Um lampejo sobre Angola
Ala p’ró liceu
Tinha
acabado de fazer dez anos, quando me puseram fora de casa.
Vivíamos no
sul de Angola, em Moçâmedes, onde meu pai era o escrivão da Capitania. Além de duas
escolas primárias havia apenas a Escola de Pesca; e por aí se ficava a formação
possível.
Os anos
lectivo e civil coïncidiam, para que as férias grandes batessem no verão
meridional. Acabei a 4ª classe na Escola 49 e logo de seguida, no início de
Janeiro de 1947 fiz exame de admissão aos liceus na Escola 55.
Naquela
terra imensa, dois liceus chegavam – chegariam? – para os pedidos de matrícula
de gente apostada na valorização académica de mais sete anos de estudo: em
Luanda, o ‘Salvador Correia’ e em Sá da Bandeira, o ‘Diogo Cão’.
Foi fácil
escolher este último, que além de estar quatro vezes mais perto de casa
dispunha de um belíssimo internato para cento e vinte rapazes.
Vejo com
estranheza o desgosto dos moços que se desesperam com o segundo corte do cordão
umbilical e o isolamento, independência e responsabilização a que ficam
sujeitos em circunstâncias tais. Não fui assim. Aliás, comecei logo por viver
feliz o tempo de preparação da viagem, com atenta participação activa nas
diligências necessárias: ele foi o malão em mulemba, feito pelo senhor Piedade,
ele foi o enxoval, que incluiu roupas de lã contra o frio do planalto da Huíla,
a balalaica de càqui em que fiz muito empenho, por me parecer que viria a
dar-me o ar de gente que via nos homens que as vestiam; ele foram por fim, os
apêlos ao bom comportamento e dedicação aos livros.
Abril de
1947 estava no início, quando no campo de aviação de Moçâmedes me enfiaram no
avião, um biplano bimotor Dragon, para 7 passageiros.
Com o mesmo
destino, viajava o Bauleth, moço já espigadote, a quem minha mãe pediu que
olhasse por mim na viagem. Claro que não me ligou nenhuma. O destino, esse,
estava mil e oitocentos metros mais alto, na cidade capital da Huíla, Sá da
Bandeira, ou Lubango, como ainda lhe chamávamos apesar de ter sido rebaptizada.
Ninguém
chorou, mas acredito que minha mãe tenha engolido lágrimas; e que teria gostado
de me ver mais tristonho pela separação… Valha a verdade, curioso é que eu
estava; e imbuïdo de um incipiente espírito de aventura que me tinha ficado do
aprendizado da história e bebido em leituras infantis como ‘O Mosquito’. Só
mais tarde percebi que tinha perdido o colo materno. Mas mantivemos sempre uma
correspondência epistolar rica, em que se me não entregava por completo, deixava
entrever com verdade, a verdade da minha vida e onde sem lamechices o nosso
amor estava presente.
A segunda
metade da viagem foi acidentada, feita num céu de nuvens escuríssimas, sob
chuva intensa, entre relâmpagos e trovões - uma despedida das águas de Março
realçada com a aproximação às serras da Leba e da Chela. Foi o início da
aventura.
As aulas
começaram a 14 de Abril.
Os rituais
de praxe preencheram grande parte da manhã. Tive sorte porque uma terceiranista
se encantou no meu jeito frontal e sorridente e me deu protecção. Assim,
ninguém me tesourou o cabêlo ou me fez malandrice de vulto. E lá consegui tomar
assento na turma C do 1º ano. Era uma turma de trinta e poucos rapazes e eu
tinha o número 23. Sem grande história, o aproveitamento foi bom e passei à
etapa seguinte. Fiz amigos p’rá vida.
A grande
novidade do 2º ano foi haver meninas na turma A, a que acediam os alunos que
vinham com melhores notas. Esta vizinhança das saias, quando todos chegávamos à
puberdade e íamos sofrendo o ajustamento do corpo à invasão das hormonas, deu
origem a muitos olhares curiosos, comentários segredados e risinhos disfarçados.
Mais entre elas; que os eles, menos ousados, mais tímidos e envergonhados, se
defendiam com poses de macho. Acredito que esta proximidade de géneros durante
o crescimento o tenha tornado mais fácil e harmonioso.
Com uma ou
outra transferência, - pouquíssimas – nos terceiro e quarto anos, voltámos a
ser quase os mesmos. Companheiras desse percurso, foram as irmãs Teresa e
Helena Henriques Guimarães, na fotografia com a Margarida entre elas, durante
uma excursão que fizemos ao Jau em 1950. Recordo ter aqui dançado com a Teresa,
o que não entendo, pois além de ainda não saber dançar, de onde viria a música?
Na imagem de grupo estou ao lado dela, talvez depois da bailação.
Filhas de um
conhecido empresário, Helena e Teresa chegaram ao liceu vindas da União Sul-Africana
onde estudaram, internas num colégio. Passavam-nos um bigode a inglês.
Havia mais
três na irmandade: Chaleca, a primeira, mais à frente nos estudos, e mais
novos, a Niné e um rapaz. Além das três que comigo freqüentaram o liceu não
conheci mais ninguém da família. Nem sequer o patriarca, homem importante no
burgo.
Licença ilimitada
Venâncio
Guimarães tinha a idade do século. Nascido em S. Pedro do Sul, degrau a degrau
chegou à universidade e teve acesso à Escola Naval de onde saíu oficial.
Numa viagem
que fez a Angola, seduzido pelo mar sereno, o calor morno e os arvoredos
floridos, deixou-se enlevar nos encantos de África. Tendo um tio homónimo
radicado no Lubango onde fazia fortuna, decidiu mudar de vida. Era novo, não
passara de tenente, mas conseguiu a passagem à licença ilimitada e foi
juntar-se ao tio.
Durou pouco
tempo o seu contributo para a Venâncio Guimarães & Companhia. Não se
ajustando bem às idèias naturalmente mais velhas do tio, deixou-o e fundou uma
firma concorrente, a Venâncio Guimarães, Sobrinho, que prosperou ràpidamente.
Com quase
tudo por fazer na colónia, era fácil estender-se a novas áreas de exploração e
negócio sem grande risco – o mar não estava longe – a tempo de recuar se não
vingasse. Peixe, farinha, óleo e conservas, congelação, moagem, mas também importação e exportação, máquinas e ferramentas, transportes
rodoviários, comércio geral, tipografia, edição e encadernação, cerveja, foram alguns dos
meios de consolidação do pequeno império do ex-tenente.
Tenente
embora, tratavam-no por comandante, título honorífico que ganhou com a sua
crescente implantação na sociedade chicoronha.
Viajei um
par de vezes em camionetas da carreira Venâncio entre Sá da Bandeira e Benguela,
quando o couto de férias mudou para o Lobito, onde meu pai passou a servir.
Também o fiz em camionetas da concorrência. Conservo um documento que após
quase setenta anos tem importância que bonde para ser mostrado. Trata-se de uma
guia de remessa do atrás citado malão, pesado demais para me acompanhar num dos
Dakotas entretanto chegados à DTA – Divisão de Exploração dos Tranportes Aéreos
de Angola – para substituir os Dragon.
A camioneta
da carreira da SIL que fez este transporte, era habitualmente conduzida por
Romero Miranda, um bacano com manhas de caçador que se fazia acompanhar de uma
velha carabina 22 longo, para o que desse e viesse. Tratei sempre de viajar
perto dele para lhe ouvir mirabolantes histórias de caça.
Terceira Rèpública
A maioria
dos brancos em Angola tinha ali investido a vida. Muita gente vendera no ‘puto’
as courelas avoengas para aumentar o património na ‘nossa África’. Atemorizados,
empurrados de roldão para as fronteiras, uns quantos anos encaixotados à pressa
nas traseiras do quintal – no pregar as tampas, dalguns caixotes se ouviam
queixumes, tal o aperto das gerações que lá tiveram de caber – saíram, como
puderam, em direcção a muitos mundos.
Dezenas de
barcos fugiram de Angola pela calada. Entre eles uma embarcação de pesca de
Venâncio Guimarães que acabou por demandar Olhão, onde ao tempo era eu o
Capitão do Porto.
Peregrinos
do Verão algarvio visitaram-me muito em quatro anos na cidade cubista; e
algumas amizades do período angolano não faltaram. Do Abel Lara, companheiro de
internato, finalista do liceu quando eu começava e de quem não sabia desde
então, recebi apenas um telefonema.
O Abel,
ingénüo responsável pelo fumador temporão que fui e padrinho da alcunha –
‘Varela’ – que ainda hoje me identifica quando regresso à juventude, casado com
a Teresa, queria falar-me do barco que o sogro pusera à venda, saber da
documentação necessária e de outras eventuais implicações do acto. Na verdade,
procurava uma asa que o protegesse de qualquer empecilho burocrático.
Quando os
papéis foram entregues, não havia desconformidades – ainda bem – e
a embarcação foi transacionada.
Os livros
Dias passados,
de surpresa, Venâncio Guimarães fez-se presente ao balcão da Capitania e pediu
que o recebesse. Fui buscá-lo à entrada e conduzi-o ao meu gabinete.
Apresentámo-nos, não regateámos comandâncias e mantivemos uma cordial e
tranqüila conversa por mais de uma hora. Afinal, um ror de tempo depois
conhecia o pai das minhas amigas.
Queria
agradecer-me a agilização do processo, a brevidade da burocracia… Lá lhe disse
que não havia de quê, o pessoal agira como sempre, pela cartilha; e todo o
mérito assentava no acêrto da documentação.
Ultrapassados
os galhardetes, passámos à parte interessante do diálogo. Falámos de Angola, da
família também, mas detivemo-nos mais na então ainda nova rèpública.
Curioso de
saber como vivia e sobrevivia um homem velho – estava com oitenta anos – ao
esbulho da riqueza acumulada, reduzido a uma inactividade de todo nova, à perda
do estatuto além conquistado e à agressividade da recepção reservada aos
perigosos colonialistas, foi esta a resposta:
- Sim, valia mais de um milhão de
contos o que por lá me ficou. Muito dinheiro, mas apenas isso, dinheiro. Os
bancos conhecem-me… emprestaram-me vinte mil contos, dediquei-me à suinicultura
em Rio Maior e já sou um dos maiores produtores de porcos do país. Agora há uma
coisa que não consigo esquecer:
- Não me deixaram trazer os meus
livros. Isso, não lhes perdôo!
José
Guerreiro
CLV, 16 de
Abril de 2016