singradura
com algum balanço
"A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;..."
Fernando Pessoa
Deixando o Lobito
Desde os dez anos que estar junto dos pais e da irmã era
circunstância rara. Não lhe foi por isso estranho, abalar sem eles para Lisboa.
Inusitado, foi que as férias grandes de três meses, que merecera, tivessem
encolhido para dez dias. Mas os anos lectivos estavam – e bem – sincronizados
com as estações do ano e não com o calendário civil; havia que apanhar o
combóio do segundo trimestre, já em marcha na Metrópole. Além disso, duas
semanas de mar não podiam senão ser creditadas como tempo de lazer. Foi debruçado
no convés da segunda classe do ‘Império’, o adeus que fez para a muralha do
cais do Lobito, de onde lhe acenavam os seus.
Com o paquete navegando devagar baía fora, foi revendo como
em filme a parte da meninice feliz que ali deixava:
Os longuíssimos passeios de bicicleta, à tarde, em bando -
uma vintena de moços e moças - a caminho do Rádio Clube (CR6RK), ou da
Restinga, pedalando para onde quer que fosse, em chilreada que por vezes era
gritaria;
A ponte-cais da Capitania, onde pescava roncadores – uma
espécie de mucharras – tantos quantos quisesse; ou garoupas de palmo e meio,
que fritinhas, ficavam de lamber os beiços; para seu mal, também de vez em
quando, um ou outro ‘baiòcu’ que não conseguira cortar a linha à dentada, estragando-lhe
ainda assim a pescaria;
Nas pedras a descoberto na baixa-mar por debaixo das
casuarinas junto ao paredão branco com ameias,
ficavam agora em paz os caranguejos, primos dos que usava
apanhar com mestria, de parceria com a irmã, até encher a vasilha que servia de
medida. Vertidos depois na panela, temperados e cozidos pela mãe, quantas vezes
lhes foram lanche…
E o barco de bimba comprado pelo pai por cem angolares,
trazido a remos do Lobito Velho por um marinheiro da Capitania… Bimba, uma madeira esponjosa, uma espécie
vegetal de grande poder de flutuação, decerto aparentada com o papiro. Os
troncos justapostos e apenas cravados com grandes pregos de pau, mesmo sem
painel de popa, faziam uma embarcação inundada mas inafundável. Era a sua
gôndola privada. Remando com água pelos artelhos usava-a para passear, pescar e
mergulhar. Que cem angolares tão rendosos em divertimento!
Mais além, ao rés-do-mar, via agora a piscina de água
salgada em que gastava as manhãs, ora mergulhando, ora esbracejando com estilo,
ora à torreira do sol com a maltesaria de férias;
Alongando o olhar para ré, ao fundo, por detrás do saco da
baía adivinhava o Compão, a Caponte, a Rua 28 de Maio e tantos outros lugares,
onde o levava a ‘Raleigh’ de todos os momentos, para importantíssimas tarefas,
como comprar ‘O Mundo de Aventuras’, encomendado na Livraria Magalhães; ou ir à
Luso-Americana pedir selos ao gerente, o Senhor Guardado; ou, ainda pelos selos,
subir aos sempre muitos navios belgas atracados e aproveitar para melhorar o
francês. À cata de mais umas estampilhas
também ia ao Hotel Esperança, onde o Fernando, filho do dono, e já conceituado
filatelista, por vezes lhe dava uns selitos, sempre acompanhados de preciosos
ensinamentos sobre a matéria. Foi aliás através dele que se fez membro de um
clube internacional de trocas.
Virado para o continente, para o Lobito Velho, viu-se com o
pai em casa do Senhor Américo, também algarvio e companheiro na Marinha, de
onde saíra para se aventurar com sucesso a fazer farinha de peixe. Estavam
atentos ao relato da bola. Jogava-se um Portugal-Espanha. Contra o costume,
vitória lusa . Concentrados nas peripécias do jogo, não se deram conta de que o
impúbere os imitava no festejo de cada golo com longos sorvos de Laurentina. Não
tardou que se sentisse tonto. Foi a sua primeira vez. Consciente do risco, saiu
sorrateiro e foi refazer-se, caminhando e respirando o ar fresco junto ao mar;
Como não lembrar os passeios à Catumbela ao Domingo? Sentado
no quadro da ‘Raleigh’, iam até uma oficina junto ao Mercado onde escolhia uma
‘burra’ de aluguer e lá iam então, cada um em sua bicicleta, pedalando devagar,
conversando, olhando a paisagem, nove quilómetros para lá, nove para cá;
Lembranças para sempre…
Mais acrescentaria ao filme – matéria para argumento não lhe
faltava - mas afinal o ‘Império’ passou entre o Farol do Lobito e o Farolim da
Restinga e chegou a mar aberto.
“Aqui CR6AA, posto emissor de Álvaro de Carvalho”, imaginou
ter ouvido, como última despedida, de uma voz vinda da ponta da Restinga.
Luanda – S. tomé – Funchal – Lisboa
No dia seguinte, 3 de Janeiro de 1951, estava em Luanda.
Passeou pelos lugares que ainda lembrava de cinco anos atrás, mas não tendo
amigos para companhia, integrou-se sem dar por isso no circuito dos outros
viageiros e aterrou na baixa. Foi à Livraria Lello e comprou ‘A diabólica casa
isolada’, com que mais tarde veio a iniciar a colecção Agatha Christie. Devorou
o livro com rapidez e arrependeu-se de não trazer mais para a viagem. Talvez em
S. Tomé…
Mas não conseguiu. Tudo quanto lhe ocorre da escala ali
feita, é a aterradora elegância de um enorme tubarão esbranquiçado nadando
preguiçosamente sob os holofotes pendentes da borda, quase junto à água.
Tinha acabado de fazer catorze anos e era essa a idade que
aparentava. Porém, habituado desde cedo a arvorar-se e de algum modo ser,
senhor de si próprio, sentia-se mais velho. Não admira por isso que se tenha posto
a jeito para completar a mesa de ‘King ’ que três adultos porfiavam conseguir
sem sucesso. Não havia muita gente na segunda classe; e para além da bisca e da
sueca pouco mais se jogava. Olharam-no com um misto de espanto e desdém que
aumentou quando depois de saber que o jogo era a dinheiro, manteve o propósito
de os confrontar, já que cada ponto valeria apenas um centavo. E em verdade, à
chegada ao Funchal tinha acrescentado quase cinquenta escudos à sua riqueza.
Riqueza, de facto. Saíra do Lobito com um conto e oitocentos
que os pais lhe haviam dado para despesas iniciais na capital e também a título
de prémio pelos bons resultados escolares. Riqueza algo mitigada no Funchal,
onde não resistiu ao chamariz das exposições de artesanato. Nos bordados, não
se dispensou de comprar uma bonita toalha de chá para a mãe e mais uns quantos
lencinhos não sabia bem para quem. Para o pai, levou uma caixa de madeira para
cigarros. Ainda bem que para si nada foi cativante assaz; e pôde chegar a
Lisboa com mais de um conto e trezentos.
O ‘Império’ atracou na Rocha do Conde de Óbidos na manhã de
16 de Janeiro. Esperava-o o Senhor Santos, Sargento Artilheiro nomeado para
Escrivão da Capitania do Lobito onde sucederia a seu pai e a quem este pedira
para ‘tomar conta do rapaz’ até embarcar para Angola. Depois de mútua e rápida
apresentação, tomaram um táxi para o colégio onde ficou internado. Mesmo ao
lado da Mata de Benfica. Vinte escudos, já com gorjeta, foi o preço da corrida.
Colégio instituto lusitano
Feito um rápido reconhecimento do novo espaço, encetou no
dia seguinte, uma sexta-feira, a freqüência do 5º ano, cujas aulas tinham
começado havia já três meses e meio. Uns quantos alunos internos com os pais em
África mais alguns alentejanos; e um número grande de externos das redondezas.
Como sempre a adaptação foi fácil e em dois ou três dias estava integrado.
O Colégio Instituto Lusitano funcionava num edifício antigo
com pretensões a palacete, ao fim da Avenida Grão Vasco,
paredes meias com o Parque Silva Porto, frente ao busto do
pintor que lhe dá nome.
O proprietário e director, Dr. Moreira, era um homem só, entrado
em anos, a quem a malta tratava por ‘Pai Moura’. Passava por ser católico
devotado, tinha sido ultrapassado pelo tempo e dirigia o estabelecimento como
um ‘trust’ familiar, dando güarida a três ou quatro parentes. No leque de
professores, todos homens, cabiam tanto militares desviados de funções, quiçá
por razões políticas, como um estimável octogenário que fôra condiscípulo de
Augusto Gil na ‘sagrada Beira’ e fazia da língua portuguesa uma devoção. Quanto
a prefeitos, conheceu dois: um que combatera pelos rèpublicanos na guerra civil
de Espanha, outro que freqüentara um Seminário e quase fôra ordenado.
Sentiu muito o frio daquele Janeiro, tão diferente dos que
suportara nos quatro invernos do planalto huílano. Foi-lhe custoso ter passado em
tão poucos dias, do Verão tropical do Lobito para o Inverno daquele inóspito
casarão velho, de pé-direito tal, que mal revelava os requintados ornamentos de
estuque que enriqueciam os tetos. Era ainda noite e já numa sala cheia de ar
gelado que parecia renovar-se a cada momento, assistia à aula de Português,
sentado numa carteira, que mesmo sendo de madeira, tão pronta estava em
roubar-lhe o calor do corpo. O branco ártico das paredes e das portas imensas
não ajudava e fazia juntar ao das mãos o enregelamento dos miolos. Até as
maçanetas, lindas, de louça, quando olhadas, reflectiam frio. À secretária, o
Dr. Direito, descido havia muito da Serra de Estrêla, parecia não sentir o mesmo
desconforto. Sentia outro, o dos muitos anos. Com pouco cabelo, todo branco o
que restava, fitava-nos com olhar àgüado e pálpebras vermelhas, por sobre os
meniscos em quarto de lua, impostos numa quase invisível armação de arame
brilhante:
- “…Vereis amor da
pátria, não movido de prémio vil, mas alto e quase eterno;…”
Sendo que estudante é aquele que estuda, sempre dera pouca
verdade literal à palavra. Não faltava às aulas, mas dava-lhes pouca atenção,
preferindo abrir a Selecta Literária lendo e relendo os textos do fim do livro.
Quantas vezes se terá emocionado coma leitura de ‘A aia’? Acabadas as aulas, mais que estudar, apreciava
as conversas, as disputas, as amizades com os companheiros; e procurava estar
em todas. Já antes assim era e não lhe faltou coerência.
Bêco do Surra
A semana-inglesa era almejada mas não conseguida ainda. Do
colégio saía porém ao princípio da tarde de sábado. Enfiava-se no eléctrico nas
Portas de Benfica e saía nos Restauradores, frente ao Éden. Curioso e interessado, caminhava pela Baixa,
observando tudo. Anúncios, montras, pessoas… estas muito apressadas, sisudas,
agasalhadas, bem vestidas, brancas quase todas, apenas um preto de longe em
longe a dar à paisagem um ar de familiaridade. Gostava de andar de eléctrico.
De preferência os que tivessem assentos de palhinha que melhor lhe recebiam o
corpo; mas nem sempre se dispunha a esperá-los e continuava a marcha rápida
para casa, onde o esperava a Dona Dôres, de sorriso pronto, a perguntar-lhe se
tinha fome.
Por opção ou fatalidade, o casal não tinha filhos. O Senhor
Santos era um homem inteligente e vivido. Dona Dôres, uma dona de casa
confinada a ser dona de casa, porventura mal amada, marcada pela solidão e a
quem a resolução do instinto maternal teria tornado alegre. O arremedo de
maternidade que os cuidados tidos com aquele menino lhe propiciavam era uma
bênção. Não era bonita, faltava-lhe anca, tinha buço pronunciado e verbo
difícil, mas era atenta, bondosa, generosa…
A casa, um primeiro andar alto, ficava numa esquina sombria
do Bêco do Surra, quase ao cimo da ladeira. Era uma construção mal amanhada, de
paredes exteriores a que o prumo fôra mal apresentado, com dois janelicos que
mais impediam que deixavam entrar luz. O interior, muito despido, não convidava
ao lazer e por isso, para além dos tempos de comer e dormir, logo que podia
escapava-se para a rua. Subidos uns quantos degraus estava na Rua dos Remédios,
de onde, encostado ao gradeamento de ferro frente à Leitaria Alsaciana,
conseguia ver uma nesga de rio. Em pouco tempo já o olhar lhe fugia para uma
janela alta na Calçada do Forte onde se assomava uma cara bonita. Não tardou,
percebeu que a moça também o olhava.
Tornou-se freguês da leitaria, desenhada com o traço e a cor
com que ao tempo se faziam aqueles estabelecimentos, mais tarde desaparecidos,
na sanha de promoção a pastelarias.
- Senhor Augusto, por
favor, traga-me um galão e um bolo de arroz.
Ainda a farinha de arroz concorria com a de trigo na feitura
do bolo e o tornava tão diferente e saboroso, tão singular e nosso. O galão
saturado de açúcar e o bolo, nem sempre lhe satisfaziam o apetite doce e
rematava com um pedação de abóbora cristalizada que o sentava à mesa mais algum
tempo, a fumar um cigarro e a fazer de homenzinho. Depois, atravessava a rua e
ia postar-se ao varandim sobre a Rua do Museu de Artilharia, de atalaia à tão
olhada janela.
O Senhor Santos usava chapéu à diplomata. Os homens adultos
do início dos anos cinqüenta ainda faziam do chapéu um adereço obrigatório. O
modo como era posto na cabeça, direito ou cambado, o estar mais ou menos enterrado,
tal como o desenho do gesto cortês com que lhe pegavam para um cumprimento, ou
o tamanho do concâvo da copa, individualizava-os. O chapéu à diplomata,
pretensioso, era por norma cinzento, de bom fêltro, copa alta e aba enfeitada a
cetim revirada para cima. Chapéu caro, dava a ilusão de um estatuto social superior.
Nas relações do Senhor Santos, alguns amigos não o dispensavam.
‘Tomar conta do rapaz’ fez com que o rapaz viesse a conhecer
meia-dúzia daqueles amigos. Eram todos sócios do Clube Recreativo dos Bem
Intencionados, com sede num primeiro andar da Rua do Paraíso, onde se juntavam
à volta de uma mesa grande, para disputas de baralho. Jogavam o ‘burro’. Com
tanta apetência que tinha para jogos, não chegou a entender o mecanismo
completo daquele. Parecia-lhe uma espécie de ´poker’ fechado. Havia quem
falasse em ‘blefe’. Rejeitavam-se cartas, mas ainda se podia ir buscar jogo a
esse resto. Dizia-se que se ia ‘às cascas’. Mais do que ao jogo em si, dava
atenção aos gestos e expressões dos jogadores e ao manuseio ritmado das fichas,
ora chocalhadas entre os dedos, ora percutidas irritantemente sobre a mesa.
Como quase sempre é, havia à volta do pano verde gente a quem perder não faria
diferença e outra que buscava um complemento do salário e só de raro não
voltava a casa cabisbaixo.
Por inesperada coïncidência, muitos eram adeptos do clube da
sua simpatia. Passou a ir com eles ver os jogos que aconteciam nas Salésias, domingo
sim, domingo não. Maior coïncidência ainda, foi ser o pai da cara bonita da
janela quem o levava ao futebol na sua reluzente arrastadeira Citroën preta. Fez-se sócio de ‘Os Belenenses’. E não tardou que
num domingo – 18 de Março - a filha acompanhasse o pai. A proximidade
encantou-o. De combinação em combinação, a gente grande decidiu ir à noite ao
‘Royal’, ver o ‘O terceiro homem’. A juventude ficou sentada lado a lado. Olhos fixos nas imagens mas a mente olhando a cadeira ao lado, roçou pela
dela a sua mão. Invadiu-o uma sensação nova, complicada, quente e esquisita,
que o arripiou. Meses depois, já morando com os pais e irmã, esperava-a à saída
das aulas, acompanhava-a a casa e diziam as banalidades em moda.
rua do paraíso
De partida,
o Senhor Santos passou a tarefa de ‘tomar conta do rapaz’ ao Senhor Eduardo, um
amigo chegado, com quem o moço já estabelecera laços de simpatia. Casado e com
uma filha de vinte e um anos, muito unidos, faziam uma família que sentia como
se fôra dele. Passou então a ser recebido e a dormir aos sábados e domingos, no
primeiro andar que habitavam na Rua do Paraíso. Casa modesta e aconchegada,
onde se sentia muito bem. Lia os livros disponíveis na sala e já não descia
tanto à rua. Continuava freguês da leitaria, e ia conhecendo mais gente: os
gémeos Ferrari, o Joaquim Campos, gabado árbitro de futebol, o Manecas, filho
do Senhor Elísio, com grande talento para desenho, o Albano da sapataria, etc.
Estava-se em
Alfama e vivia-se uma vida de bairro. Nas proximidades toda a gente se
conhecia, se cruzava a caminho da praça em Santa Clara e parava para uns dedos
de conversa. Uma vida calma, com algumas dificuldades mas sem grandes
sobressaltos.
A duzentos
metros, mais acima, inacabadas e paradas, jaziam as obras de Santa Engrácia já
em desesperança de que viessem a ser igreja. Passava lá às vezes. A grande
espessura das tábuas que haviam vedado o acesso ao interior não fora
convincente. Os pregos - quase cavilhas
- que as tinham unido, retorcidos
e disformes, ainda presos pela cabeça, eram uma ameaça para quem quisesse
franquear a abertura praticada. Nem por
isso teriam sido poucas as aflições intestinais que ousaram consegui-lo. Olhando
pelo buraco, via-se bem a imensa retrete em que fôra convertido aquele amplo
chão, ainda não abençoado. O zimbório
monumental que lá do cimo escondia a estrumeira, não conseguia disfarçar o
desagrado.
O Inverno
não avançara o suficiente para que não fosse noite ao sair para o colégio às
segundas-feiras, mas o fresco matinal já em nada se parecia com as madrugadas
gélidas que arrostava quando dois meses antes dormia no Bêco do Surra e por ali
deslizava sobre o empedrado liso e húmido direito ao chafariz e à Rua da Alfândega. Agora descia a também
muito pronunciada ladeira da Calçada do Forte e num pulo estava em Santa
Apolónia. Apanhava o eléctrico dos operários e em poucos minutos, por quatro
tostões, estava na Praça da Figueira e saía. Caminhava até aos Restauradores,
onde quase sempre, aguardando passageiros para Benfica, encontrava parado nos carris um eléctrico da
carreira nº 1.
Escolhido
lugar junto a uma janela, abrigado quanto possível, aguardava o tilintar da
sineta que anunciava o início da viagem, já conhecida de còr, mas que sempre
lhe parecia nova. Encantavam-no em especial os anúncios luminosos e coloridos
de néon, completa novidade. Quando passava pelo Rossio não se cansava de olhar
a simulação de galope dos cavalos que puxavam o coche do rèclamo ao ‘brandy’
Constantino. Enquanto subia a Avenida da Liberdade não lhe faltavam chamarizes
de luz que apreciava como da primeira vez. Na António Augusto de Aguiar gostava
de ver a seqüência ‘Scania’, ‘Tatra’ , ‘Minor’ a azul e mais acima, a amarelo,
‘Instituto de Beleza Arminda’. Ia balizando o conhecimento da cidade com os
anúncios, mas também com prédios ou acidentes de terreno estéticamente mais
apelativos que inscrevia na memória com facilidade. Era Palhavã, era o
paralelipípedo do Instituto de Oncologia, vinha o Jardim Zoológico e entrava-se
na interminável Estrada de Benfica. Chegado entretando o dia, tudo ganhava côr
e vida. Àquela hora o eléctrico corria veloz, parava raras vezes, havia poucos
passageiros, o revisor se calhar ainda dormia e só o badalo puxado pelo cordão
de sola estendido por toda a composição fazia de vez em quando tinir a campaínha
a pedir uma paragem; ou mais forte e vibrante, a dar sinal de passagem, soava o
alarme exterior, junto ao solo, também ele ferro contra ferro, accionado por um
pedal sob pèzada do guarda-freio.
Em Benfica,
a pouca distância da igreja, saía frente à ‘Panificadora do Sul’ onde entrava
para comprar um papo-sêco acabado de sair do fôrno, quentíssimo. Continuava a
pé pelo mesmo passeio até à esquina da papelaria do Fontan e virava à esquerda,
já na Avenida Grão Vasco. Alguns passos andados, entrava numa taberna de portas
azuis ali abertas ao povo bebedor, sentava-se a uma mesa e pedia um queijinho
fresco, mas acrescentava para obtenção de estatuto e como credencial para uso
do espaço, um ‘copo de dois’ de tinto. Entalava o queijo no papo-sêco,
saboreava com prazer o frugal e invulgar mata-bicho e num minuto estava no
Instituto Lusitano pronto para a primeira aula.
Sessenta e
dois anos passados, é interessante, em tempo de tanta dedicação à finança,
contabilidade e orçamentos, deixar aqui em letra de forma, o custo do regresso
ao colégio em cada manhã de segunda-feira: os já ditos quatro tostões do percurso
de Santa Apolónia à Praça da Figueira; mais dez tostões do eléctrico dos
Restauradores a Benfica; mais outros quatro tostões do papo-sêco; e ainda cinco
tostões do queijo e outro tanto do vinho. Tudo somado, transportes e pequeno
almoço, gastara vinte e oito tostões – dois mil e oitocentos réis, ou, na
verdade, dois escudos e oitenta centavos.
Mar rugoso
No colégio,
era-lhe mais simpático o grupo dos que ali andavam por andar, faziam do estudo
uma desobrigação e se ocupavam em futeboladas, fugas ao prefeito em busca de
sítio seguro p’ra fumar, histórias de pretensas vivências de gente grande e
outras ocupações igualmente enriquecedoras. Tinha uma preparação escolar básica
muito boa e nela confiava. Só conhecera bons professores. Com Dona Conceição
Martins em Faro, com os professores Canedo e Vieira em Moçâmedes; e com o
conjunto docente de excepção que encontrou no Liceu Nacional Diogo Cão em Sá da
Bandeira, com todos eles e algum estudo não parou de aprender. Porém, a
circunstância de crescimento que vivia somada à vontade de férias que não
tivera, fizeram-no desembocar num quase vazio de vontade e descuidou por
completo a habilitação nas matérias ensinadas desde Outubro, quase quatro meses
em que não estivera presente. Para compôr o quadro fazia profissão de dúvida quando
lhe afirmavam ser difícil o exame do quinto ano. ´Cantando e rindo’ ia gastando
o tempo alegremente. Alegremente.
Descoberta
há muito a masculinidade, não se cansava de a confirmar amiúde, esquecido já da
puberdade difícil que tivera, das recomendações assisadas do Delegado de Saúde
de Sá da Bandeira e das há muito acabadas bòlinhas negras de cânfora receitadas,
que tinham afinal tido efeito contrário, dir-se-ia quase perverso. Fazendo jus
à fase de maturação que atravessava, começava a ter olheiras e o rosto
alongava-se-lhe encovado. Na versão curta e concisa da avó, andava ‘chupado das
carochas’.
Nada lhe
andava a correr bem. Na véspera da chegada dos pais, de regresso à Metrópole,
numa incursão vespertina à Mata de Benfica onde às vezes ia sonhar estiraçado
na relva, atirou-se ao chão como se o fizesse sobre um colchão, amparando a
queda de costas, com as mãos. Alguém ali deixara uma lembrança, um osso bicudo
e rijo que se lhe espetou no cutelo da mão direita, penetrando de tal modo que
a ponta ficou a espreitar entre os dedos anelar e mínimo. A dor foi grande.
Naturalmente. Guinchou um pouco quando retirou com cuidado o osso a mais,
voltou ao colégio e mostrou o resultado ao director. Levaram-no a um consultório na Estrada de Benfica onde foi
observado por um médico que franziu o nariz. Sôro anti-tetânico, uma ‘micina’
qualquer tomada de poucas em poucas horas e contrôlo da temperatura ao longo da
noite, que foi de S. João. Assustou a mãe quando no dia seguinte se apresentou
no cais, de braço ao peito, pálpebras pendidas e um olhar vago e longínqüo de
zombie.
Perto do
consultório médico, entroncava na Estrada uma avenida que reconheceu, por já lá
ter estado um par de vezes para ver cinema, numa dependência do Benfica clube.
Aliás, uma desilusão de cinema. A luz projectora, muito fraca, punha-lhe à
prova os olhos e em evidência a miopia encontrada aos doze anos num rastreio
feito no liceu e ainda não corrigida, lembrando-lhe o refrão da cantiga plasmada
numa brasileirice popular e posta em palco a propósito pelos finalistas:
‘Doutôrzinho, isso não se faz… Deixe a nossa vista em paz!’. Embora já gostasse
muito de cinema e não houvesse outra sala nas imediações, não insistiu.
Quase
acabara Abril quando morreu Carmona. Algum tempo decorrido, soube-se a data da
ida às urnas. Perfilou-se Craveiro Lopes pela União Nacional; opuseram-se-lhe
Arlindo Vicente e Quintão Meireles. Sobre este se escreveu em letras garrafais
na alta empena do último prédio construído na João XXI qualquer coisa como ´Não
queremos um almirante que navega em águas turvas’. Vivendo desde muito cedo o
desejo de se juntar à Briosa, sentiu como ofensa pessoal o contundente escrito
e passou a alimentar a esperança de que o almirante ganhasse. Esperança vã.
os novos colegas
Seis ou sete
rapazes, quase todos externos, freqüentavam o 5º ano.
Seiça Neves,
Fontan, Couto Rodrigues, Salvador e Palma Vaz, eram cinco deles. Fotografou-os
várias vezes, tal como a muitos outros, ora em posições ora com expressões mais
ou menos caricatas, como era de esperar nas idades que tinham. Até de cenas
teatrais simuladas sobre o palco do ginásio do colégio colheu imagens, cada um
dando largas à imaginação sob a batuta do Palma Vaz, mais dado a pisar as
tábuas.
Na festa do
fim do ano lectivo, saíu daquele quinteto o elenco de ‘Todo o Mundo e Ninguém’
que colheu rüidosos aplausos de amigos e familiares na assistência. Parte
integrante dos festejos foi também um sarau de ginástica aplicada, disciplina
muito dinamizada pelo professor, um homem seguramente perto dos setenta anos,
coxo e de bengala que conseguia atraír ao ginásio a rapaziada mais dotada. Não
era o seu caso, em que o entusiasmo se ficava por admirar quem se aventurava
nas traves ou sobre os plintos.
Com a
família já regressada de Angola, teve no decurso da festa a visita inesperada do
pai que o surpreendeu com bilhetes para o espectáculo de patinagem artística sobre
gêlo em que se exibiam nessa noite os ‘Holiday on Ice’. Tal como os colegas entusiasmado
com o desenrolar da festa insistiu em ver-lhe o fim. Ignorava a beleza de noite
que o pai lhe propunha. A pachôrra que este teve em aceitar-lhe a teimosia só
pode dever-se ao seu próprio desconhecimento do que iriam ver. Chegaram tarde e
terão assistido apenas ao terço final da exibição. Que deslumbre de luz e côr!
Que elegância e destreza! Que arrependimento!
Não tardou
muito voltou a faltar-lhe, em relação ao mesmo palco, o sentido de oportunidade
que julgava ter. De novo com o pai – mãe e irmã ainda estavam em Faro –
passeava pela Avenida da Rèpública junto ao Campo Pequeno que regurgitava de
gente, quando este lhe propôs uma ida aos touros. Não quis. Que raio de melhor
alternativa terão escolhido? Mistério! Não era e continua a não ser um
aficionado da festa brava, que não hostiliza. Ao tempo, tudo que tinha visto de
touros resumia-se a uma lide a cavalo em arena improvisada junto à piscina da
Senhora do Monte, no Lubango. A lide fazia parte das comemorações do Tricentenário
da Restauração de Angola tal como a inauguração da própria piscina, normalizadas
e muradas que tinham sido as margens do
charco original. O cavaleiro era o Senhor Bretes, seu conhecido da Alfândega de
Moçâmedes. A oportunidade perdida anos depois no Campo Pequeno, bem, essa foi
não ter visto Manuel dos Santos executar por uma tarde o proibidíssimo final de
dar morte ao touro na arena. Repêso de novo! E sem remédio.
acalmia breve
Estariam
quase a terminar as aulas quando se pôs a questão de escolher casa em Lisboa.
Por um par de dias teve pais e irmã vivendo numa pensão na baixa. Avaliadas
muitas hipóteses de aluguer, soube que uma boa casa na Morais Soares fôra
reprovada por ter o Alto de S. João próximo demais. Sendo que a vida não tem
dimensão métrica, qual será a distância ideal do porto de abrigo temporário de
uma morada ao definitivo cemitério? Também colaborou na busca e lembra-se de em
domingo de muito sol ter calcorreado uma Avenida de Roma em construção, prédios
ainda no tijolo, montes de andares de cinco assoalhadas disponíveis a
oitocentos escudos, todos chumbados pela mãe porque… ficava muito longe! Foi
eleito um primeiro andar na Conde de Monsaraz por novecentos mil réis, muito
perto da casa na Penha de França, que habitara por pouco tempo, quando em 1940,
com tosse convulsa, o levaram a mudar de ares e a fazer longos passeios pela
mata do Alfeite a respirar o imenso pinhal. Guarda vagas lembranças desse
tempo, em que decorria a Exposição do Mundo Português.
Tal como nas
vésperas da partida para Angola visitaram o Jardim Zoológico,
aquando da
volta este continuava a ser, sob pretexto de dá-lo a conhecer às crianças, um
destino interessante e muito procurado pelos mais crescidos. Feliz por ter sido
o elo de ligação da amizade surgida entre os pais e os Eugénio, exultou com o
passeio das duas famílias ao… Jardim Zoológico.
Em pouco
tempo se visitavam e faziam serões. O relacionamento das famílias evoluiu de
tal modo que os casais vieram a tornar-se compadres quando os pais apadrinharam
em S. Vicente de Fora8169 o matrimónio da Fernanda, anos depois ela própria e o
marido padrinhos de casamento do menino feito adulto.
a justeza das coisas
E chegaram
os exames que nem sequer se deu ao trabalho de temer. Ciente do pouco esforço
investido no estudo das matérias ao longo do já de si minguado tempo de que
dispusera, passou vagamente os olhos por um ou outro livro menos massudo e
dispôs-se a esperar o milagre. Se algumas disciplinas havia que por apetência
inata, em termos chãos, estariam no papo, havia as que não poderiam ser
ultrapassadas sem trabalho; e este falecera-lhe. Tão bem que sabia arvorar-se
em homenzinho para acamaradar, rir e folgar e que puto irresponsável era afinal
quando a vida lhe pedia que crescesse.
Mal percebidos,
quiçá mal ministrados, os ensinamentos catequéticos absorvidos, primeiro em
Faro, na Capela de Santo António do Alto e depois em Moçâmedes num convento de
freiras, aliados à sedução dos rituais, tornaram-no um pretenso católico, mal
resolvido. Feita a comunhão solene a que de imediato se seguiu a confirmação do
baptismo, quedou-se por aí a sua formação religiosa, a que só bastante mais
tarde deu seqüência, então de uma forma independente e apartidária. Não
obstante procurar convencer-se da bondade da ligeireza com que nos últimos
meses encarara a profissão de estudante, bem lá no íntimo, a consciência
acusava-o. Mas não com força bastante para um acesso de vontade e coragem que o
fizesse tomar o boi pelos cornos e olhar os livros. Veio então ao de cima a
confusão entre o poder do Além e as fraquezas terrenas: aplicou-se em interesseiras
rezas, como se foram a sua parte de uma conta-corrente, em que, pataca a mim,
pataca a ti, o estorno seria o milagre. A paga não chegou e zangou-se. Teve o
desplante de ficar zangado.
Na manhã do
primeiro dia de exames, a mãe, para além do cuidado no atavio do filho,
esmerou-se no mata-bicho que incluiu a novidade de uma infusão de tília ‘p’ra que não estejas nervoso’. Quando
saiu de casa não sabia ainda onde era o Liceu Camões. Foi a pé, quase pelo
cheiro, em busca da Praça José Fontana. Sendo que a distância era maior que a da
informação colhida e com o tempo a esgotar-se na procura, sobreveio-lhe uma
intranqüilidade a que não era atreito e que atribüi ainda hoje à bem
intencionada tília. Vá lá, sobre a hora, mas chegou.
Tudo correu
como era justo que corresse. Chegou às orais, mas até mesmo a letras, que
ultrapassou, não foi difícil a Sérvulo Correia, o reitor, identificar que a sua
leitura de Matoso pouco fôra além da Antigüidade Clássica.
Mezena
FZ, 07JUL2013