A praia
Esta visita só será possível com ajuda da memória: a Praia dos Estudantes já não existe. Como se fora um ser vivo, nasceu, cresceu e morreu. Conhecemo-nos quando eu nem sequer gatinhava e ela embora pequenina e já em plena meia-idade, ainda exibia, ufana, a sua areia clara e fina, num chamariz. Estava-se nos meados dos anos trinta do século XX.
Os estudantes
No fim de 1945 a construção do novo liceu ia de vento em popa. Tal como os outros moços que nas tardes de Domingo iam à capela de Santo António do Alto para a aula semanal de catequese, também eu viajei veloz nas vagonetas, naquele dia de descanso inertes sobre os carris; que eram ao tempo as mais modernas ajudas ao dispor dos mestres de obras. Mas enquanto a portaria do velho liceu teve corrimãos de mármore, não deixei de contribuir com os fundilhos dos meus calções para os manter brilhantes como espelhos. Muito melhor do que as vagonetas.
É fácil de imaginar que a praia tenha sido baptizada ‘dos estudantes’ porque eles ali se refrescavam nas tardes cálidas de Primavera ou retemperavam dos calores do latim e da matemática. Pareceria que a construção do Liceu Nacional de Faro no meio do amendoal que lá do Alto se derramava sobre a avenida e transbordava para o Bom João e para o Chalé das Canas, levaria mais estudantes à praia que agora lhes ficava a um quilómetro apenas. Engano. Era muito mais sua pertença, quando o liceu tinha João de Deus por patrono, ocupava o canto da Alameda e a linda porta nobre daquele jardim se abria airosa entre o edifício do ginásio e o corpo principal da velha escola.
Entretanto, a necessidade de desenvolvimento de Faro através da sua natural ligação ao mar, obrigou a estabilizar a barra entre as ilhas da Culatra e da Barreta e à construção de um cais acostável. Na consolidação da barra e na feitura do cais novo, usou-se um sem número de grandes blocos paralelepipédicos de betão. O local encontrado para estaleiro foi um espaço amplo, antes terreno agrícola, entre a linha férrea e as hortas que bordejavam o caminho para a Praia dos Estudantes e muito próximo dela. Removida grande quantidade de terra, chegou-se a um apropriado chão plano. E bem no sítio onde a areia era mais farta e limpa, improvisou-se uma ponte-cais de madeira para atracação de batelões, usados no transporte daqueles enormes blocos para as obras.
Por um lado a modificação da paisagem até ali campestre e convidativa ao sossego; e por outro a permanência aturada das embarcações na ponte e a faina de carregamento dos blocos, mataram o apelo ao passeio e ao banho. A praia deixou de ser dos estudantes. A praia deixou de ser praia. Pedaço a pedaço foi-se perdendo e acabou num imenso e triste lodaçal. Apesar disso, aquelas águas ainda serviram durante algum tempo de balneário aos estudantes que iam jogar à bola no ‘campo dos blocos’ - o estaleiro cada vez mais vazio, à medida que as obras avançavam.
O moinho da Francisquinha
A Praia dos Estudantes, até aos últimos anos 50 do século passado,
foi procurada pelas gentes das proximidades: Bom João, Chalé das Canas, Pé da
Cruz… para além, naturalmente, dos estudantes que a tinham descoberto e
adoptado. Sempre foi identificada com o moinho de maré que ali havia - uma
espécie de ex-libris - e com os seus proprietários. Mais ainda, depois de
viúva, com a sempre presente e carismática Francisquinha, que contava entre as
suas visitas habituais, figuras como o poeta Cândido Guerreiro ou o Dr.
Agostinho, conhecido professor de matemática no liceu. É possível que o moínho
do Bom João, moínho da Praia dos Estudantes, moinho do José Grelha e por fim
moinho da Francisquinha, seja anterior ao século XIX. Não sei. Mas sei que no
fim daquele século pertencia a Francisco Baptista do Nascimento - ‘Alqueirinho’-
que o herdara de seu pai. Por precisar de dinheiro para livrar um filho da
tropa, pô-lo à venda. E foi José das Chagas Grelha que em 31 de Outubro de 1898
o comprou por cem mil réis, ‘a moeda corrente no reino’.
Postadas hoje, 19 de Novembro de 2015, por só então terem sido encontradas e digitalizadas, as duas fotografias abaixo, foram tiradas pelo autor em Julho de 1980, durante um vôo feito a convite do seu amigo Hélder Martins.
Ao longo de todo o limite ocidental da caldeira do moinho, ao lado do caminho para o Chalé das Canas, era parte integrante da propriedade, uma larga faixa de terra. Francisquinha, já viúva, concordou com a permuta de uma parcela que permitiu a construção da fábrica do Fritz. Parcela em que vivia com sua permissão, um descriminado misógino, o senhor Coelho. Entre pitas, levantara uma complexa construção de madeira e lata que semelhava a ponte de um submarino, onde algumas vezes comtemplei atento o seu talento para esculpir artefactos de cortiça.
Virada para o moinho,
a casa da horta do Belchior, tinha à frente um adro semicircular, protegido por
um murete de pedra, cerca de um metro acima da areia da praia, onde os
banhistas deixavam roupas e merendas. Era aqui que nos Santos Populares se
armava um mastro e se dançava ao som do ‘fole’. E as moças menos afortunadas queimavam
alcachofras na fogueira da noite de S. João, que mergulhavam em bacias com água,
na esperança de as ver reflorir como mitológicas Fénix renascidas, o que
simbolizaria… amor. E havia quem visse
claramente vista, a cara do amado naquele espelho de água. Espectáculo de
ingenüidade e beleza antigas que tive o privilégio de presenciar numa noite de Lua quase Cheia que se reflectia
tanto na ria quanto na água de uma bacia que uma mocinha olhava siderada. Mas
tal como a praia também a ingenüidade tinha os dias contados.
José das Chagas Grelha
O avô de
José, Francisco das Chagas, nasceu em Tavira e foi moleiro. O pai, Manoel das
Chagas Grelha (nesta geração, um tio-avô, almocreve, ganhou a alcunha de
‘Grelha’ que se tornou apelido) também foi moleiro e teve o moinho da Atalaia,
ao Chalé das Canas. José das Chagas Grelha nasceu neste moinho em 3 de Dezembro
de 1861 e também foi moleiro. Era um homem muito alto, muito forte, de olhos
azuis claríssimos e tão tímido quanto alto e forte. Por esta altura, muitos
moinhos de maré, desde o moinho dos Caliços – a Oeste de Olhão – até ao moinho
do Penteado – pouco a Leste de Quarteira – pertenciam a gente de nome Grelha.
José emigrou para a Argentina. Não terá tido sucesso e voltou com os bolsos tão
vazios quanto os levara. A sua timidez inibia-o de aproximar-se das raparigas,
continuando solteiro com quase quarenta anos. É aqui que a sua história se
cruza com a de Francisca Palmira da Encarnação (Francisquinha).
Francisca Palmira da Encarnação
Grelha (Francisquinha)
A vida
começou-lhe mal. Recém-nascida, foi abandonada à porta de José Pereira Caiador,
na Rua das Lavadeiras, em Olhão, em 10 de Março de 1880. Deve ter tido
conhecimento, de pelo menos parte da sua origem, pois dizia ter três irmãs: uma
verdadeira e duas de criação. Mariana Peixeta ( mãe de José Gaziba) era a
verdadeira. Das outras, uma casou com um Canceira, moleiro em Tavira. A outra,
Gertrudes da Encarnação Correia, casou com Manoel das Chagas Grelha (Andarino),
pescador e também moleiro. Francisquinha foi criada em Estoi, em casa de um
padre, que, dizia-se, seria seu pai. Aí aprendeu a ler, escrever e contar,
coisa rara no meio e na época. Depois seguiu uma das irmãs para Tavira; e num
moinho no Rio Gilão, junto à ponte romana, foi aprender a ser moleira. ‘Gilão’,
nome que adoptou para todos os cães que teve.
Foi uma outra Francisca, ‘Francisca de Estoi’, mais tarde sua concunhada, segunda mulher do depois cunhado Manoel das Chagas Grelha Jr., que propiciou a aproximação entre o tímido José e a Francisquinha. Tornaram-se conversados. O namoro durou bastante tempo. Francisquinha, determinada, inteligente, via para além do imediato. Enquanto trabalhou no moinho do Canceira foi poupando vintém a vintém da sua decerto magra paga, na presunção de que caboucava o futuro. Não se enganava. Soube que estava à venda um moinho no sítio do Bom João, em Faro. Colectou informações favoráveis. Tentou entusiasmar o namorado, que com poucas moedas de lado se mostrava pouco afoito. Mas conseguiu convencê-lo quando o surpreendeu com um pé-de-meia que quase perfazia os cem mil réis necessários. E o moinho foi comprado.
É crível que nos três anos que se seguiram, José, além de moer, se tenha dedicado a reparar a estrutura e aumentar-lhe as capacidades. De facto, aquando da compra havia apenas “dois aferidos” e depois passou a haver três jogos de mós.
Entretanto em Tavira, Francisquinha exercitava o seu regime de frugalidade e poupança que manteve ao longo da vida, a par de uma fé inquebrantável. Casaram-se em 5 de Fevereiro de 1902. Em 17 de Novembro de 1902 nasceu José Francisco das Chagas Grelha, que se tornou conhecido como Zé Grelha. Em 30 de Outubro de 1904 nasceu Maria José das Chagas Grelha. Em 20 de Fevereiro de 1927 morreu José das Chagas Grelha.
Viúva aos 47 anos, Francisquinha continuou moleira. Os filhos foram às suas vidas. Quase sempre teve alguém a ajudá-la, que começando por empregada acabava sendo da família. Assim foi com a Rosita, a Maria José do Vale e a Gracinda. Não tanto com a Julieta. Na última dúzia de anos ficou sozinha, tendo havido um interregno em que contratou uma sessentona para lhe fazer companhia, mas que durou pouco tempo.
Terá moído a última vez em 1966, já com 86 anos. Morreu a caminho dos 91, em 5 de Agosto de 1970.
Com pouco mais de metro e meio de altura e à volta de 45 quilos, arrastava sobre o chão do moinho, lajeado de restos de mós velhas, sacos de trigo com peso maior que o seu.
Manteve anos a fio a escrita de um diário, em folhas dobradas de papel ‘Almaço’ pautado. Ciosa da sua privacidade e da dos seus, em meados dos anos 60, enterrou, num baixa-mar de águas vivas, algures na lama da ria, grande quantidade de fotografias e outros documentos. Os excertos do seu diário a seguir mostrados, foram subtraídos a tempo pela nora.
Foi uma outra Francisca, ‘Francisca de Estoi’, mais tarde sua concunhada, segunda mulher do depois cunhado Manoel das Chagas Grelha Jr., que propiciou a aproximação entre o tímido José e a Francisquinha. Tornaram-se conversados. O namoro durou bastante tempo. Francisquinha, determinada, inteligente, via para além do imediato. Enquanto trabalhou no moinho do Canceira foi poupando vintém a vintém da sua decerto magra paga, na presunção de que caboucava o futuro. Não se enganava. Soube que estava à venda um moinho no sítio do Bom João, em Faro. Colectou informações favoráveis. Tentou entusiasmar o namorado, que com poucas moedas de lado se mostrava pouco afoito. Mas conseguiu convencê-lo quando o surpreendeu com um pé-de-meia que quase perfazia os cem mil réis necessários. E o moinho foi comprado.
É crível que nos três anos que se seguiram, José, além de moer, se tenha dedicado a reparar a estrutura e aumentar-lhe as capacidades. De facto, aquando da compra havia apenas “dois aferidos” e depois passou a haver três jogos de mós.
Entretanto em Tavira, Francisquinha exercitava o seu regime de frugalidade e poupança que manteve ao longo da vida, a par de uma fé inquebrantável. Casaram-se em 5 de Fevereiro de 1902. Em 17 de Novembro de 1902 nasceu José Francisco das Chagas Grelha, que se tornou conhecido como Zé Grelha. Em 30 de Outubro de 1904 nasceu Maria José das Chagas Grelha. Em 20 de Fevereiro de 1927 morreu José das Chagas Grelha.
Viúva aos 47 anos, Francisquinha continuou moleira. Os filhos foram às suas vidas. Quase sempre teve alguém a ajudá-la, que começando por empregada acabava sendo da família. Assim foi com a Rosita, a Maria José do Vale e a Gracinda. Não tanto com a Julieta. Na última dúzia de anos ficou sozinha, tendo havido um interregno em que contratou uma sessentona para lhe fazer companhia, mas que durou pouco tempo.
Terá moído a última vez em 1966, já com 86 anos. Morreu a caminho dos 91, em 5 de Agosto de 1970.
Com pouco mais de metro e meio de altura e à volta de 45 quilos, arrastava sobre o chão do moinho, lajeado de restos de mós velhas, sacos de trigo com peso maior que o seu.
Manteve anos a fio a escrita de um diário, em folhas dobradas de papel ‘Almaço’ pautado. Ciosa da sua privacidade e da dos seus, em meados dos anos 60, enterrou, num baixa-mar de águas vivas, algures na lama da ria, grande quantidade de fotografias e outros documentos. Os excertos do seu diário a seguir mostrados, foram subtraídos a tempo pela nora.
Em 8 de Junho de 1966, ainda mandava picar uma pedra
para moer.
Em 22 de Janeiro de 1967, quase com 87 anos,
conseguia ir a pé da Praia dos
Estudantes a Montenegro e voltar – 24 Km - sem se cansar!
Estudantes a Montenegro e voltar – 24 Km - sem se cansar!
À porta da
cozinha, pendurava todos os anos para sua orientação, a 1ª página do jornal “O
Século” do dia 1 de Janeiro que publicava o calendário do ano que começava.
Electricidade foi benefício que não chegou a ter. Quando pediu a instalação, puseram-lhe obstáculos. Passados anos quiseram fazê-lo. Desinteressara-se. Para iluminar as mós em funcionamento, havia vários ‘papagaios’ pregados às paredes, tendo sempre uma posição mais favorável para o candeeiro.
Tampouco teve água canalizada. Havia duas enfusas de barro num nicho baixo praticado na parede do corredor, com água que se ia buscar ao poço da cerca, mesmo junto à parede da fábrica do Fritz.
Já quanto ao gás, fui um dia surpreendido com a novidade. A fornalha a carvão tinha-se despedido e sido substituída por um tosco fogão de duas bocas. Que de resto poucas vezes vi aceso.
Também deixou de fazer o seu próprio pão, que antes cozia no forno erguido na comporta. Pão enorme, pesado e muito lêvedo, mas que era uma delícia barrado de banha ou com azeite e açúcar.
Muito generosa tinha sempre o que dar: figos torrados, amêndoas, alfarrobas, estrelas, por vezes figos cheios. Da última vez que vi a Francisquinha, como de costume ofereceu-me de comer. Aceitei. Mas depois de muito matutar, concluiu que os carapaus fritos que pensava ter…’afinal comi-os anteontem’. Não comia portanto havia dois dias. Foi a prova provada da sua frugalidade.
Contribuía religiosamente para as missões católicas.
Lia muito. A par de alguma livralhada de cordel, leu Camilo, Júlio Dinis, Castilho e mais portugueses. Até o renomado oposicionista Rocha Martins esteve entre as suas leituras. Assinava as ‘Folha de Domingo’, ‘A Avezinha’ e ‘Gazeta do Sul’.
Muito considerada, era ouvida como conselheira no meio em que se movia.
Acabou madrinha de trinta e três afilhados.
Ao mesmo tempo cómico e enternecedor era ver a Francisquinha feita mãe, da sua pequenez física, olhando o filho bem lá em cima, a ralhar com o seu ‘Zèzinho’ que tinha feito alguma das suas.
Electricidade foi benefício que não chegou a ter. Quando pediu a instalação, puseram-lhe obstáculos. Passados anos quiseram fazê-lo. Desinteressara-se. Para iluminar as mós em funcionamento, havia vários ‘papagaios’ pregados às paredes, tendo sempre uma posição mais favorável para o candeeiro.
Tampouco teve água canalizada. Havia duas enfusas de barro num nicho baixo praticado na parede do corredor, com água que se ia buscar ao poço da cerca, mesmo junto à parede da fábrica do Fritz.
Já quanto ao gás, fui um dia surpreendido com a novidade. A fornalha a carvão tinha-se despedido e sido substituída por um tosco fogão de duas bocas. Que de resto poucas vezes vi aceso.
Também deixou de fazer o seu próprio pão, que antes cozia no forno erguido na comporta. Pão enorme, pesado e muito lêvedo, mas que era uma delícia barrado de banha ou com azeite e açúcar.
Muito generosa tinha sempre o que dar: figos torrados, amêndoas, alfarrobas, estrelas, por vezes figos cheios. Da última vez que vi a Francisquinha, como de costume ofereceu-me de comer. Aceitei. Mas depois de muito matutar, concluiu que os carapaus fritos que pensava ter…’afinal comi-os anteontem’. Não comia portanto havia dois dias. Foi a prova provada da sua frugalidade.
Contribuía religiosamente para as missões católicas.
Lia muito. A par de alguma livralhada de cordel, leu Camilo, Júlio Dinis, Castilho e mais portugueses. Até o renomado oposicionista Rocha Martins esteve entre as suas leituras. Assinava as ‘Folha de Domingo’, ‘A Avezinha’ e ‘Gazeta do Sul’.
Muito considerada, era ouvida como conselheira no meio em que se movia.
Acabou madrinha de trinta e três afilhados.
Ao mesmo tempo cómico e enternecedor era ver a Francisquinha feita mãe, da sua pequenez física, olhando o filho bem lá em cima, a ralhar com o seu ‘Zèzinho’ que tinha feito alguma das suas.
José Francisco das Chagas Grelha
Ao invés de
seu pai, o Zé Grelha nada tinha de tímido. Mulherengo, aos dezasseis anos já
tinha amante. Casou duas vezes mas não deixou descendência. Criado em liberdade
na Praia dos Estudantes, cedo tomou as rédeas da vida. Tornou-se pescador – um
fisgador de eleição ao candeio – e caçador. Nos tempos piores chegou a fazer-se
contrabandista e segundo se murmurou, espião. Só rumava para onde fosse dono de
si próprio. Independente. Algo briguento, tornou-se conhecido nos bailes do Rio
Sêco, em disputa pelas moças. Homem de muita força, como quase todos os Grelha,
foi portador durante muitos anos do guião da ‘Procissão do Senhor Morto’ que
sai da igreja da Misericórdia na Sexta-feira Santa, tarefa que requeria grande
reserva de músculo principalmente em noites de vento. Depois de muitos anos sem
ver a procissão que, recordo, via devotamente na meninice, voltei a vê-la duas
vezes, com alguma desilusão face ao caos organizativo, poupança de rosmaninho
no chão, guião envergonhadamente pequeno e apenas uma solitária matraca a
anunciar o cortejo. Mas sempre com um Grelha segurando o pendão: primeiro vi o
Hélder e depois, nesse último ano, o Valêncio.
Maria José das Chagas Grelha
Tal como o
irmão criada na liberdade que o isolamento da Praia dos Estudantes permitia,
sempre foi crítica dos excessos do Zèzinho. Nadava bem, num estilo muito seu e mergulhava
da comporta do moinho para a caldeira. Era determinada, forte e destemida. Quando
moça pequena punha em debandada da praia os moços mais afoitos, mantendo-os em
respeito à bofetada. Concluiu um curso elementar de desenho, mas antes fez a
instrução primária na escola da menina Teresinha, vizinha e amiga - comumente aceite como irmã - do padre Marcelino
Franco, depois bispo do Algarve. Briosa, era boa aluna e detestava ser
confundida pelo apelido com uma condiscípula sua prima que além de pouco
aplicada aparecia mal ataviada e suja, não raro de monco pendurado do nariz. De
tal modo se sentia humilhada que decidiu deixar de ser Grelha. Assim pensou e
assim fez. Nunca mais assinou Grelha, nem legou o apelido. Iria pelos 14 anos
quando se tornou conversada de um amigo do irmão que de barco lhe aparecia a
cantar à janela; e que depois das voltas da vida, foi seu segundo marido e pai
dos seus filhos. O primeiro casamento acabou mal. Testemunhou que havia outra
mulher, pôs o homem a confêsso e saiu de casa de volta ao moinho. Interpôs
acção de divórcio que ganhou. Isto, na aldeia grande que era Faro em 1933,
deve ter sido um escândalo e tanto. Radicará aí a pouca vontade que tinha de
viver na sua cidade natal, mas onde acabou por morrer em 5 de Maio de 1958.
Praia dos Estudantes, Moinho, 26 de Dezembro de 1928.
Francisquinha e a filha, ainda de luto pelo pai. A caldeira está
vazia… até ao próximo preia-mar.
vazia… até ao próximo preia-mar.
Ainda os estudantes
Setembro de 1952. Estudantes em férias na Praia… dos
Estudantes.
… e sempre o moinho
No Verão, Francisquinha
libertava o quarto exterior adjacente ao moinho e cedia-o a pessoas que vinham
a banhos. E em Outubro, apanhada a amêndoa, era ver chegarem os ‘montanhêres’
para o banho da pancada. Sempre a mesma gente, clientes do moinho e amigos da
moleira. Mais mulheres que homens. Vestidas do pescoço aos tornozelos, nas suas
opas de ganga azul, ora de costas ora de frente para o imenso e poderoso
jacto projectado pelos rodízios, pés fincados nas lajes escorregadias ou no fundo de areia e lama, corpos inclinados e retesados para lhe resistir, ali se compraziam numa hidromassagem
natural por que damos hoje mundos e fundos. Dizia-se que vinham limpar o pó da
amêndoa.
Moinho. Fotografia muito antiga (data indeterminada) –
As três pedras.
Em 1º plano a bàteira do João Henriques ‘Abrôlho’, inquilino e compadre da Francisquinha. A bordo, à vista, as varas das fisgas, com que de noite, o peixe atraído pela luz intensa de um ‘petromax’ era apanhado. O fundo chato da bàteira dava-lhe manobrabilidade para seguir o peixe.
Em 2º plano, o sàveiro do Zé Grelha.
Fotografia publicada por Lina Vedes no blogue ‘A defesa de Faro’, de onde a desentranhei.
Entre estas duas últimas imagens decorreram 51 anos.
Já não há moinho. Já não há praia.
Barcos de pesca à vela? Bàteiras a remos p’ró candeio?
Pneus...
Vendido pelos herdeiros de Francisquinha em 1980, o
moinho é agora uma estação de depuração de bivalves.
Mas… é de um Grelha!
Mezena
Bom dia
ResponderEliminarEstando o Clube de Futebol "os Bonjoanenses" Faro, a promover um ciclo de tertúlias sobre o bairro do Bom João, gostaria de convidá-lo para participar na próxima que se irá realizar no dia 7 de Abril, precisamente sobre a praia dos estudantes.
José Costa
Fantástico post sobre o Moinho do Grelha. Tendo em conta que o meu marido é descendente destes Grelhas fiquei curiosa sobre o autor do texto.
ResponderEliminarAna V., Assim sendo, é casada com um primo meu. Francisquinha Grelha, minha avó, tratava-me por Julinho; e teria ficado muito descontente se soubesse que eu escrevera sobre ela. Agradecido pelo 'fantástico' que atribuiu ao escrito.
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarOlá,
ResponderEliminarJá várias vezes tenho vindo a este blog, ver as fotos e relembrar a infância e hoje pensei em escrever alguma coisa.
Vivo em Lisboa desde os 3 anos mas sinto-me muito ligada ao "Moinhos", como chamamos a esse lugar onde vivi bons momentos da minha infância, pois o meu avô paterno "João Grelha" tb conhecido pelo "tio Jalica" vivia aí (onde ainda hoje mantemos casa) e era pescador como todos os outros. Além disto os meus avós maternos eram arrendatários da horta que vai dos Moinhos à linha do caminho de ferro, que para grande pena minha continua abandonada.
Grandes e inesquecíveis férias que eram esperadas com grande alegria e impaciência, pelo que representava ir da cidade e poder correr por entre o milho, ir à água aos moinhos montanda no carrinho da bilha que a minha avó transportava e tomar os grandes banhos nos Moinhos ou no tanque da minha avó.
Momentos que jamais esquecerei por terem sido tão vividos e alegremente brincados.
Não são infâncias perdidas porque as relembramos muito, mas sempre com muita nostalgia por ver que nada se faz para reabilitar essa zona e que de ano para ano, quando regressamos tudo está na mesma.
Assim, fico na expetativa se saber mais...
Pois é interessante sendo eu casado com a Madalena Grelha, nascida no Chalé das Canas , filha do José Inácio Grelha e neta do Inãcio dos Santos das Chagas Grelha , um dos dezassete ou dezoito irmãos,que era casado com a avó Amélia. E mais só perguntando á minha mulher. Abraço
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