8.8.13

A Missão de Malatane

                  A Missão de malatane





25ª Reünião    

     Chovia. Estuguei o passo. Estava ansioso por chegar ao novo espaço conquistado para os nossos convívios. Tratava-se da vigésima quinta reünião, um redondo número de ordem que ampliava o desejo de reencontro e se materializava no esmêro posto pela organização em alindar a sala. Queria ter a certeza de que os menos assíduos se tinham desta vez disposto a partilhar do ‘bezerro cevado’ que os esperava. À porta, uns quantos companheiros destas parapatenses andanças, configuravam uma comissão de recepção. Senti a minha ansiedade em chegar ser igualada pelos que aguardavam de braços abertos, dando expressão e livre curso neste dia para todos tão especial no ano, a amizades com berço lá longe, no longe para onde olhavam todas as memórias.
    
     Desenvencilhei-me do capuz do anoraque e sacudi-me. Umas primeiras saüdações… e com surpresa dou de caras com o padre Eugénio que não via desde os idos de setenta!
    
     Diz-me o Raúl: - Não o conhece, não é do seu tempo: é o padre Eugénio, da Missão de                                        Malatane.
                               
                                - Conheço, pois. Até já dancei com ele!
   

Carnaval de 1971

      Foi no Carnaval de 1971.

     Numa noite escura de meados de Fevereiro, numa silenciosa noite de António Enes, a campaínha da porta retiniu com insistência e ecoou na quietude que já se fizera em casa, de mistura com risadas de grande galhofa. Seis mascarinhas irreconhecíveis de vozes disfarçadas, faziam trejeitos, simulavam negaças, chocarreavam. 


Não identificámos ninguém. Mas havia entre as espremidas, quase guinchadas falas que nos desafiavam, qualquer coisa que lembrava o Algarve natal.
     Entabulámos um diálogo muito em consonância com a situação, que não consigo reproduzir; e não quero dar-me ao trabalho de o reinventar por temer não ser já capaz de sintonizar-me com o espírito da coisa.
     Encurtando caminho, apresentámo-nos. Vinham brincar connosco, verberar a nossa atitude passiva perante o Entrudo, nós, um casal tão novo, tão cedo recolhidos ao remanso do lar. Que fôssemos folgar com eles, barulhar Antónjo Enes fora, ‘assaltar’ mais gente.
     Ou porque houvesse algo importante a fazer na manhã seguinte, ou porque fosse já muito tarde ou ainda porque não houvesse ninguém disponível para cuidar dos filhos, o certo é que não pudemos juntar-nos à trupe. Com muita pena, que vontade não faltava; além de que, não estávamos munidos dos aprestos indispensáveis à condição de mascarados.
     Que não tinha milando. No dia seguinte havia baile no Clube Africano de Angoche, tínhamos tempo de procurar arreios que nos disfarçassem; e lá estaríamos todos.
                                                                                               
      Comecei por pensar no vestido. Uma mulher que não fosse baixa e pudesse ceder um vestido menos conhecido no burgo? A Noélia matou a charada: D. Conceição Oliveira.
      Umas meias altas, espessas que estivessem fora de uso? Ainda a Noélia: Clara Silva Marques. E saíram umas meias-calça brancas, havia poucos dias chegadas da Metrópole. Ainda me deu umas dicas, sobre o creme com que devia acachapar os pêlos das pernas antes de os embranquecer com pó de talco.
      Uns sapatos que não fossem altos demais, na previsão de possíveis entorses; e a mala, o lenço de cabeça, jóias, etc., etc., etc. Passados tantos anos, já não sei de quem eram. Sei que fiquei uma bela ‘mulher’, ainda que algo avantajada. Por baixo de uma farta cabeleira loura não andaria longe pelo menos quanto ao porte, de uma escandinava recém-chegada ao caju. E havia, claro, a máscara propriamente dita, creio que comprada no Cândido e que nada deixava ver da cara.
      Passada grande parte do dia na  atarefadíssima busca e colecta daqueles precisos, chegou a hora  de nos destrajarmos. Mais complexa, a operação de calçar os sapatos de salto alto obrigou a um breve treino de andadura, umas quantas passadas sobre aquelas andas, que não sei quem, em dia de má inspiração, se deu ao trabalho de inventar.
      Ainda em casa, os dois criados, assistiram boquiabertos ao teatral desempenho do patrão, caminhando com passos inseguros, para cá e para lá no corredor da casa. Perante a caricata encenação, embora disfarçadamente, não se contiveram que não rissem. O que, devo dizer, me fez descrer do bom êxito da mascarada por vir. Engano meu, como vão ver.

     Não estando certo disso, deduzo, de recordação em recordação, que o baile terá sido no Sábado Gordo. Não é importante, mas gosto de balizar tão bem quanto possível, no espaço como no tempo, as recordações que alinhavo.
      Lá fomos para o recinto do baile, onde chegámos discretamente. Minha mulher longe de mim para diminuir o risco de reconhecimento, entrouxada no meu fato de treino, os pés a boiar em sapatilhas à beira da cova, boné às três pancadas, uma meia-máscara e um maço de jornais debaixo do braço, fazia um ardina alfacinha na melhor versão Stuartiana. Integrámo-nos fàcilmente no ambiente colorido, festivo e barulhento que tão bem se quadra com os folguedos do Entrudo.
     Evitando falar e disfarçando a voz quando falava, dancei, saltei, intriguei, mexi, brinquei… enfim fiz o que é suposto fazer-se em condições tais.
     Os paisanos eram em maior número do que as máscaras; e como é de uso, eram mais contemplativos do que actores das brincadeiras. Mas havia-os também que participavam. Topei com dois desses: o padre Eugénio e a Dulce Duarte.

     Após uma curta paragem na música, quando já começava a ficar cansado do rodopio e antecipava uma saída à francesa, chegou-se a mim o padre Eugénio, também ele curioso da identidade da louraça. Como convinha a desconversa foi inconclusiva, o que no caso não era difícil, já que mal nos conhecíamos. E, baile é baile, não tardou nada estávamos a dançar. Já não sei quem convidou quem. Ao som de alguma mexida brasileirada ali andámos aos saltos por breves minutos. Ele a tentar saber quem eu era; e eu, seguro por detrás da mascarilha, torneando escolhos, dando pistas falsas, fazendo-me de novas…
     A presença de alguém cuja identidade se não vislumbrava – carta nova num baralho por demais conhecido - acicatara a curiosidade de algumas pessoas; que redobrou quando fiz par com o sacerdote. Quem não resistiu a essa curiosidade foi a Dulce Duarte, ainda muito menina, que cirandava entre os pares e se chegou a mim a perguntar com as mãos: puxou a aba do vestido, as mangas, uma meia, a mala. E puxava com força: quase me rasgou o vestido. Tentei afastá-la com brandura. Nada. Num rodopio mais forte, dei-lhe um safanão. Com tão pouca sorte que resultou numa canelada. Lá se afastou, dorida, queixosa, coitada…
     Sabendo embora que não tive a intenção de magoar, ainda hoje me arrependo do pontapé que dei à moça pequena.

     Do que se passou depois, não tenho a mínima lembrança.

A missão de S. luís gonzaga de malatane
    
     Nunca mais dancei com o padre Eugénio.
    
     Fiquei a dever-lhe que me tivesse permitido usar o Hospital da Missão de Malatane, 


em Agosto de 1972, para uma pequena intervenção cirúrgica.

     A meu convite, o dr. Freixo Osório, cumprindo serviço militar obrigatório como ortopedista no Hospital Militar em Nampula e que ali me recompusera o joelho esquerdo aquando da fractura do menisco interno num futebol de praia, veio com a família passar quinze dias de férias a nossa casa em António Enes.
    
     Vistas algumas radiografias e observados os pés da Noélia, concluiu ser conveniente corrigir-lhe joanetes e calcâneos. Em boa hora. Quarenta e um anos passados não voltou a haver incómodos.



     A anestesista foi uma freira açoriana da Missão, a Irmã Espírito Santo.
     Fui constituído assistente de cirurgia para finalizar a operação, aliás com muito sucesso.
     Coube-me, alguns dias depois, retirar a alicate, os fios de Kirschner que enfiados nas falanges, imobilizavam os dedos maiores.
     Tal como Freixo Osório nada cobrei pelo acto médico.

                                                                                       
josé guerreiro
FZ, 08AGO2013

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