… dos Estudantes.

… e sempre o moinho



No Verão, Francisquinha libertava o quarto exterior adjacente ao moinho e cedia-o a pessoas que vinham a banhos. E em Outubro, apanhada a amêndoa, era ver chegarem os ‘montanhêres’ para o banho da pancada. Sempre a mesma gente, clientes do moinho e amigos da moleira. Mais mulheres que homens. Vestidas do pescoço aos tornozelos, nas suas opas de ganga azul, ora de costas ora de frente para o imenso e poderoso jacto projectado pelos rodízios, pés fincados nas lajes escorregadias ou no fundo de areia e lama, corpos inclinados e retesados para lhe resistir, ali se compraziam numa hidromassagem natural por que damos hoje mundos e fundos. Dizia-se que vinham limpar o pó da amêndoa.


    Moinho. Fotografia muito antiga (data indeterminada) – As três pedras.



    Moinho. Desenho ingénuo de António das Chagas Grelha Jr. - ‘Andarino’




    O moinho como o fotografei em 21 de Abril de 1957, da ponte-cais de embarque dos blocos.

Em 1º plano a bàteira do João Henriques ‘Abrôlho’, inquilino e compadre da Francisquinha. A bordo, à vista, as varas das fisgas, com que de noite, o peixe atraído pela luz intensa de um ‘petromax’ era apanhado. O fundo chato da bàteira dava-lhe manobrabilidade para seguir o peixe. 
Em 2º plano, o sàveiro do Zé Grelha.



    Fotografia publicada por Lina Vedes no blogue ‘A defesa de Faro’, de onde a desentranhei.


Entre estas duas últimas imagens decorreram 51 anos.
Já não há moinho. Já não há praia.
Barcos de pesca à vela? Bàteiras a remos p’ró candeio?
Pneus...

Vendido pelos herdeiros de Francisquinha em 1980, o moinho é agora uma estação de depuração de bivalves.
Mas… é de um Grelha!

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