5.1.18

A porta três


De Lisboa a Madrid

Empijamado em flanela grossa, deitado entre lençóis e abafado sob o pêso de uma manta, foi assim que tentei contrariar a febre e os arrepios. Não me admiraria que o paludismo, aquele violento primeiro ataque de paludismo que tive em Sá da Bandeira e se repetiu algumas vezes, estivesse ressuscitando e a dar um arzinho da sua graça. Não encontrando os amargos comprimidos de quinino, nem as pastilhas amarelas de ateberina que tomava quando criança, consegui, já não sei por que portas, arranjar a resoquina com que me auto-mediquei.

A chatice – grande chatice – era ter já o bilhete para o combóio que nessa noite – 16 de Maio de 1966 – me levaria a Madrid. Nomeado ao abrigo da OTAN para tirar um curso de alguns meses, sobre a artilharia e a direcção de tiro que equipariam as fragatas ‘Pereira da Silva’, devia estar em Torrejon no dia seguinte para tomar lugar num avião fretado que levaria à América dezenas de militares de diversas origens e com destinos vários. De mala feita e na posse de um maço de guias de marcha recebidas no MAAG (Military Assistance Advisory Group) que me definiam dia a dia, o tempo americano, sentia-me entalado entre cuidar do corpo e cumprir.

Ganhou o dever.

Lá me convenci de que estava a melhorar, ficar bem seria uma questão de tempo, e decidi-me. Com passos mais vagarosos do que os meus, desci o último terço da Frederico Ulrich, caminhei até Cacilhas e tomei um barco para Lisboa. Táxi, e segui para Santa Apolónia.

A temperatura era amena, mas no imenso espaço da estação, por todo o lado senti correntes de ar de mau aügúrio. Assim que pude meti-me no combóio.

Aninhei-me no banco do compartimento e partimos era quase meia-noite. Não preguei ôlho, agitado. Comprimidos anti-qualquer-coisa foram quatro; e ainda um supositório. Não tinha chegado o dia, quando fui acordado, sem grande delicadeza, por um funcionário da fronteira que queria ver-me o passaporte e carimbar a entrada em Espanha.

A previsão de melhoria falhou. A febre tinha aumentado e sentia-me mais frágil.


Chegado o combóio eram dez horas, tinha à espera um tipo do Consulado, cabo amanuense – o adido naval estava no mar. Meteu-me num automóvel e partimos em busca de hotel. Ao fim de duas horas de insucessos – com as festas de Santo Isidro em pleno, estava tudo cheio – lá consegui um quarto numa pensão algo manhosa na Gran-Via. O quarto era amplo e tinha uma cama metálica de cabeceira linda. Coisa antiga. Nunca tinha visto, nem voltei a ver, parecido sequer. Dois grandes círculos marcando as posições de um casal e por detrás, ao meio, um terceiro anel maior, fazendo o alçado, os três decorados com aplicações lavradas em relêvo, no mesmo metal brilhante. Gostei tanto que me fotografei ali deitado.


A febre não cedia. Tapei-me, preparado para aguardar encafuado a hora do avião. Mas, ao fim de pouco tempo, de repente, passou-me uma coisa pela cabeça, e dei um salto da cama, revoltado com a situação. De Espanha, conhecia mal, Ayamonte, onde tinha ido em tempos acompanhar a mulher do Comandante Quartin; e Vigo e Ferrol , aquando da viagem na ´Sagres’. Agora, na capital do país, decerto com mais interessantes ofertas, mal via por uma janela, a claridade do dia. Estava em Roma e não via o Papa. Molhei a cara p’ra fingir que me tinha  lavado, agasalhei-me e saí.

Em plena Gran-Via , não me foi difícil encontrar uma farmácia. Diálogo breve, usando o espanhol de trazer por casa que sabia e consegui uma embalagem de Optalidon, a única coisa disponível que me pareceu servir a situação. Nem li a bula. ‘Mamei’ quatro drageias, bebi bastante água e fui-me à vida, quero dizer, acrescentei-me à enorme quantidade de gente a circular nos passeios e fiz-me turista. E não é que o tratamento de choque resultou?! Num par de horas estava mais solto e enérgico.

Caminhei, caminhei, cirandei pela baixa da cidade, não andei menos de dez quilómetros, mas foi de táxi que voltei à pensão. Jantei e decidi ir a um cinema. Vinte escudos, caro, comparado com Lisboa. Não aguentei mais do que um quarto de hora. Conhecia os actores, conhecia-lhes as vozes… ouvi-los em espanhol com o diferente timbre de quem os dobrava, foi demais.

Voltei à pensão, ainda descansei um pouco e após um banho paguei a conta e segui para Torrejon. Dei com um cabo pouco esclarecido que me fez percorrer mais uma lonjura até encontrar alguém que me orientasse. Fiquei a saber que devia viajar fardado. Embora já desligado da pensão, voltei ali para pedir que me passassem a ferro a farda branca. Faltavam os sapatos de camurça. Já velhos e cambados, não os tinha trazido e pensava comprar um novo par numa cantina naval na América, onde os sabia bons e mais baratos. E quem é que encontra, em Madrid, uns sapatos lisos de camurça branca? Não eu. Depois de entrar em muita sapataria e ver o tempo a escoar-se, aceitei comprar sapatos de pelica. Embora feiosos e mal acabados, disfarçavam bem. Saí finalmente da pensão, agora de branco vestido.


De Torrejon a McGuire

Era meia-noite quando me sentei num mal-amanhado banco de pau, na sala de espera do aeroporto. Quatro da manhã, era a hora prevista para largada do avião, um Boeing-707. Voando para Oeste durante sete horas e meia, serão cinco e meia à chegada. Mais do que o tempo de vôo, as quatro horas que me esperavam naquele inóspito assento, metiam-me as costas p’ra dentro. Cheguei a deitar-me, mas nem assim descansei. Desafiando a minha paciência, o tempo usou de todos os vagares para chegar à hora de embarque.

O avião à cunha e toda a gente de pé, a enfiar a bagagem por cima das cabeças ou circulando em busca de mantas e almofadas, tornava ainda mais reduzida a quantidade de ar respirável. Pobre de quem sofresse de claustrofobia. A coisa complicou-se com um apagão de energia, por sorte de breves minutos. Descolámos, por fim. Sempre tive dificuldade em dormir em viagem. Pensei que de tão estafado, dormiria afinal. Engano. À beira de o conseguir, apareceu-me a hospedeira a perguntar se queria matabicho. Apetite nunca me faltou; e a comida de avião, com as suas peculiares ementas sempre me foi agradável. Sei que há quem deteste… paciência! Deve ter sido a digestão que me levou ao sono, mas, por não mais de uma hora. Acordei estremunhado, mal-disposto, enxovalhado, sujo, incomodado com a barba que parecia só agora ter crescido, a bôca amarga de tanto cigarro fumado, enfim, um frangalho.

O nosso destino era a base aérea de McGuire em New Jersey, onde não pudemos pousar por causa do forte nevoeiro que lá caíra. Aterrámos no John F. Kennedy, em Long Island, pertinho de Nova Iorque. Estivemos de castigo mais duas longas horas a respirar o ar cada vez mais pobre do avião. Aliviados, recebemos ordem de soltura e voámos para McGuire, onde pousámos eram dez horas.


Em McGuire

O alívio foi breve.

Depois de um médico ter ido a bordo, examinar os certificados de vacinação e confirmar que todos tínhamos cumprido as regras, pisámos, afinal, terra firme. Uma praça de saias da Força Aérea, recebeu-nos com considerações àcerca do que fazer de seguida. Pouco percebi da sua fanhosa pronúncia e desliguei. Desenrasquei-me.

Mas a minha curiosa atracção por peripécias, continuava a manifestar-se. A etapa seguinte foi a verificação das bagagens. Um tipo de nariz empinado e aspecto idiota, fez-me abrir a mala. Peça a peça, levantei quanto ali tinha. Depois de tudo ter visto, perguntou-me de onde vinha.

- De Portugal?... Então traz maçãs!

Que não trazia, como êle tinha visto, nem sabia que fôssem tão famosas as maçãs portuguesas. Fez então um gesto para que fechasse a mala, mas arrependeu-se logo. Mandou abrir de novo:

- Veio de Portugal? E não traz vinho do Porto? Deixe-me lá ver.

Voltei a mostrar-lhe cada escaninho da mala. Meio convencido, deixou-me passar. Ou gozara comigo – praxe a mancebo – ou não tinha apenas aspecto de idiota… era-o em pleno.

Fora do terminal do aeroporto, numa base aérea do tamanho de Almada, ainda sem conhecimento do desenho comum das unidades militares americanas e sem apoio à vista, vi-me só, em busca do passo seguinte, que surgiu, no clássico cilindro rotativo vermelho e azul que identifica as barbearias. Um negro, grande e gordo, apertou-me ao pescoço a capa protectora e com uma máquina eléctrica, desatou a cortar cabêlo como quem apara rente, a relva de um jardim. Um autêntico e rigoroso corte à magala. Olhei-me ao espelho e senti-me quase nu. Quando pedi que me cortasse a barba, mais uma surpresa: não podia, porque não tinha pincel. Singular barbeiro, sem pincel de barbear… Também não tinha escôva, mas com grande ênfase de gestos, empunhou um barulhento aspirador que engoliu os restos da tosquia. Não todos, que alguns sujaram ainda mais a farda, branca apenas por alcunha.

Amarrotado e sujo, de roupa como de corpo, que clamava por um banho, prossegui caminho, em busca de poiso, onde pudesse por fim descansar.

Antes, porém, quis reportar a minha chegada. Obrigado a viajar fardado, entendi dever fazê-lo junto de uma entidade militar. Errado. Não encontrei quem. Mas a senhora civil que vi por detrás de um balcão, a quem entreguei um exemplar da tão policopiada guia de marcha, deu-me de imediato um papel que ordenava a minha ida para Newport, no dia 20. Com mais uma guia, o sujeito ao lado passou-me um bilhete de avião para Providence para o mesmo dia. Aquela guia tinha efeitos mágicos.

Já mais instruído, tomei um autocarro militar da base, em busca de uma messe. Não tardei a encontrá-la: o Bachelor Officer Quarters (BOQ) – Instalações para Oficiais Solteiros. Tive um quarto que mais parecia a suite de um bom hotel. Exaustivo na minúcia com que dava notícias para casa, chegando decerto à chateza, dei-me à pachôrra de desenhar o esquema da minha opulência.


Abluções feitas, depois de um interminável e ensaboadíssimo duche, mergulhei no sono por nove horas. Quase dez da noite quando acordei, como não comia desde de manhã no avião, estava faminto e saí por um restaurante. Voltei ao terminal do aeroporto, onde vira um self-service. Reduziu-se-me consideràvelmente a quantidade de dólares. Voltei p’rá cama e repousei deveras.

A cem quilómetros de Nova Iorque, não tinha jeito que não fôsse conhecer a famosa e imensa metrópole.  Tomei um autocarro que parou numa estação terminal que conseguia na dimensão da altura a capacidade para receber camionetas de duzentos percursos. Uma Babilónia moderna com numerosos patamares ligados por ladeiras, escadas e tapetes rolantes. Saí e desemboquei na Rua 41. Precisava de um dicionário, a primeira etapa foi a ida a uma livraria. Bem quis, mas não consegui falar inglês – fui atendido por um espanhol que aviava um brasileiro. Não tinham o que queria. Continuei e acabei por comprar um pequeno dicionário de bôlso muito útil durante o curso. Ainda o tenho e consulto. Caminhei muito, cruzei três ou quatro avenidas, detive-me na 5.ª onde espiolhei umas quantas montras mais chamativas. Subi ao Empire State – obrigatório – encaminhei-me para a Broadway, mas já chateado, inverti o rumo. Achei a cidade escura, muito porca, mal-cheirosa, o ar sujo dos escapes dos automóveis. Não encontrei as beleza e elegância exportadas por Hollywood. Ao invés, só mulheres balôfas ou escanzeladas com pinturas esquisitas e pouco mais. Uma desilusão.

Recolhi já tarde ao meu vasto aposento e dormi ferrado. Acordei a tempo de arrastar as malas e ir pagar a conta a umas centenas de metros de distância. Pedi um táxi que não chegou, mas consegui em duas camionetas pôr-me no aeroporto de Newark às sete da manhã.


Em Newark

Um nevoeiro muito espêsso, impedia qualquer vôo. Que voltasse às 0945. Entretive-me a apreciar o mundo de lojas com montras muito bem armadas à cobiça dos viajantes. Para gastar mais uns minutos, sentei-me frente a um engraxador. Engraxava muito mal, mas cobrou-me a impensável quantia de sete dólares, isto é, duzentos escudos. Não tugi nem mugi.

Fui ao balcão, fiz o check-in e recebi o cartão de embarque:

- Gate three!

Aliviado da mala, apenas uma pequena pasta na mão e uns minutos pela frente, resolvi embarcar. Fui em busca da porta três. Devo ter visto mal: porta um, porta dois… porta quatro… Voltei atrás: o mesmo resultado. Olhei para o relógio: cinco minutos para o avião, comecei a ficar preocupado. Pedi ajuda a uma hospedeira com que me cruzei. Veio em meu auxílio, mas, tal como eu, não fez mais do que constatar a ausência da porta três. Mais uma busca infrutífera e… está na hora do vôo.

Na minha cabeça vai um destrambêlho. Que fazer?

Os pertences, a bordo de um avião a caminho de Providence. É sexta-feira, 20 de Maio e o curso começa segunda, em Newport. Estou sòzinho em terra estranha, com pouco dinheiro no bôlso, idealizando já a dificuldade em explicar-me, seja ao Adido Naval, seja ao Cônsul ou à Marinha. Tenho a noção de que fiz tudo bem, mas o resultado é um rotundo não. Será que sou um incapaz que nem consegue apanhar um avião a horas? Será que sou um incapaz?

É então que ainda mais uma vez a minha boa-estrêla se manifesta: à minha frente escancára-se uma porta daquelas que só abrem da pista. Ao longe, integrando uma imensa bicha de aviões avançando vagarosamente na pista de rolagem, aguardando a sua vez de descolar – o que em Newark acontecia à razão de uma por minuto – vejo na fuselagem de um deles o nome da companhia de que tinha o cartão de embarque – Allegheny.

Nem sequer me ocorreu, a hipótese de que não fôsse aquele o ‘meu’ avião. Esquecida qualquer interferência da razão, a acção tomou lugar. Saltei para a porta por cima de um murête que se interpunha, evitei um encontrão no homem que a segurava e desatei a correr – talvez conseguisse ainda os onze segundos e dois aos cem metros – segui a resultante do cinemático instantâneo que fiz mentalmente e depressa estava ao lado do nariz do avião, acenando para cima ao piloto, mão aberta, em sinal universal de paragem. Acompanhei a rolagem por alguns metros e o avião, um Convair, parou, fazendo parar todos os que se lhe seguiam. Aberta a porta avante a bombordo, foi desentranhada e desceu, a escada que sob ela embutida lhe dá acesso. Ofegante da corrida subi devagar, agarrado a um corrimão.


Nem o mais pontual passageiro mereceria tão insinuante olhar e a alegria do sorriso com que a hospedeira me recebeu ao portaló. Como tampouco mereceria a visão de duas pontudas maminhas que se adivinhavam, apertadas na blusa muito justa. Pasmo, como tive tempo e olhos para ver tudo isto, enquanto a moça conferia o cartão de embarque e confirmava ser eu o passageiro que faltara à contagem.

Mundo de brandos costumes aquele, em que se irrompia desenfreado pela pista de um aeroporto pejado de aviões, sem ser travado, beliscado, segurado, agredido. Imagine-se o que teria sucedido hoje, com as medidas de segurança a que o advento do terrorismo obrigou. É bem provável que não pudesse aqui dar agora êste testemunho.

- Mas, onde raio se terá escondido a Porta Três?




José Guerreiro
Calvaria, 5 de Janeiro de 2018



4 comentários:

José Lourenço disse...

Gostei muito ler este relato. andanças de um marinheiro em terra. Também tenho algumas peripécias mas talvez não tão coloridas como,esta . Abraço

Celestino Pinto Costa disse...

Ler estes comentários para mim faz-me relembrar momentos vividos na Mar
Digníssimo Comandante ,Abraço
Celestino Pinto Costa

José Botelho Leal disse...

Mais um delicioso escrito do nosso camarada que irá juntar-se aos muitos com que nos tem brindado. Bem-haja e não pare.....continue a escrever!

Unknown disse...

Tudo a postos para o segundo?

Abraço
Bom ano