Não é que em narrativas anteriores tenha esgotado Moçambique
enquanto tema, não. Mas hoje resolvi vir à minha África primeira. O Império
Colonial Português estava quase intacto. O endereço postal de uma carta para Angola
incluia ainda os dizeres ‘África Ocidental Portuguesa’ seguidos então pelo nome
da colónia. Ir para África era de facto uma aventura, pelo menos aos olhos dos
que cá ficavam. Os que iam, queriam vencer e arrostavam qualquer condição, por
vezes situações muito precárias de insalubridade, isolamento, clima… que
ultrapassavam com força de vontade, a ajuda dos que os tinham precedido e
sorte. Foi uma África assim que primeiro conheci. Cá vamos pois.
Minha Primeira África
A guerra acabara poucos meses antes, mas a visão das
bandeiras aliadas desfraldadas na varanda do Governo Civil já se lhe escondia
no mais recôndito da memória. As bichas para o pão e o azeite estavam
esquecidas. Mas não esquecera a lúdica tarefa – uns quatro anos atrás - da colagem de fitas de papel nos vidros das
portas e janelas, em que tanto se empenhara a ajudar a mãe. Para evitar
estilhaços – diziam - no caso do bombardeio com que a aviação alemã ameaçava.
Era o tempo em que nos assomávamos à janela porque passava um automóvel , ou
basbaques, parávamos a olhar no alto o aeroplano que nos sobrevoava.
Agora, já
tinha nove anos e andava na 3ª classe. A escola
do Bom João era do outro lado da rua; talvez por isso, muito de raro não
chegava em último. No fim da aula, Dona
Conceição escrevia no quadro o nome do melhor aluno do dia; e o seu aparecia
muitas vezes.
Rapazinho vivo, curioso e observador, colhia dos adultos com que
conversava amiúde, ensinamentos que assimilava de
imediato.
Foi quando eclodiu a notícia e se tornou alvo de atenção e
curiosidade: ‘Então, vais p’rà África?’. Sentia-se importante. Não conhecia
ninguém que tivesse ido para África. Sabia, das aventuras que lia n’ ‘O
Mosquito’ que ali encontraria leões e elefantes. Pretos não seriam novidade
para si pois conhecia o Pedro que vendia cautelas na baixa de Faro.
Fazia-lhe espécie que a preocupação mais visível em casa fosse a escolha do tecido arrendado para feitura dos mosquiteiros ou que tivesse ido a casa da Antónia tirar medidas para uns pijamas frescos de popelina.
Como viveu em festa a
preparação da viagem custou-lhe ver lágrimas à despedida. Muita gente na
estação, muitos acenos e o resfolegar do combóio a pôr fim à tensão visível nos
rostos mais queridos.
Cinco dias na
Pensão Tomarense, em Lisboa, foram um suplício: sopa de nabo a todas as
refeições desconjuntou-lhe as entranhas.
E chegou o dia 23 de Fevereiro de 1946
em que o “Lourenço Marques” ” largou, rumo a Luanda, sem escala. Ainda hoje, sabendo
embora que não viu a linha do Equador, tem bem presente a sua imagem colhida nos binóculos preparados que lhe
deram; e ninguém o convence que o paquete não a transpôs dando
um salto.
Mês e meio em Luanda, em casa de um amigo do pai, aguardando decisão
sobre a Capitania em que lhe caberia ser escrivão, foi tempo de fazer uma nova
amizade – o Chico, menino da casa. Apreendeu
cores, cheiros, sabores, o exotismo das vestes, o falajar esquisito,
indecifrável e risonho… Comeu e gostou
logo de mamão, de anona, apreciou as doces laranjas do Loge, aprendeu a dizer
matabicho…
Estranhou que o dinheiro
fosse outro, que se chamasse angolar, não gostou de ver a sua conhecida moeda de dez tostões
substituída pela nota de um angolar. E aquele papel roxo que valia dois angolares e meio, em vez
da pequenina moeda de vinte e cinco tostões pareceu-lhe puro mau gosto.
Sem
escola, cirandava com o Chico até onde podiam, não se afastando muito de casa.
Estava de férias. Que chegaram ao fim no princípio de Maio.
A bordo do “João
Belo”, foram para Moçâmedes, cidade mais pequena, no Deserto do Namibe. Foram
viver para o Hotel Moçâmedes onde estiveram quatro meses; depois para uma casa
na Capitania; e mais tarde para uma outra, alugada. Sempre novas experiências!
Matriculou-se na Escola 49,
onde o ano lectivo tinha começado no início de Abril. Bom aluno e com quase 5
meses de freqüência da 3ª classe em Faro, não lhe custou distinguir-se. Pouco
depois já fazia exame antecipado que o Governador Geral deferira e passava para
a 4ª. Muito bem sucedido no exame, seguiu-se a admissão ao liceu com idêntico
resultado. Em vez de perder os 6 meses de dessincronização dos anos lectivos,
ganhara-os.
Os professores Canedo e Vieira e os colegas Frota, Bauleth, Nito,
Figueira – guarda-redes das futeboladas na areia do recreio – e o David, seu
amigo e parceiro de carteira – negro como um tição – serão sempre lembranças
suas.
Como os doces de ginguba (amendoim) e os chupa-chupas do quiosque do
Faustino ou a muamba de pichelim (peixe seco). Ou ainda as quitetas
(conquilhas) que mariscava mesmo por trás da Capitania! Belos petiscos.
Burriés, chegou a ir apanhá-los de passeio ao Saco do Giraúl.
Uma vez foi a uma
caçada às “cabras de leque”, no Pico do Azevedo. A um miúdo tudo parece imenso…
Mas o Pico do Azevedo, conspícua elevação em pleno deserto, estava mesmo
enxameado de cabras. Foi o que viu, ‘claramente visto’. Seu pai, ‘Mauser’ em pontaria, acertou na
barriga de uma, que andou mais de uma hora a despejar tripas à frente da
carrinha e só parou quando atingida numa pata. Africanices…
Também não
esquecerá como se pedia ao mestre para ir à retrete: ‘Sô pessor, posso ir ao
deserto?’ A uns metros da escola, transposto um muro… já era de facto deserto.
Mas peculiar mesmo era o jardim, onde depois do sol posto os caranguejos
assentavam arraiais. À noite, eram aos milhares e num pacífico restolho aos
nossos pés, passeavam connosco. Difícil era não os pisar.
De manhã muito cedo, o espectáculo era outro.
Viam-se magotes de criados, carregando grandes penicos de esmalte, muito altos,
a caminho da beira-mar, para despejo dos dejectos da véspera. Tempos outros…
Na
praça, com três ou quatro táxis, o Pinto, defesa do Atlético, dava nas vistas,
ao volante de um ‘bruto’ e flamejante automóvel americano, vermelho carmim.
Enquanto
viveu no hotel, conheceu muitos pilotos da DTA, asas ao peito, sempre vestidos de
branco (Camisa, calção, sapatos e meias altas) com as caixas dos óculos
“Wilsonites” à cinta, óculos que eram a sua fascinação. O Osvaldo, filho dos donos do hotel e a prima,
Anita, foram amigos daquela curta permanência. Como também as filhas do
Delegado de Saúde, homem robusto, sem braço esquerdo, que tinha perdido a
defender-se do ataque de uma leoa, mais para Sul, para a zona de Porto
Alexandre.
Porto Alexandre, vila piscatória com o cheiro de Olhão, a que a
escola o levou a fazer uma visita de estudo e onde numa fábrica (João Patrício
Correia) viu o percurso do atum desde o desembarque à saída em lata.
Tão poucos meses e que deram para tanta coisa: foi também o tempo em que as freiras da Missão lhe deram por finda a
catequese iniciada na Capela do Alto de Santo António em Faro e recebeu
Comunhão Solene e Crisma na Igreja de Santo Adrião.
Havia dois liceus em Angola, ambos chamados nacionais: um em
Luanda, outro em Sá da Bandeira. Este, muito mais próximo de casa; e além
disso dispondo de um internato que recebia alunos de todo aquele imenso
território. Militares e funcionáros públicos pagavam mensalidades menores pelo
alojamento dos seus filhos. Fazendeiros e outros profissionais, igualmente espalhados por Angola e com
filhos a estudar, também para ali os mandavam. Não havia internato para
raparigas, embora o liceu fosse misto. Claro que foi escolhido o Liceu Nacional
Diogo Cão, em Sá da Bandeira, cidade que tendo já esse nome era também ainda, o Lubango.
Tinha
chegado o tempo próprio, estava com dez anos recém feitos e foi posto fora de
casa. Os pais meteram-no num avião e… ala!
A DTA (Divisão dos Transportes Aéreos), criada em 1938 e
renomeada DTA – Linhas Aéreas de Angola, em 1940, começou a voar em Julho de
1940, com aviões idênticos ao da imagem – o bimotor biplano inglês DeHavilland
DH89A Dragon Rapide – com familiaridade tratado apenas por “Dragon”. Metia 7
passageiros. Foi numa destas aeronaves que teve o seu baptismo de voo. E que
baptismo!... Subir à Serra da Chela – zona de assanhadas trovoadas africanas –
entre chuva, vento, raios e coriscos… foi um baptizado de estalo.
Chegou uns
dias antes do início das aulas. Com muito boa capacidade de adaptação, rápido
se sentiu em casa. Foi conhecer o Senhor Cristão, que seria o seu encarregado de
educação. Bàsicamente era um cofre. Assinava vales em que indicava o destino
(presumido) do dinheiro e dele recebia angolares. Assim pagou as propinas, os
livros, o material de desenho, etc. Com o tempo passou a ter mais necessidades
e a fazer umas aldrabices, como comprar duas vezes o Dicionário de Francês –
Português ou exagerar no número de frascos de tinta da china. O saldo era
convertido em ‘chewing gum’, bolos, um pente ou uma lanterna (era um utensílio
na moda) e cigarros.
Sim, começou a fumar com dez anos. Mas não por muito
tempo. Largou o vício logo aos 53. Foi o caso de ter sido interpelado por um
colega de internato, o Abel Lara, que andava no 7º ano, e lhe pediu um cigarro.
Que não tinha… que não fumava. ‘Como?... Aqui, quem não fuma é menina!’. Quem é
que queria ser menina? Foi logo ao ‘Palhotas’, uma espécie de cantineiro
cafrealizado com uma lojeca infecta e comprou um pacote de ‘Caricocos’ – 300
cigarros
enfiados num cilindro de papel pardo. Tabaco forte mas bom. Daí a três
ou quatro meses fumava como um homem.
Este sistema algo endinheirado de viver
não durou muito. O pai percebeu e impôs-lhe um programa tipo FMI do milénio
passado e cortou-lhe a coleta.
Nem pai nem mãe alguma vez foram a Sá da
Bandeira, não tendo por isso sabido que chãos pisou o primogénito naqueles
primeiros quatros anos de liceu. Mas confiavam nele. E esquecendo os riscos que
se correm e as pequenas asneiras que se cometem como parte integrante do
crescimento, não havia razão para que não confiassem.
Nas férias grandes que
começavam dias antes do Natal, ia para casa. Nas férias intermédias nem sempre foi. Mas nunca se deixou abalar por
saüdades. Mantinha correspondência com a mãe e de quando em vez escrevia-se com
o pai. Soube preencher bem o tempo com a aprendizagem de ser homem,
aproveitando alguma independência e capacidade de decisão que a circunstância
lhe conferia.
Sá da Bandeira, no planalto da Huíla, a 1760 metros de
altitude, chegando em Junho a atingir temperaturas negativas, facilitava aos
estudantes o uso de capa e batina. Muitos o faziam. Isso tinha a ver também com
uma academia talhada à imagem de Coimbra e que obtivera por decreto do ‘Dux
Veteranorum’ da praxe coimbrã, autorização para uma práctica idêntica. Assim
era. Hoje, abencerragem dessa vida estudantil, sobrevive o Reino de Maconge,
com a sua gerôntica mas sempre moça aristocracia, que se vai reünindo aqui e
ali em sessões cada vez menos avinhadas.
O jovem bonjoanense sentia-se bem. Chegava-lhe alguma
atenção nas aulas para levar a carta a Garcia. Tinha todo o tempo para brincar.
Explorava a imensa área do internato. Ia comendo goiabas verdes pelo caminho;
de parceria com mais dois ou três, ‘era dono’ de um mirangoleiro escondido numa
espécie de pequena gruta onde se deleitavam a comer os mirangolos mais maduros,
por vezes pagando o tributo ensanguentado cobrado pelos espinhos de protecção
da planta; iam aos pássaros de chifuta (fisga) em punho, eram o terror das
tchiriqüatas. No regresso às camaratas havia que ter-se cuidado, não lhes fosse
aparecer ao caminho a Nina (Dona Virgínia, mulher do Director do Internato, Dr.
Carlos Sotto-Mayor Negrão) que os podia vergastar com a sua vara de marmeleiro.
Chegou Dezembro. Saíram as notas finais e o nº 23 da turma
‘C’ do 1º ano, passou com boas médias.
Enfiou as roupas, livros e mais pertences, no malão de madeira de
mulemba guardado na cave para o ano seguinte e foi com uma pequena mala apanhar
o combóio para Moçâmedes.
Ficou surpreendido ao encontrar o pai na baixa da
cidade. Supunha-o na Baía dos Tigres, onde era agora Delegado Marítimo. Afinal já não
era. Ia a caminho da Capitania do Lobito, escrivão de novo. Foi um encontro
interessantíssimo, ele também surpreendido pela presença do filho, pensando que
as aulas ainda duravam. Dois velhos amigos que por acaso se encontram e põem a
conversa em dia.
Foram os dois para o campo de aviação. O pai embarcou
primeiro no ‘Dakota’ para o Lobito; o filho pouco depois, no ‘Stinson’,
para a Baía dos Tigres.
Mais um voo atribulado, desta vez por outras razões que
não atmosféricas. É que o ‘Stinson’, pequena avioneta para piloto e mais três,
levava os irmãos Trindade, dois engenheiros muito volumosos; e o de maior capacidade
sentou-se-lhe ao lado no banco mais a ré.
Vestiam ambos de càqui dos pés à cabeça, onde enterravam capacetes, também eles forrados a càqui. As meias altas pareciam grevas enroladas nas canelas. Espremido
contra a fuselagem não conseguiu disfrutar a viagem.
Pousaram na pista da Baía
dos Tigres que era em simultâneo a rua principal. Trezentos metros de cimento
sobre a areia, areia de praia, a única que havia na imensa península.
A Oeste e
a pouca distância da pista, uns quantos edifícios, todos da mesma traça:
Hospital, Escola, Correios, Delegação Marítima, etc. Não foi difícil saber para
onde ir.
E já em casa ouviu com espanto o que a mãe lhe contou. Saído do avião
e caminhando pela pista de malinha na mão em direcção a mais uma nova e curta morada, fora visto pelo Henrique,
homem quarentão, ali doméstico, que correra para dentro gritando: ‘Senhora,
menino chegou, menino chegou!” Ora, não sendo esperado e pisando pela primeira
vez o pequeno povoado, como é que Henrique o conhecera? Pelo andar, explicou
ele, o andar que era igual ao do patrão. Ficou provada a importância dos genes.
O enorme deserto que rodeava a Baía dos Tigres fazia do local uma prisão
natural. Por isso muitos condenados eram para ali enviados e cumpriam as penas
sem estarem enjaulados. Era o caso do Henrique, condenado por homicídio da
mulher.
Com
excepção das autoridades e dos funcionários públicos – pouca gente – quase
todos viviam da pesca: farinha e óleo de peixe. Sem terra arável e sem água
potável o abastecimento chegava por mar.
O ’28 de Maio’ pequeno navio do Estado, vinha regularmente encher o
depósito de água. Trazia frescos e transportava carga e alguns passageiros.
Foi nele que com a mãe e a irmã seguiu rumo ao Lobito, ao encontro do pai; e da Consoada, a um par de dias de distância.
Na ausência do chefe da família escoltava as mulheres da casa.
Afinal, já tinha onze anos – tinha-os completado dias antes na Baía dos Tigres
– o 1º ano do liceu era vencido, já fumava…
Estava um homem.
Mezena
Escrito para o 'Macua' de Dezembro de 2011
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