A porta três
De Lisboa a Madrid
Empijamado
em flanela grossa, deitado entre lençóis e abafado sob o pêso de uma manta, foi
assim que tentei contrariar a febre e os arrepios. Não me admiraria que o
paludismo, aquele violento primeiro ataque de paludismo que tive em Sá da
Bandeira e se repetiu algumas vezes, estivesse ressuscitando e a dar um arzinho
da sua graça. Não encontrando os amargos comprimidos de quinino, nem as
pastilhas amarelas de ateberina que tomava quando criança, consegui, já não sei
por que portas, arranjar a resoquina com que me auto-mediquei.
A chatice –
grande chatice – era ter já o bilhete para o combóio que nessa noite – 16 de
Maio de 1966 – me levaria a Madrid. Nomeado ao abrigo da OTAN para tirar um
curso de alguns meses, sobre a artilharia e a direcção de tiro que equipariam
as fragatas ‘Pereira da Silva’, devia estar em Torrejon no dia seguinte para
tomar lugar num avião fretado que levaria à América dezenas de militares de
diversas origens e com destinos vários. De mala feita e na posse de um maço de
guias de marcha recebidas no MAAG (Military Assistance Advisory Group) que me
definiam dia a dia, o tempo americano, sentia-me entalado entre cuidar do corpo
e cumprir.
Ganhou o
dever.
Lá me
convenci de que estava a melhorar, ficar bem seria uma questão de tempo, e decidi-me.
Com passos mais vagarosos do que os meus, desci o último terço da Frederico
Ulrich, caminhei até Cacilhas e tomei um barco para Lisboa. Táxi, e segui para
Santa Apolónia.
A
temperatura era amena, mas no imenso espaço da estação, por todo o lado senti
correntes de ar de mau aügúrio. Assim que pude meti-me no combóio.
Aninhei-me no
banco do compartimento e partimos era quase meia-noite. Não preguei ôlho, agitado.
Comprimidos anti-qualquer-coisa foram quatro; e ainda um supositório. Não tinha
chegado o dia, quando fui acordado, sem grande delicadeza, por um funcionário
da fronteira que queria ver-me o passaporte e carimbar a entrada em Espanha.
A previsão
de melhoria falhou. A febre tinha aumentado e sentia-me mais frágil.
Chegado o
combóio eram dez horas, tinha à espera um tipo do Consulado, cabo amanuense – o
adido naval estava no mar. Meteu-me num automóvel e partimos em busca de hotel.
Ao fim de duas horas de insucessos – com as festas de Santo Isidro em pleno,
estava tudo cheio – lá consegui um quarto numa pensão algo manhosa na Gran-Via.
O quarto era amplo e tinha uma cama metálica de cabeceira linda. Coisa antiga.
Nunca tinha visto, nem voltei a ver, parecido sequer. Dois grandes círculos
marcando as posições de um casal e por detrás, ao meio, um terceiro anel maior,
fazendo o alçado, os três decorados com aplicações lavradas em relêvo, no mesmo
metal brilhante. Gostei tanto que me fotografei ali deitado.
Em plena
Gran-Via , não me foi difícil encontrar uma farmácia. Diálogo breve, usando o
espanhol de trazer por casa que sabia e consegui uma embalagem de Optalidon, a
única coisa disponível que me pareceu servir a situação. Nem li a bula. ‘Mamei’
quatro drageias, bebi bastante água e fui-me à vida, quero dizer, acrescentei-me
à enorme quantidade de gente a circular nos passeios e fiz-me turista. E não é
que o tratamento de choque resultou?! Num par de horas estava mais solto e
enérgico.
Caminhei,
caminhei, cirandei pela baixa da cidade, não andei menos de dez quilómetros,
mas foi de táxi que voltei à pensão. Jantei e decidi ir a um cinema. Vinte
escudos, caro, comparado com Lisboa. Não aguentei mais do que um quarto de hora.
Conhecia os actores, conhecia-lhes as vozes… ouvi-los em espanhol com o
diferente timbre de quem os dobrava, foi demais.
Voltei à
pensão, ainda descansei um pouco e após um banho paguei a conta e segui para
Torrejon. Dei com um cabo pouco esclarecido que me fez percorrer mais uma
lonjura até encontrar alguém que me orientasse. Fiquei a saber que devia viajar
fardado. Embora já desligado da pensão, voltei ali para pedir que me passassem
a ferro a farda branca. Faltavam os sapatos de camurça. Já velhos e cambados,
não os tinha trazido e pensava comprar um novo par numa cantina naval na
América, onde os sabia bons e mais baratos. E quem é que encontra, em Madrid,
uns sapatos lisos de camurça branca? Não eu. Depois de entrar em muita
sapataria e ver o tempo a escoar-se, aceitei comprar sapatos de pelica. Embora
feiosos e mal acabados, disfarçavam bem. Saí finalmente da pensão, agora de
branco vestido.
De Torrejon a McGuire
Era
meia-noite quando me sentei num mal-amanhado banco de pau, na sala de espera do
aeroporto. Quatro da manhã, era a hora prevista para largada do avião, um
Boeing-707. Voando para Oeste durante sete horas e meia, serão cinco e meia à
chegada. Mais do que o tempo de vôo, as quatro horas que me esperavam naquele
inóspito assento, metiam-me as costas p’ra dentro. Cheguei a deitar-me, mas nem
assim descansei. Desafiando a minha paciência, o tempo usou de todos os vagares
para chegar à hora de embarque.
O avião à
cunha e toda a gente de pé, a enfiar a bagagem por cima das cabeças ou circulando
em busca de mantas e almofadas, tornava ainda mais reduzida a quantidade de ar
respirável. Pobre de quem sofresse de claustrofobia. A coisa complicou-se com
um apagão de energia, por sorte de breves minutos. Descolámos, por fim. Sempre
tive dificuldade em dormir em viagem. Pensei que de tão estafado, dormiria
afinal. Engano. À beira de o conseguir, apareceu-me a hospedeira a perguntar se
queria matabicho. Apetite nunca me faltou; e a comida de avião, com as suas
peculiares ementas sempre me foi agradável. Sei que há quem deteste… paciência!
Deve ter sido a digestão que me levou ao sono, mas, por não mais de uma hora.
Acordei estremunhado, mal-disposto, enxovalhado, sujo, incomodado com a barba
que parecia só agora ter crescido, a bôca amarga de tanto cigarro fumado,
enfim, um frangalho.
O nosso
destino era a base aérea de McGuire em New Jersey, onde não pudemos pousar por
causa do forte nevoeiro que lá caíra. Aterrámos no John F. Kennedy, em Long
Island, pertinho de Nova Iorque. Estivemos de castigo mais duas longas horas a respirar
o ar cada vez mais pobre do avião. Aliviados, recebemos ordem de soltura e
voámos para McGuire, onde pousámos eram dez horas.
Em McGuire
O alívio foi
breve.
Depois de um
médico ter ido a bordo, examinar os certificados de vacinação e confirmar que todos
tínhamos cumprido as regras, pisámos, afinal, terra firme. Uma praça de saias
da Força Aérea, recebeu-nos com considerações àcerca do que fazer de seguida.
Pouco percebi da sua fanhosa pronúncia e desliguei. Desenrasquei-me.
Mas a minha curiosa atracção por peripécias, continuava a manifestar-se. A etapa seguinte
foi a verificação das bagagens. Um tipo de nariz empinado e aspecto idiota,
fez-me abrir a mala. Peça a peça, levantei quanto ali tinha. Depois de tudo ter
visto, perguntou-me de onde vinha.
- De Portugal?... Então traz maçãs!
Que não
trazia, como êle tinha visto, nem sabia que fôssem tão famosas as maçãs
portuguesas. Fez então um gesto para que fechasse a mala, mas arrependeu-se
logo. Mandou abrir de novo:
- Veio de Portugal? E não traz vinho
do Porto? Deixe-me lá ver.
Voltei a mostrar-lhe
cada escaninho da mala. Meio convencido, deixou-me passar. Ou gozara comigo –
praxe a mancebo – ou não tinha apenas aspecto de idiota… era-o em pleno.
Fora do
terminal do aeroporto, numa base aérea do tamanho de Almada, ainda sem
conhecimento do desenho comum das unidades militares americanas e sem apoio à
vista, vi-me só, em busca do passo seguinte, que surgiu, no clássico cilindro
rotativo vermelho e azul que identifica as barbearias. Um negro, grande e gordo,
apertou-me ao pescoço a capa protectora e com uma máquina eléctrica, desatou a
cortar cabêlo como quem apara rente, a relva de um jardim. Um autêntico e
rigoroso corte à magala. Olhei-me ao espelho e senti-me quase nu. Quando pedi
que me cortasse a barba, mais uma surpresa: não podia, porque não tinha pincel. Singular barbeiro, sem pincel de barbear… Também não tinha escôva, mas com grande
ênfase de gestos, empunhou um barulhento aspirador que engoliu os restos da
tosquia. Não todos, que alguns sujaram ainda mais a farda, branca apenas por
alcunha.
Amarrotado e
sujo, de roupa como de corpo, que clamava por um banho, prossegui caminho, em
busca de poiso, onde pudesse por fim descansar.
Antes,
porém, quis reportar a minha chegada. Obrigado a viajar fardado, entendi dever
fazê-lo junto de uma entidade militar. Errado. Não encontrei quem. Mas a
senhora civil que vi por detrás de um balcão, a quem entreguei um exemplar da
tão policopiada guia de marcha, deu-me de imediato um papel que ordenava a
minha ida para Newport, no dia 20. Com mais uma guia, o sujeito ao lado
passou-me um bilhete de avião para Providence para o mesmo dia. Aquela guia
tinha efeitos mágicos.
Já mais
instruído, tomei um autocarro militar da base, em busca de uma messe. Não
tardei a encontrá-la: o Bachelor Officer Quarters (BOQ) – Instalações para
Oficiais Solteiros. Tive um quarto que mais parecia a suite de um bom hotel. Exaustivo na minúcia com que dava notícias
para casa, chegando decerto à chateza, dei-me à pachôrra de desenhar o esquema
da minha opulência.
Abluções
feitas, depois de um interminável e ensaboadíssimo duche, mergulhei no sono por
nove horas. Quase dez da noite quando acordei, como não comia desde de manhã no
avião, estava faminto e saí por um restaurante. Voltei ao terminal do
aeroporto, onde vira um self-service.
Reduziu-se-me consideràvelmente a quantidade de dólares. Voltei p’rá cama e
repousei deveras.
A cem
quilómetros de Nova Iorque, não tinha jeito que não fôsse conhecer a famosa e imensa
metrópole. Tomei um autocarro que parou
numa estação terminal que conseguia na dimensão da altura a capacidade para
receber camionetas de duzentos percursos. Uma Babilónia moderna com numerosos
patamares ligados por ladeiras, escadas e tapetes rolantes. Saí e desemboquei
na Rua 41. Precisava de um dicionário, a primeira etapa foi a ida a uma
livraria. Bem quis, mas não consegui falar inglês – fui atendido por um
espanhol que aviava um brasileiro. Não tinham o que queria. Continuei e acabei
por comprar um pequeno dicionário de bôlso muito útil durante o curso. Ainda o
tenho e consulto. Caminhei muito, cruzei três ou quatro avenidas, detive-me na 5.ª
onde espiolhei umas quantas montras mais chamativas. Subi ao Empire State –
obrigatório – encaminhei-me para a Broadway, mas já chateado, inverti o rumo.
Achei a cidade escura, muito porca, mal-cheirosa, o ar sujo dos escapes dos
automóveis. Não encontrei as beleza e elegância exportadas por Hollywood. Ao
invés, só mulheres balôfas ou escanzeladas com pinturas esquisitas e pouco mais.
Uma desilusão.
Recolhi já
tarde ao meu vasto aposento e dormi ferrado. Acordei a tempo de arrastar as
malas e ir pagar a conta a umas centenas de metros de distância. Pedi um táxi
que não chegou, mas consegui em duas camionetas pôr-me no aeroporto de Newark às
sete da manhã.
Em Newark
Um nevoeiro
muito espêsso, impedia qualquer vôo. Que voltasse às 0945. Entretive-me a
apreciar o mundo de lojas com montras muito bem armadas à cobiça dos viajantes.
Para gastar mais uns minutos, sentei-me frente a um engraxador. Engraxava muito
mal, mas cobrou-me a impensável quantia de sete dólares, isto é, duzentos
escudos. Não tugi nem mugi.
Fui ao
balcão, fiz o check-in e recebi o
cartão de embarque:
- Gate three!
Aliviado da
mala, apenas uma pequena pasta na mão e uns minutos pela frente, resolvi
embarcar. Fui em busca da porta três. Devo ter visto mal: porta um, porta dois…
porta quatro… Voltei atrás: o mesmo resultado. Olhei para o relógio: cinco
minutos para o avião, comecei a ficar preocupado. Pedi ajuda a uma hospedeira
com que me cruzei. Veio em meu auxílio, mas, tal como eu, não fez mais do que
constatar a ausência da porta três. Mais uma busca infrutífera e… está na hora
do vôo.
Na minha
cabeça vai um destrambêlho. Que fazer?
Os pertences,
a bordo de um avião a caminho de Providence. É sexta-feira, 20 de Maio e o
curso começa segunda, em Newport. Estou sòzinho em terra estranha, com pouco
dinheiro no bôlso, idealizando já a dificuldade em explicar-me, seja ao Adido
Naval, seja ao Cônsul ou à Marinha. Tenho a noção de que fiz tudo bem, mas o
resultado é um rotundo não. Será que sou um incapaz que nem consegue apanhar um
avião a horas? Será que sou um incapaz?
É então que
ainda mais uma vez a minha boa-estrêla se manifesta: à minha frente escancára-se
uma porta daquelas que só abrem da pista. Ao longe, integrando uma imensa bicha
de aviões avançando vagarosamente na pista de rolagem, aguardando a sua vez de
descolar – o que em Newark acontecia à razão de uma por minuto – vejo na
fuselagem de um deles o nome da companhia de que tinha o cartão de embarque –
Allegheny.
Nem sequer
me ocorreu, a hipótese de que não fôsse aquele o ‘meu’ avião. Esquecida
qualquer interferência da razão, a acção tomou lugar. Saltei para a porta por
cima de um murête que se interpunha, evitei um encontrão no homem que a
segurava e desatei a correr – talvez conseguisse ainda os onze segundos e dois
aos cem metros – segui a resultante do cinemático instantâneo que fiz mentalmente
e depressa estava ao lado do nariz do avião, acenando para cima ao piloto, mão
aberta, em sinal universal de paragem. Acompanhei a rolagem por alguns metros e
o avião, um Convair, parou, fazendo parar todos os que se lhe seguiam. Aberta a
porta avante a bombordo, foi desentranhada e desceu, a escada que sob ela
embutida lhe dá acesso. Ofegante da corrida subi devagar, agarrado a um
corrimão.
Nem o mais
pontual passageiro mereceria tão insinuante olhar e a alegria do sorriso com
que a hospedeira me recebeu ao portaló. Como tampouco mereceria a visão de duas
pontudas maminhas que se adivinhavam, apertadas na blusa muito justa. Pasmo,
como tive tempo e olhos para ver tudo isto, enquanto a moça conferia o cartão
de embarque e confirmava ser eu o passageiro que faltara à contagem.
Mundo de
brandos costumes aquele, em que se irrompia desenfreado pela pista de um aeroporto
pejado de aviões, sem ser travado, beliscado, segurado, agredido. Imagine-se o
que teria sucedido hoje, com as medidas de segurança a que o advento do
terrorismo obrigou. É bem provável que não pudesse aqui dar agora êste
testemunho.
- Mas, onde
raio se terá escondido a Porta Três?
José
Guerreiro
Calvaria, 5
de Janeiro de 2018
Gostei muito ler este relato. andanças de um marinheiro em terra. Também tenho algumas peripécias mas talvez não tão coloridas como,esta . Abraço
ResponderEliminarLer estes comentários para mim faz-me relembrar momentos vividos na Mar
ResponderEliminarDigníssimo Comandante ,Abraço
Celestino Pinto Costa
Mais um delicioso escrito do nosso camarada que irá juntar-se aos muitos com que nos tem brindado. Bem-haja e não pare.....continue a escrever!
ResponderEliminarTudo a postos para o segundo?
ResponderEliminarAbraço
Bom ano