A Missão de malatane
25ª Reünião
Chovia. Estuguei o passo. Estava ansioso por chegar ao
novo espaço conquistado para os nossos convívios. Tratava-se da vigésima quinta
reünião, um redondo número de ordem que ampliava o desejo de reencontro e se
materializava no esmêro posto pela organização em alindar a sala. Queria ter a
certeza de que os menos assíduos se tinham desta vez disposto a partilhar do
‘bezerro cevado’ que os esperava. À porta, uns quantos companheiros destas parapatenses
andanças, configuravam uma comissão de recepção. Senti a minha ansiedade em
chegar ser igualada pelos que aguardavam de braços abertos, dando expressão e
livre curso neste dia para todos tão especial no ano, a amizades com berço lá
longe, no longe para onde olhavam todas as memórias.
Desenvencilhei-me do capuz do anoraque e
sacudi-me. Umas primeiras saüdações… e com surpresa dou de caras com o padre
Eugénio que não via desde os idos de setenta!
Diz-me o Raúl: - Não o conhece, não é do seu tempo: é o padre Eugénio, da Missão de Malatane.
- Conheço, pois. Até já dancei com ele!
Carnaval
de 1971
Foi no Carnaval de 1971.
Numa noite escura de meados de Fevereiro,
numa silenciosa noite de António Enes, a campaínha da porta retiniu com insistência
e ecoou na quietude que já se fizera em casa, de mistura com risadas de grande
galhofa. Seis mascarinhas irreconhecíveis de vozes disfarçadas, faziam
trejeitos, simulavam negaças, chocarreavam.
Não identificámos ninguém.
Mas havia entre as espremidas, quase guinchadas falas que nos desafiavam,
qualquer coisa que lembrava o Algarve natal.
Entabulámos um diálogo muito em consonância
com a situação, que não consigo reproduzir; e não quero dar-me ao trabalho de o
reinventar por temer não ser já capaz de sintonizar-me com o espírito da coisa.
Encurtando caminho, apresentámo-nos. Vinham
brincar connosco, verberar a nossa atitude passiva perante o Entrudo, nós, um
casal tão novo, tão cedo recolhidos ao remanso do lar. Que fôssemos folgar com
eles, barulhar Antónjo Enes fora, ‘assaltar’ mais gente.
Ou porque houvesse algo importante a fazer
na manhã seguinte, ou porque fosse já muito tarde ou ainda porque não houvesse
ninguém disponível para cuidar dos filhos, o certo é que não pudemos juntar-nos à trupe. Com muita
pena, que vontade não faltava; além de que, não estávamos munidos dos aprestos indispensáveis
à condição de mascarados.
Que não tinha milando. No dia seguinte
havia baile no Clube Africano de Angoche, tínhamos tempo de procurar arreios
que nos disfarçassem; e lá estaríamos todos.
Comecei
por pensar no vestido. Uma mulher que não fosse baixa e pudesse ceder um
vestido menos conhecido no burgo? A Noélia matou a charada: D. Conceição
Oliveira.
Umas meias altas, espessas que estivessem
fora de uso? Ainda a Noélia: Clara Silva Marques. E saíram umas meias-calça brancas,
havia poucos dias chegadas da Metrópole. Ainda me deu umas dicas, sobre o creme
com que devia acachapar os pêlos das pernas antes de os embranquecer com pó de
talco.
Uns sapatos que não fossem altos demais,
na previsão de possíveis entorses; e a mala, o lenço de cabeça, jóias, etc.,
etc., etc. Passados tantos anos, já não sei de quem eram. Sei que fiquei uma
bela ‘mulher’, ainda que algo avantajada. Por baixo de uma farta cabeleira
loura não andaria longe pelo menos quanto ao porte, de uma escandinava
recém-chegada ao caju. E havia, claro, a máscara propriamente dita, creio que
comprada no Cândido e que nada deixava ver da cara.
Passada
grande parte do dia na atarefadíssima
busca e colecta daqueles precisos, chegou a hora de nos destrajarmos. Mais complexa, a
operação de calçar os sapatos de salto alto obrigou a um breve treino de
andadura, umas quantas passadas sobre aquelas andas, que não sei quem, em dia
de má inspiração, se deu ao trabalho de inventar.
Ainda em casa, os dois criados,
assistiram boquiabertos ao teatral desempenho do patrão, caminhando com passos
inseguros, para cá e para lá no corredor da casa. Perante a caricata encenação,
embora disfarçadamente, não se contiveram que não rissem. O que, devo dizer, me
fez descrer do bom êxito da mascarada por vir. Engano meu, como vão ver.
Não estando certo disso, deduzo, de
recordação em recordação, que o baile terá sido no Sábado Gordo. Não é
importante, mas gosto de balizar tão bem quanto possível, no espaço como no
tempo, as recordações que alinhavo.
Lá
fomos para o recinto do baile, onde chegámos discretamente. Minha mulher longe
de mim para diminuir o risco de reconhecimento, entrouxada no meu fato de
treino, os pés a boiar em sapatilhas à beira da cova, boné às três pancadas,
uma meia-máscara e um maço de jornais debaixo do braço, fazia um ardina
alfacinha na melhor versão Stuartiana. Integrámo-nos fàcilmente no ambiente colorido,
festivo e barulhento que tão bem se quadra com os folguedos do Entrudo.
Evitando falar e disfarçando a voz quando
falava, dancei, saltei, intriguei, mexi, brinquei… enfim fiz o que é suposto
fazer-se em condições tais.
Os paisanos eram em maior número do que as
máscaras; e como é de uso, eram mais contemplativos do que actores das brincadeiras.
Mas havia-os também que participavam. Topei com dois desses: o padre Eugénio e
a Dulce Duarte.
Após uma curta paragem na música, quando
já começava a ficar cansado do rodopio e antecipava uma saída à francesa, chegou-se
a mim o padre Eugénio, também ele curioso da identidade da louraça. Como
convinha a desconversa foi inconclusiva, o que no caso não era difícil, já que
mal nos conhecíamos. E, baile é baile, não tardou nada estávamos a dançar. Já
não sei quem convidou quem. Ao som de alguma mexida brasileirada ali andámos
aos saltos por breves minutos. Ele a tentar saber quem eu era; e eu, seguro por
detrás da mascarilha, torneando escolhos, dando pistas falsas, fazendo-me de
novas…
A presença de alguém cuja identidade se
não vislumbrava – carta nova num baralho por demais conhecido - acicatara a
curiosidade de algumas pessoas; que redobrou quando fiz par com o sacerdote.
Quem não resistiu a essa curiosidade foi a Dulce Duarte, ainda muito menina,
que cirandava entre os pares e se chegou a mim a perguntar com as mãos: puxou a
aba do vestido, as mangas, uma meia, a mala. E puxava com força: quase me
rasgou o vestido. Tentei afastá-la com brandura. Nada. Num rodopio mais forte,
dei-lhe um safanão. Com tão pouca sorte que resultou numa canelada. Lá se
afastou, dorida, queixosa, coitada…
Sabendo embora que não tive a intenção de
magoar, ainda hoje me arrependo do pontapé que dei à moça pequena.
Do que se passou depois, não tenho a
mínima lembrança.
A
missão de S. luís gonzaga de malatane
Nunca mais dancei com o padre Eugénio.
Fiquei a dever-lhe que me tivesse
permitido usar o Hospital da Missão de Malatane,
em Agosto de 1972, para uma
pequena intervenção cirúrgica.
A meu convite, o dr. Freixo Osório, cumprindo
serviço militar obrigatório como ortopedista no Hospital Militar em Nampula e
que ali me recompusera o joelho esquerdo aquando da fractura do menisco interno
num futebol de praia, veio com a família passar quinze dias de férias a nossa
casa em António Enes.
Vistas algumas radiografias e observados
os pés da Noélia, concluiu ser conveniente corrigir-lhe joanetes e calcâneos.
Em boa hora. Quarenta e um anos passados não voltou a haver incómodos.
A anestesista foi uma freira açoriana da
Missão, a Irmã Espírito Santo.
Fui constituído assistente de cirurgia
para finalizar a operação, aliás com muito sucesso.
Coube-me, alguns dias depois, retirar a
alicate, os fios de Kirschner que enfiados nas falanges, imobilizavam os dedos
maiores.
Tal como Freixo Osório nada cobrei pelo
acto médico.
josé guerreiro
FZ, 08AGO2013
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