Ordem do Jàgudí Emboscado
- com O contra-torpedeiro
‘VOuGA’ na Guiné em 1964 -
Advertência
A cinqüenta
anos de distância, ler este escrito e olhar as imagens que ilustram o último
terço da comissão, poderá conduzir a um juízo apressado em desfavor do punhado
de militares que o povoam, em tudo semelhantes aos que enchiam os três palcos
de representação de guerra no além-mar.
Trata-se de
uma geração jurada para sacrificar a vida ao Império, sob uma direcção política
que fazia dessa jura o alfa e o ómega da sua estratégia guerreira.
Os excessos com
que alguns enchiam o tempo de ócio era nada mais que a humana reacção aos
medos, à lonjura e à incerteza do porvir. Fala-se aqui de gente que não deu as
costas e com maior ou menor querer desempenhou a contento o papel que lhe
coube. Assim exposta, humaniza-se.
Se a senhora
da gadanha os encontrasse, teriam vivido vida bastante para saber encará-la e conseguir
pelo menos ‘sorrir-lhe com meia-cara’.
Em vez da
pressa de um julgamento, usai de contenção. No mínimo… hesitai.
Sêde
benevolentes.
À guisa de prefácio
Os rios têm
sido muito usados para apadrinhar embarcações. Entende-se a escolha, ao pensar
em quantos embarcadiços é nos seus leitos que ganham sustento e para quantos
outros o regresso do mar só começa na verdade depois de lhes cruzar a foz. É a
visão familiar das margens que lhes amacia o espírito e dêsse percurso fluvial
de aproximação a casa lhes virá coragem para sair de novo.
Menos bem se
percebe a eleição dos mesmos rios para chamamento de cães, uso muito em moda há
anos atrás.
- Tejo! Vem ao dono – ouvia-se.
Grande
número de navios da Armada tem tido nomes de rios. É o caso dos
contra-torpedeiros, que não conheceram outros.
Contra-torpedeiros
“Tejo”
O
reequipamento da Marinha Portuguesa no reinado de D. Carlos, incluiu a
construção, começada em 1901 no Arsenal de Marinha, de um contra-torpedeiro, o
‘Tejo’, de letra de amura ‘T’. Entrou ao serviço em 1904. Inicialmente previsto
como ‘canhoneira-torpedeira’, a experiência aconselhou a sua total conversão em
contra-torpedeiro, o que se fez entre 1915 e 1917. Foi abatido em 1927.
“Liz”
Construído em
1914 em Génova por uma Itália neutral e destinado à Grã-Bretanha, envolvida na
1ª Grande Guerra, pertenceu durante cinco meses à Armada de Portugal, que ainda
neutro no conflito mas aliado militar do Reino Unido, serviu de intermediário e
o entregou em Sesimbra a 31 de Maio de 1915. Não tendo sido apropositadamente
nosso, foi o primeiro navio a nafta que tivemos.
Classe “Douro”
Identificados
mais uma vez por letras de amura, foram quatro os contra-torpedeiros desta
classe, construídos no Arsenal de Marinha em Lisboa, tal como fôra o ‘Tejo’:
‘Douro’, ‘D’ em 1913
‘Guadiana’, ‘G’ em 1915
‘Vouga’, ‘V’ em 1920
‘Tâmega’, ‘TA’ em 1924
Navios de 73
metros e 670 toneladas, com três turbinas a vapor e três veios, conseguiam,
calcule-se, 27 nós. Tinham uma peça de 100, duas de 76 e dois tubos
lança-torpedos de 450 mm.
Fotografia do lançamento à água do’
Vouga’ em 3 de Maio de 1920
O aspecto
geral final dos navios da classe ‘Douro’ era assim:
Silhueta do ‘Tâmega’, a mesma de
todos os contra-torpedeiros da classe Douro
O ‘Vouga’ na Revolta da Madeira
Entre
algumas medidas tomadas para combater os efeitos da Depressão de 1929, o
Governo de Salazar, que acumulava a pasta das Finanças, assumiu no início de
1931 o contrôlo da importação de cereais. Comprando-se menos farinha aumentou o
preço do pão, o que na Madeira, onde se tinham agudizado crise económica e desemprêgo,
foi a gôta que levou o povo a assaltar moagens, a tumultos e a greves. O
descontentamento assim nascido foi aproveitado por parte de alguns dos
militares recém-chegados do Continente para conterem os desmandos e que ao
invés intentaram um levantamento contra o regime, a Revolta da Madeira, que pretendiam
alastrasse a toda a Macaronésia Lusa. Chegou de facto a algumas ilhas dos
Açores e à Guiné. Cabo Verde não aderiu e não teve expressão em S. Tomé. No
Continente nem sequer eclodiu.
Com a Armada
reduzida a quase nada deixada pela 1ª Rèpública, Lisboa estava em dificuldade
para contrariar a revolta. É então que vem ao de cima a nossa tão apregoada
eficiência no desenrascar. Em cêrca de duas semanas, o Comandante Magalhães
Corrêa, Ministro da Marinha, requisita navios mercantes, alguns de pesca, que junta
a uns quantos navios de guerra mais capazes, organiza uma força – alcunhada
satìricamente de ‘Esquadra do Bacalhau’ por integrar embarcações de protecção à
frota bacalhoeira – força que ele próprio comanda; e a 24 de Abril de 1931
larga de Lisboa rumo à Madeira. Após alguns bombardeamentos e o desembarque de
soldados em Machico, a 2 de Maio os revoltosos desistem.
Da força
vencedora fazia parte o contra-torpedeiro ‘Vouga’. E na sua guarnição figurava
um jovem 2º sargento artilheiro que anos mais tarde viria a ser meu pai, de
cuja Folha de Assentamentos tirei a imagem abaixo:
Pode ver-se
que no dia 6 de Maio de 1931 deixou o ‘Vouga’ para o paquete ‘Pedro Gomes’ - um
destacamento curioso.
Navio de
construção holandesa de 1899, comprado em 1922 pela Empresa Nacional de Navegação,
percursora da conhecida companhia que viria a ter o mesmo nome, o ‘Pedro
Gomes’, ex-‘Sindoro’, fôra requisitado como transporte de tropas. Na madrugada
de 30 de Abril no decurso de uma manobra, ao largo da Calheta, ‘Pedro Gomes’ e
‘Vouga’ colidiram. Do abalroamento resultou ter o ‘Vouga’ ficado à deriva, com
água aberta. Não obstante a tentativa de reboque feita pelo mercante, o
contra-torpedeiro afundou-se, não sem que antes a guarnição tenha sido salva. Segundo
Rui Carita, da Universidade da Madeira, o navio jaz a 300 metros de
profundidade no Mar da Travessa – perto da Ponta de São Lourenço. Interessante
é saber que a Madeira reïnvindica a propriedade dos restos afundados do
‘Vouga’, porque Lisboa lhe cobrou durante anos os custos quer da expedição quer
da perda do navio.
Imagem do ‘Pedro Gomes’
Classe ‘Vouga’
Fazia parte
do Plano Naval de 1930, para contrariar o ‘zero naval’ que quase chegou a ser o
panorama da Armada Portuguesa, a construção de contra-torpedeiros. Construíram-se
sete.
Adaptados à
nossa circunstância, estes navios foram concebidos sobre um projecto dos
Estaleiros Yarrow que construíram dois deles, o ‘Vouga’ e o ‘Lima’. Os
restantes cinco, entre construção e montagem, foram feitos em Lisboa, nos
estaleiros da Administração Geral do Porto de Lisboa então concedidos à
Sociedade de Construções e Reparações Navais (SCNL).
Foi como
segue, o calendário de construção dos contra-torpedeiros da classe ‘Vouga’,
inicialmente identificados por letras como era uso:
1931…….1933 ‘Vouga’ Yarrow. Escócia
1931…….1933 ‘Lima’ Yarrow. Escócia
1932…….1933 ‘Tejo’
I SCNL - 1934, vendido à Colômbia
(‘Caldas’)
1932…….1933 ‘Douro’
I SCNL - 1934, vendido à Colômbia
(‘Antioquia’)
1934…….1936 ‘Dão’ SCNL
1935…….1937 ‘Tejo’
II SCNL
1935…….1937 ‘Douro’
II SCNL
Recém-promovido
a capitão-de-mar-e-guerra – Julho de 1931 – Pereira da Silva foi nomeado para
chefiar a missão naval de fiscalização dos navios em construção. Com outros
oficiais e gente do estaleiro, vemo-lo na fotografia acima, já sobre um dos
convèses do ‘Vouga’, de que o assentamento da quilha se verificara em 16 de Outubro
de 1931.
Com um
deslocamento máximo de 1563 toneladas, 98.15 metros de comprimento, 9.5 de bôca
e 5.7 de calado, turbinas a vapor e dois hélices, obtinham uma velocidade
máxima de 36 nós. Foram até hoje os mais velozes navios que tivemos.
A bordo do
‘Tejo’, no meu exame para segundo-tenente, em Janeiro de 1960, navegámos muito
perto desse andamento. Gostei.
Os cinco
navios portugueses da classe sofreram duas modernizações, datadas de 1946 e
1957, no propósito de lhes dar maiores capacidades anti-submarina e anti-aérea.
Na configuração inicial dispunham de 4 peças de 120 milímetros com canos de 40
calibres, 3 peças anti-aéreas de 40 milímetros (pom-pom), 2 tubos quádruplos de
lança-torpedos de 520 milímetros e 2 lançadores de cargas de profundidade.
Colômbia e
Perú, por via de uma disputa fronteiriça, envolveram-se num conflito armado.
Tornou-se urgente para os colombianos aumentar o poder naval, pelo que
recorreram aos Estaleiros Yarrow, entretanto comprometidos com Portugal, que
lhes sugeriram a negociação connosco dos dois navios já em construção em
Lisboa. Foi então, decerto por ajuste entre as três partes que os ‘Tejo’ I e
‘Douro’ I foram vendidos à Colômbia.
Quando há
pouco escrevi no calendário os nomes dos navios, não pude deixar de recordar o
distinto camarada Valente de Araújo - ‘Chitas’ entre nós - que quando as lições
na Escola Naval chegavam a esta parte da matéria, era certo e sabido falar no
contra-torpedão ‘Deiro’, incidente devidamente antecipado – agora ele vai dizer isto - em desalinhada
caligrafia na minha sebenta, herdada (comprada) do Germano e que provocava uma
mal disfarçada galhofa que se prolongava, contagiada pelo riso casquinado e mal
contido do Rebêlo da Silva.
NRP ‘VOUGA’
D 334
Primeira separação
Onze de
Janeiro de dois mil e catorze. Faz cinqüenta anos que partimos.
Os olhos, na
vedeta que rumava à Doca da Marinha. Para trás ficava a mulher, a um mês de
fazer nascer o nosso primeiro filho. Despedida difícil. Ali mesmo, a bòrdo,
ficou decidido que separações futuras teriam os adeuses portas adentro, em
nossa casa. Embora sentisse algum pesar ao ver outros dando abraços que - já ou
ainda - não podia dar, desencontros e reencontros não mais tiveram expressão
fora da intimidade.
No ‘Vouga’,
frente à baixa lisboeta, a meio do Tejo amarrado a uma bóia do Quadro dos
Navios de Guerra - anos e anos uma espécie de couto privado dos
contra-torpedeiros e poucos mais - apitou finalmente à fàina. Manobra por vezes
complicada, desta vez o rio estava manso, o pessoal do escalér teve bom
desempenho e não foi difícil desamarrar. Depois, até às quatro da tarde,
andámos às voltas no Mar da Palha para compensação e regulação das agulhas
magnéticas.
Companheiros de camarote
Afora os
chefes de serviço que por terem funções muito diferenciadas têm alojamento
específico, os outros escolherão os camarotes e os beliches por ordem de
antigüidade. Deve ter sido assim connosco mas não me lembro. Sei que dividi o
camarote mais a ré, a bombordo, com o Oliveira Bento – o Bento Charanga, do
‘LA’. Ainda que a charanguia também dê estatuto, é bom dizer que entrou na
Escola Naval como charanga mas acabou o curso em sota-penico. Escolhi o beliche
de cima por ter acesso a uma vigia.
Os beliches
de desenho muito antigo, eram em boa madeira polida e latão; e tinham uma
guarda rebatível de protecção contra o balanço. A fotografia mostra uma que foi
mesmo pertença do Vouga e me foi oferecida pelo Bandeira. Tenho-a fixada numa
parede soi-disant naval. A
pequeníssima mesinha articulada, embebida na guarda - que cheguei a utilizar – tinha
serventia se alguma maleita recomendasse cama.
As amizades
cimentadas ao longo dos nove meses da comissão vingaram. Tendo-nos mutüamente
aturado esse tempo no mesmo camarote a aproximação ao Bento, que vi entrar na
EN em Dezembro de 1958, foi fácil. Algumas afinidades particulares encontradas
depois tornaram-nos mais chegados.
Já muito
preso ao meu espaço familiar de confôrto e ele sempre andarilho, visita-me amiúde
e nunca nos falta assunto. Quando me decidi por escrever isto, pedi-lhe os
diapositivos que fizera na Guiné. Deixou-me a braços com a digitalização de 464
quadradinhos que somados ao meu próprio acêrvo, tornam difícil ter de escolher.
Vejo-me grego – nuns casos porque são testemunhos importantes vindos quase do
além, noutros pelo apêlo estético que me sensibiliza - entre a tentação e a
recusa de utilizar tudo na ilustração do texto.
De viagem
Mar agitado
até Cabo Verde. No Mindêlo tinha uma missão. Comprar uma máquina fotográfica
moderna que substituísse o velho caixote Zeiss Ikon já com quinze anos de bons
serviços.
Pedi um
empréstimo à Cantina e por rumos dantes muito usados fui dar à Casa do Leão. Comprei
a minha primeira câmara de 35 mm, uma Voigtländer Vitomatic IIa. Destinava-se
ao registo de imagens do filho quase a chegar, pelo que mal tive tempo de a
estrear com meia dúzia de diapositivos, foi para Lisboa na primeira
oportunidade com mais uns quantos produtos Johnson para bébé.
Chegámos a
Bissau a 18 de Janeiro por volta das dez da manhã.
A ordenança
veio de terra com uma novidade: fôra-nos atribuído um código para usar o
Serviço Postal Militar: SPM 0148.
Guerra da Amura
Domingo, 19
de Janeiro. Quatro dias antes começara no Sueste do território a Operação
Tridente com muita gente de Marinha envolvida, como quase sempre na Guiné, toda
ela água. Em Bissau tudo parecia calmo e só o elevado número de uniformes
militares prenunciava o conflito armado. Entretanto o conhecimento de uma
operação militar de vulto a decorrer, pusera alguma tensão no ar. Com o navio
fundeado no Geba, pouquíssima gente da guarnição pisara terra. Para fugir ao
calor que a despeito das ventoïnhas aquecia a Câmara de Oficiais, assim que
acabou o jantar subimos à tolda onde o Comandante se nos juntou e o Formiga
serviu o café. Recuperámos alguma da frescura que o banho vespertino dera e
chalaceando e beberricando, sentíamo-nos ali bem.
A perturbar
o silêncio envolvente, de súbito, o estralejar dos tiros de uma arma ligeira. E
logo a seguir, agitando o ar com violência o som mais cavo e pesadão de
armamento grôsso, fazendo sibilar projécteis sôbre nós.
Para ser
fiel a mim próprio, para pôr em palavras o que vi, fiz, registei e arquivei,
tenho de recorrer aos bonecos animados da minha juventude, bem desenhados, nada
agressivos, sem bicos nem arestas; e cuja acção fazia soltar gargalhadas a cada
peripécia. Neles acontecia com freqüência ter alguém de esgueirar-se
sorrateiro, em bicos de pés, qual bailarina em pontas, de asas encolhidas, por
detrás de um perseguidor atarantado que só tarde via o fugido.
Foi a figura
que fizemos ao perceber a trajectória dos tiros. De ponto em branco - calça e
camisa do uniforme - pé ante pé, pisando leve não fosse o vizinho de baixo
acordar, pires e chávena nas mãos, tão devagar quanto a ‘valentia’ deixava, com
um olho em terra e outro nas costas (no escudo da peça de 120 de ré) lá fomos
rodeando o reparo e reencontrámo-nos a estibordo, a sota-tiros, olhando agora o
Ilhéu dos Pássaros que não mais voltou a dar-nos tão idílica visão.
Que
acontecera?
Domingo,
movimento quase nulo na ponte-cais, um fuzileiro da companhia número dois
estacionada em Bissau fazendo guarda, G3 pendurada num ombro, transceptor no
outro. Na esgalha, um jipe do Exército entra na ponte e o condutor faz dela a
sua sonhada pista de corrida e gasta-a toda. Não trava, não abranda e espeta-se
no Geba. O fuzileiro quer avisar a Companhia, mas ou o equipamento falha ou
ninguém o atende. Plano B: uns tiros para o ar com a G3 serão decerto ouvidos.
Só que o foram igualmente na Fortaleza de São José da Amura,
que no acto
começou a despejar metralha na direcção do som que ouvira. Por um bom par de
minutos.
Comentário recente
de Encarnação Gomes – ciência colhida muito depois em conversa com o Comandante
Vasco Rodrigues – deu-me a conhecer que ao saber da agitação que ia por Bissau,
o então Governador fez sair a Banda do Exército para dar um ar festivo às ruas
e reduzir o ímpeto guerreiro da turba que terminado o tiroteio clamava por
acção.
Julgo que
não foram encontrados nem militar nem jipe. Álcool, acidente, süicídio?
Desconheço o que se tenha apurado.
Demorou
algum tempo até que regressassem a bòrdo os dois elementos que tinham saído: o
médico e o Sargento Sinaleiro Silva. Contaram-nos do pandemónio que foi por
Bissau. Quem tinha arma tratava de exibi-la. Houve muito quem dèsse tiros sem
saber para onde. Nos cafés, os clientes entricheiraram-se debaixo das mesas,
partiram móveis e fizeram disparos.
Com
estranheza e por grande bambúrrio, o saldo desta Guerra da Amura, apresentou
apenas uma vítima: o corredor de jipes.
Devemos
todos ter pensado:
- Onde raio me vim meter?
Eu pensei.
Mas só seis meses mais tarde vim a perceber.
Navio Hidrográfico ‘Pedro Nunes’
Na
quarta-feira, 22, a convite de Busttorff Guerra que tinha sido meu imediato na
‘Diogo Gomes’, almocei no ‘Pedro Nunes’,
onde os
convidados continuavam a ser recebidos como princípes. Claro que acompanhei o
agora Comandante e rematei o lauto banquete com a costumeira, indispensável e
fresquíssima aguardente de pêra.
O ´Balocas’
Eduardo
Pité, meu amigo e condiscípulo na escola primária do Bom João, tinha um irmão
mais novo. Os três anos que nos separavam dele bastavam para que nos
sentíssemos autorizados a falar-lhe por cima da burra e fazer dele gato-sapato.
Mesmo assim alinhava muito bem connosco. Era o João Manuel, tratado em casa e num
pequeno círculo de miúdos em volta, por ‘Balocas’.
Pois no dia
23, o ‘Balocas’, alferes piloto aviador Santos Pité foi abatido na Ilha do Como
quando ajudava uns quantos cá em baixo, na bolanha do Brandão. Disse-se ter
sido atingido mortalmente em vôo.
Bandim, Cais da Sacor
25 de
Janeiro. Fomos reabastecer.
O Vouga na Operação Tridente
Nove dias
depois de ter chegado à Guiné, já o Vouga fundeava nos Baixos do Tombali,
pagando tributo à operação com uma agüada de dois litros por homem por dia , às
ordens do Comandante-Chefe, Brigadeiro Louro de Sousa. Este, embarcado na Nuno
Tristão, fundeada perto de nós,
tinha à
disposição um helicóptero pousado numa plataforma de madeira, montada na pôpa
da fragata.
Helicóptero
que numa noite ociosa, o brigadeiro disponibilizou para me levar à mesa de bridge onde faltava um parceiro. Sem
processo para ser içado do Vouga, usei o escalèr a motor. Não devo ter sido
grande aquisição p’rá mesa - andava ainda na infância da arte.
Conhecia de
longe Comandante e Imediato; e fui encontrar caras familiares como o Costa
Correia, o Martins Guerreiro e o Aires Domingues.
Foi nesta nossa
primeira entrada, numa Operação Tridente com duas semanas de acção intensa que no dia 30 de Janeiro, foi ordenado a um destacamento de fuzileiros especiais, o DFE8, uma incursão profunda
na mata densa da Ilha do Como.
Não se limitava ao combate a actividade dos fuzileiros no terreno. Exerciam também acção psicológica, na tentativa de aliciar as populações para o nosso lado. Exemplo disso são os prospectos em crioulo e em português das imagens abaixo:
Não se limitava ao combate a actividade dos fuzileiros no terreno. Exerciam também acção psicológica, na tentativa de aliciar as populações para o nosso lado. Exemplo disso são os prospectos em crioulo e em português das imagens abaixo:
Ou estoutros
que ao tempo foram copiados com a fidelidade possível, no que toca à ortografia
como à disposição gráfica:
No sentido
de diminuir o moral do inimigo e amedrontá-lo antes do desembarque do DFE8,
foi-nos cometida a tarefa de flagelar a área escolhida para acção do
destacamento, no propósito de facilitá-la.
Pouco depois
de acabado o ano de Aperfeiçoamento em Artilharia Naval fui movimentado para o
‘Vouga’, já ‘consignado’ à Guiné. Deparava-se-me agora ocasião para pôr em
prática os guerreiros saberes adquiridos.
Sendo
relativamente grande a área a flagelar e por isso dispensável a aleatoriedade
do fôgo, desenhei na carta um polígono, intersecção de uma coroa e de um sector
circulares do mesmo círculo, a uma distância média de dezòito quilómetros e
meio da nossa posição, sobre o qual, em pontos pré-determinados faria cair, um
a um, trezentos projécteis de Alto Explosivo. Assim foi. A ritmo
propositadamente lento. Nos trinta e um anos que o navio levava de vida, não
teria chegado ainda a tal número de tiros. Em verdade, cada munição custava 36
contos de réis. Dez dos meus salários mensais de segundo-tenente.
Para além
das lâmpadas não retiradas, desfeitas em cacos por se terem escondido a uma
prévia vistoria; e da constatação de que o todo metálico do navio era uma mola muito
flexível que reagia prontamente ao estímulo de cada explosão; para além disso,
não cheguei a saber o resultado prático do fôgo, pois quando falei com o
Calvão, disse-me não ter visto ninguém nem tirado conclusões. Não é que ele
seja de natureza loqüaz, mas pareceu-me ter fugido a falar.
De qualquer
modo, o sucesso levou-me aos media:
fui notícia na Rádio Moscovo.
Óleo de linhaça?
Fomos para Caió no dia 7.
A caminho do Rádio-farol de Caió
O radiofarol deixara de emitir. O motor-gèrador que o
alimentava tinha parado. Ao Serviço de Máquinas do Vouga foi dado repôr as
coisas no são. Em vez de óleo de lubrificação foi encontrada uma mistura
parecida com óleo de linhaça, que - do mal o menos - não gripou, bloqueou
apenas o motor. Houve que desmontar todo o equipamento. Não chegou a apurar-se a
verdade da misteriosa ocorrência. Ficou a pairar a pergunta: asneira ou
sabotagem?
O ‘Vouga’ visto do cimo do farol de
Caió
FEV1964, Oliveira Bento e Ramos
Bandeira à entrada do estuário do Geba, no Ilhéu de Pumoune, a SW da Ilha de
Jeta
No Domingo Gordo
aproveitava ser dia de folga para dar vez à preguiça.
Eram oito da
manhã. Acordei atarantado, rodeado por uma turba empoleirada sobre o beliche do
Bento que me batia e gritava:
- Nasceu o Pedro! Nasceu o Pedro!
Passou a
figurar entre as recordações boas que tenho colectado da vida.
Com as
poucas facilidades pasteleiras da cozinha, o pessoal presenteou-me mesmo assim
com um bôlo que de brinde em brinde, de cálice em cálice, foi vàriamente
saboreado:
De volta a
Bissau quis falar p’ra casa. Havia que marcar vez de véspera, tão longa era a
bicha para telefonemas com a Metrópole. Tive sorte e consegui falar logo que
chegámos. Tinha o miúdo três dias, era tal a vontade de confirmar que existia
que pedi à mãe que o beliscasse. Fiquei deslaïado ao ouvir-lhe a chorada
queixa.
Ah! Guiné!
Guiné!
De novo em apoio da Operação Tridente
Voltámos ao
Tombali entre 14 e 17 de Fevereiro.
O nosso
papel tem sido de apoio logístico: fornecimento de alimentação, armamento e
munições. Das cêrca de vinte pequenas embarcações à volta das ilhas, demos
pessoal para guarnecer algumas, tendo chegado a estar em simultâneo, três
oficiais fora do navio.
Voltámos uma
terceira vez ao Tombali antes de termos rendido a Nuno Tristão. Sem saber
quando chegámos, sei que suspendemos e largámos para Bissau no dia 26.
Rendez-vous com o S. Gabriel
Depois de
Bissau descemos o Geba, cruzámos a barra e já em mar aberto encontrámo-nos com
o S. Gabriel a umas cinqüenta milhas a Oeste de Caió.
Trazia o
Destacamento Nº 9 de Fuzileiros Especiais comandado pelo Metello de Nápoles
para render o DFE2 do comando do Faria de Carvalho, que antes fôra do Caeiro.
Trazia além disso muito e variado material, com destaque para as munições de
120 que vinham refazer o nível dos paióis, muito baixo depois dos tiros para o
Como. As LDM’s 202 e 303, idas connosco, mais três escalères arriados do
navio-tanque, fizeram o transbôrdo para o Vouga. O S. Gabriel parecia um poço
sem fundo.
Faina de munições
Do Diário Náutico do Vouga em 28 de
Fevereiro de 1964
Depois de
vinte e uma horas pairando no Atlântico, ajustando rumos e velocidades para
manter uma posição favorável à manobra das embarcações de vai-vém, tínhamos
tudo a bordo.
Passámos
reboque às LDM’s
O Senhor Mestre
O Roque sem a amiga
e regressámos
a Bissau,
onde
chegámos mal iniciada a madrugada de 29. A seguir à alvorada recomeçou a fàina,
enquanto a
banda do DFE9 assinalava o momento de chegada à guerra.
De volta à Operação Tridente
Agora para
render a Nuno Tristão que está de regresso a Lisboa.
Tombali, 1 de Março de 1964. Largada
da Nuno Tristão
Pesca nos Baixos do Tombali
Integrado o
Vouga havia um par de dias nos efectivos da Operação Tridente, estávamos
fundeados nos Baixos do Tombali, não muito longe de bancos de pesca, à vista,
em águas menos profundas. Arejar a ementa com peixe fresco foi uma tentação. De
manhã, meti-me num bote de borracha com quatro praças, muni-me de seis granadas
ofensivas e ala. Sem guarda-rios no horizonte iniciei a caça. Fiquei
surpreendido com a quantidade de pescado recolhido à primeira explosão, o que
invariàvelmente se repetiu. Sem gastar todas as granadas, regressámos a bordo
uns cem quilos mais pesados.
Uma semana
depois quis repetir a façanha, com nova equipa. Mais ambicioso, fui procurar
peixe grôsso. Bastante mais longe do navio, a 11 milhas, em águas límpidas e
ainda menos profundas encontrei o que procurava. Caça mais difícil, havia que
perseguir o peixe em fuga veloz, lançar a granada no momento propício e guinar
o bote com rapidez para fugir à explosão. Combinados com o pessoal, a manobra
pretendida, os sinais p’ró leme e as vozes, ficámos prontos p’rá perseguição.
Mão esquerda enrolada e firme no cabo de cabeça fixado ao bico de proa, corpo
retesado para trás a manter o equilíbrio, braço direito erguido e mão apertando
a granada descavilhada, assim se fizeram duas corridas com sucesso.
Correndo já
uma terceira vez, sobre o maior dos peixes encontrados, deu-se o inesperado:
uma praça, um grumete sentado atrás de mim, levantou-se aos berros, invocando
mãe, invocando Jesus e não sei que mais e com as duas mãos apertou-me o pulso e
agarrou-me a mão da granada. Em pânico absoluto gritava que não queria morrer.
Consegui chegar-lhe um cotovêlo à cara e não sei mais onde, dei-lhe uns safanões,
atirei-o aos paneiros e desenvencilhei-me do rapaz mantendo a mão fechada.
Atirei a granada para longe e não houve mais pesca.
Oito horas
longe do Vouga e só trouxemos vinte quilos de peixe.
Nos minutos
da viagem de regresso teve tempo para se recompôr e na fotografia que nos
tiraram à chegada está tão sorridente como quando quis fazer parte da
expedição.
Baixos do Tombali, 11 de Março de
1964
Havia outras
formas de pescar. Em Bissau – não só em Bissau - era fácil comprar grandes
sacas de ostras por baixo preço. Não raras vezes o despenseiro nos servia esse
mimo. Numa atitude assaz individualista, gostava mais de sair de bote de
borracha, armado de martelo e escôpro, procurar um pedaço de rocha onde as
houvesse, destapá-las com a ferramenta, arrancá-las a dente e comê-las. Sempre
me pareceu que cozidas, cruas ou assadas, sabem ao mesmo: bem.
Um processo
mais sociável de comer marisco era ir ao Vara
Longa, onde havia de tudo e cerveja fresca. Grandes lanches!
A cena do tubarão
Fundeado nos
Baixos do Tombali, a umas dez milhas da foz de uns quantos rios que ali faziam
convergir as correntes, o navio mantinha uma proa quase fixa, ligeiramente
ondulante. Quando a cozinha despejava os restos na dala, acorria ao fartote um
sem número de tubarões que se mantinha por perto.
Senti-me
tentado a pescar um, coisa que nunca fizera. Falei com gente que julguei
percebesse do assunto e comecei a colectar equipamento. Creio que do paiol do
mestre veio a peça fundamental – pensava eu – um anzol que media um palmo;
depois, cabo de aço, passado pelo olho do anzol, dobrado e serrado. Preso e
pendente de uma pequena tábua a meio de uma bóia redonda, o anzol iscado com um
pedação de carne, sêbo e gordura e aumentado o comprimento do conjunto por uma
retenida, estava terminada a armadilha. Baixei-a à água com cuidado para manter
a bóia em posição. Arrastada pela corrente, num instante esticou a retenida.
De imediato,
acorreram tubarões aos tropêços. Imaginei que não tardaria a pescar um. Engano.
Os bichos eram mais espertos do que os julgava ou tinham mais curiosidade que
apetite. Passavam pela carne, o que se adivinhava pelo movimento da barbatana e
com uma delicadeza inesperada roçavam os dentes pela bóia, afastavam-se e quase
em bicha voltavam para repetir a experiência. Cansei-me de os olhar e recolhi à
Câmara onde o almoço estava quase a sair.
- Sô tenente, sô tenente! Está lá um
tubarão!
Foi assim
que uma praça me fez levantar da mesa e correr p’rá tolda. Estava lá de facto
um tubarão a debater-se. Parecia dos maiores que por ali nadavam. Com ajuda
puxei a retenida e trouxe o infeliz ao painel da pôpa. Nada tinha na boca. Não
fôra preciso o anzol. Tantas voltas e torções terá dado a cheirar e apalpar a
bóia que se prendeu pela cauda ao cabo de aço. Era visível a fragilidade do
apêrto. Mandei vir uma Mauser e dei-lhe três tiros em zona que imaginei vital.
Morto, ficou a sangrar, tendo depois sido rebocado para a zona da cegonha onde
foi içado.
A fotografia
acima foi-me emprestada pelo Tóine
Fermine, ao tempo marinheiro Radarista, conhecido no Vouga por Baleizão, da
terra onda nasceu. Carreira terminada em sub-chefe da Polícia Marítima,
encontramo-nos nos verões da Fuzeta.
Depôsto no
convés, o tubarão foi medido – três metros e meio – esventrado e mesmo depois
de retiradas as vísceras, o cheiro era de tal modo nauseabundo que arrancados
alguns dentes e cortada a barbatana grande, voltou ao mar sem demora. Com
alguma crueldade, devo dizer. Uma retenida presa à pôpa a enlaçar-lhe a cabeça,
a corrente enfunava-lhe o corpo vazio, mantendo-o a flutuar. Os familiares não
estiveram com meias medidas; foram-se a ele como gato a bofe e a cada
estremeção de boca fechada deixavam nas badanas um perfeito círculo vazio.
Espectáculo deprimente. Soltei a retenida.
Conservo a
dentição do bicho. Morto havia anos, conseguiu filar-me. Contava a um amigo
como o tubarão caçado alimentara os outros e para mostrar o afiado dos dentes
passei a serrilha de um deles por uma unha. Com tanto azar que resvalou para a
cabeça do dedo e cortou-lhe a pôlpa. Foi demonstração única.
A barbatana,
posta a secar pendurada num vergueiro, desapareceu ao fim de alguns dias. Quem
terá comido a sôpa?
Lanchas de desembarque
As lanchas
de desembarque eram indispensáveis num teatro de operações como o da Guiné. Sem
elas não havia como acudir às tropas com água, comida e munições; e dar-lhes
mobilidade. Com guarnições mínimas e muita dedicação, tiveram importantíssimo
papel na operacionalidade. Sendo os patrões das lanchas Cabos de Manobra e
transportando oficiais comandantes de unidades, havia muitas vezes que embarcar
um interlocutor naval que ostentasse galões, mandatado para chefiar as
embarcações. No início de Março havia três oficiais do Vouga embarcados em
LDM’s. Não me tinha ainda chegado vez, mas não tardaria.
Base Logística
As ilhas de
Caiar, Como e Catunco, são de facto três ilhas mas só no terreno e com a maré
cheia isso é evidente. Para o vulgo, por facilidade, reduzem-se a uma apenas: a
Ilha do Como. A Base Logística principal, montada num areal da Ilha de Caiar no
início da Operação Tridente, foi no Como, que em termos coloquiais sempre esteve.
Base Logística, 24 de Março de 1964
À volta
daquela e de outras praias da zona o fundo é quase sempre um imenso lodaçal
sobre que as embarcações têm que navegar um pouco às cegas, para atingir as
ilhas ou afastar-se delas.
Com alturas
de água a variarem entre máximos de 5.5 metros no preia-mar e 1.2 metros na maré
baixa, é só com água escorrida que esteiros e riachos que se contorcem em
curvas e contra-curvas mostram o traçado, variável com rapidez pela sujeição a
correntes fortes.
Perante isto
e sem pontos de referência, navegar na área com segurança é difícil, razão
determinante do apôdo algo cruel ganho por um camarada que orientava a
navegação na primeira fase da Tridente: ‘almirante do encalhe’.
Para a
evacuação da Base Logística foi-me dada a responsabilidade de acabar com os
encalhes. Ali estive durante os últimos quatro dias da operação.
Deu tempo
para voar num Dornier da Força Aérea, pilotado pelo irmão do Pombo, ao encontro
de um frango assado.
Reduzindo a
quase nada o risco de a pista utilizada na Base Logistíca ser de areia sôlta e
ter a pequena inclinação comum às praias, só falta dizer que o galináceo nos
aguardava em Càbedú, na unidade militar estacionada junto à celebrada Mata do
Cantanhez, que sendo uma farpa de soberania portuguesa na zona pretensamente
libertada, era com freqüência saüdada com fogo inimigo. Càbedú era como que uma
ilha arredondada e oblonga delimitada a arame farpado, onde a nossa gente
sobrevivia a poder de vontade.
Mas o
petisco estava bom.
O piso da
pista de Càbedú não era melhor, com a vantagem de ser plano. Mas o Dornier era
pau p’ra toda a colhèr e pousámos de volta com a suavidade de um passarinho.
Na Base
Logística os oficiais comiam a uma mesa tão improvisada quanto tudo ali era.
Espêssas tábuas espetadas na areia suportavam outras, sobre elas pregadas, que
faziam de tampo. O mesmo sistema era usado na feitura de compridíssimos bancos
corridos de cada um dos lados da mesa.
No último almoço
ali servido, a única camisa branca com galão de còcha (óculo) seria a minha. Sentei-me
ao lado de um camarada do exército que freqüentara comigo a Amadora e quase em
frente de Fernando Cavaleiro, o comandante da operação.
Com o
material todo ou quase todo embalado para a retirada, já sem máquinas de frio a
trabalhar, não estranhei que o vinho tinto dos jarros metálicos estivesse à
temperatura ambiente. Mas não vi com bons olhos que o tenente-coronel Cavaleiro
estivesse a beber cerveja fresca e interroguei com um olhar o amigo do lado que
me respondeu espetando o queixo na direcção do alferes de administração que
geria o rancho, algo distante na mesa. E não é que o moço se refrescava também?
Indignado,
nem tanto pela diferença de tratamentos, mas mais pela passividade quase
reverencial da aceitação, fiz-me ouvir com voz sonora:
- Ó Senhor alferes, o senhor não tem
vergonha de estar a beber cerveja fresca e servir vinho quente aos seus
camaradas?
A tardia
cotovelada que me deu o moço do lado para me parar teria sempre sido tardia.
Por breves momentos fez-se silêncio à mesa. Mas não houve reacção. Por esta e
outras quejandas inoportunidades(?), fui às vezes olhado de esguelha. Acredito
que o meu índice de popularidade não tenha subido.
Para o êxito
da missão que ali me levara tive o auxílio precioso do capitão-tenente Moreira
do Amaral, o Imediato do Vouga.
Base Logística, 24MAR1964
Base Logística, 24MAR1964. Destruindo
o rasto
Base Logística, 24MAR1964. Destruindo o rasto
Com tudo
pronto fui para ponte do Bór assumir a navegação. Assisti então a uma cena
giríssima: Na praia, apenas Neto Valente e Fernando Cavaleiro, fazendo-se
mesuras e dando cada um ao outro a primazia de embarcar. Queriam ambos ser o
último retirante da praça reconquistada. Não sei porque ordem pisaram a prancha.
Sei que mal começámos a navegar houve que parar tudo. Com gritos e acenos,
alguém que perdera o embarque nadava esbracejando e pedia para ser recolhido.
Era o G3, um grumete fogueiro que já dera nas vistas e porfiando conseguia agora
a consagração: tomar de um Comandante a
sua vez protocolar de embarque, na retirada da Base Logística da Operação
Tridente.
Na nossa
esteira, LDM’s, LDP’s e mais embarcações.
Ah! Ninguém
encalhou.
Chegámos a
Bissau às seis da manhã do dia 25.
Bissau, 25MAR1964. Neto Valente
recebe à prancha o Brigadeiro Louro de Sousa
Bissau, 25MAR1964. Neto Valente,
Lopes de Mendonça, Louro de Sousa e Fernando Cavaleiro
Bissau, 25MAR1964. Chico Nascimento,
Vasco Madeira, Sampaio Cabral e Martins Gomes
Bissau, 25MAR1964
Bissau, 25MAR1964
Bissau, 25MAR1964
Bissau, 25MAR1964
Reabastecimento do Cachil e outras
imagens de Março de 1964
Catió, Março de 1964
Catió, Março de 1964
Catió, Março de 1964
Zona 1, Março de 1964. Burnay e Osório
Domingo de Páscoa
Fomos
encontrar-nos com o Bartolomeu Dias na foz do Geba. A bordo trazia um curso de
cadetes da Reserva Naval em viagem de instrução. Trouxemo-lo na esteira até
Bissau.
Depois do jantar bateu-me
a melancolia. Decidi que queria, porque queria, receber um telegrama; e fui esperar que
chegasse, sentado ao lado do telegrafista de quarto na Cabina de TSF. Mas não
fui de boa-fé, senão como explicar que levasse comigo um grande capacete de
telefonista em que vazara o brandy de
uma garrafa de Constantino? Por cada NAV chegado p’ra outro destinatário lá ia
um gole ou dois. Fiquei até ao fim do período de radiodifusão, não fui
contemplado e o capacete secou.
Ah! Guiné!
Guiné!
Terça-feira post Páscoa
Era uso na
Fuzeta, que não cheguei a viver, ir de pique-nique ao Cêrro da Cabeça na
segunda-feira de Páscoa. Ia-se de burro com abundosos farnéis e passava-se lá o
dia. Não pude deixar de lembrar-me deste costume, quando, mudados tempo e
local, foi na terça e no Grande Hotel de Bissau
que almocei
com o Chico Nascimento, fuzeteiro de gema; e com sua mulher, a Maria Cecília. Tínhamo-nos
encontrado no imenso granel que era o convés do Vouga no regresso da Operação
Tridente. Cumpria tropa, pondo ao serviço do Exército a sua formação médica. Logo
ali me fez o convite para os visitar no hotel. Foram muito simpáticos. Dias
depois também os levei a um repasto naval a bordo.
Coimbra
Luiz Goes,
uma voz apetecida, esteve connosco à mesa mais uma vez. Acertou-se a marcação de
fados para dois dias depois, dia 5, com uma tertúlia de Coimbra, mas a guerra
não se compadeceu com o acêrto.
Tenho uma
recordação imprecisa de Sutil Roque, outra bela voz coimbrã, também junto de
nós.
Operação Tenaz
Na segunda
semana de Abril, na área de Cafine, no Rio Cumbidjã, teve lugar a Operação
Tenaz, que envolveu os destacamentos de Fuzileiros Especiais 8 e 9, a LFG
Escorpião, a LFP Canopus, as LDM’s 101, 201 e 302.
O Vouga não
esteve envolvido, mas o Bento colheu do regresso da operação, na ponte-cais de
Bissau, duas imagens para memória futura:
Bubaque, Abril de 1964
Veio de Estibordo empenado
Foi no canal
entre Jèta e Caió, era 18 de Abril. Apercebemo-nos bem de ter roçado o fundo.
Momentâneamente o navio desacelerou. Pararam-se as máquinas. Flutuávamos bem.
Para avaliar das conseqüências, fez-se rodar os hélices a vários regimes e
concluiu-se que o veio de estibordo ficara avariado e provocava vibrações sôbre
a estrutura. Não muito violentas, mas chatas de suportar nos níveis mais baixos
do navio. Continuámos a navegar e fundeámos na foz do Cacheu.
Considerados
prós e contras, o Comandante aceitou continuar na Guiné sem reparação da
avaria, tendo passado a navegar apenas com a máquina de bombordo, usando
esporàdicamente a outra para manobras difíceis.
Temia-se que
a aranha também tivesse sofrido, mas constatou-se que não depois do regresso a
Lisboa. Andámos pois ao pé-coxinho durante meio ano.
Bolama, Abril de 1964
Fundeámos em
Bolama na manhã de Domingo, 19 de Abril.
Na terça-feira falei para casa. Felicitei minha mulher por ser o seu dia de completar os anos da maioridade. Grande surpresa. Ouvia-se como se Lisboa estivesse nos confins; e estava de facto. Ou era Bolama?
O
Destacamento nº 7 de Fuzileiros Especiais preparava um operação em grande. Na
véspera houve ronco municipal que incluiu arraial quase minhoto. Balões,
musiquinhas, quermesses, comeres e beberes, etc.
Entende-se
que em dias tais, os fuzileiros deitem contas à vida, escrevam cartas que o
acaso pode ditar serem as últimas e tentem esconjurar os mêdos. Ou longe de
todos, a sós com o seu silêncio, ou no pólo oposto, no frenesim de aturada
convivência.
Sentado com
Neto Valente e com Correia do Amaral numa improvisada mesa de madeira com
cheiro a recém-cortada e ainda húmida, espetada no chão vermelho tórrido, comíamos
algum pedaço de lingüiça empurrada a pão e cerveja. À nossa volta o contingente
de fuzileiros que optara exorcisar-se pelo poder da extroversão a que o arraial
convidava. A cerveja corria goelas abaixo, de copos como de gargalos.
Era
conhecido de muitos fuzileiros que encontrara na minha curtíssima estadia em
Vale de Zêbro tempos atrás, tal como de outros com que me cruzara em navios e
que tinham mudado de classe. Não estranhei por isso que um deles se me tivesse
dirigido, oferecendo-me cerveja fresquinha de uma garrafa de Pilsener, para
esquecer a que restava, chóca, no copo – Senhor
tenente, isso já está quente! As bolhinhas
líquidas da condensação cobrindo todo o vidro eram um convite. Aceitei e pu-la
à boca. Só ao terceiro ou quarto gole percebi que caíra numa esparrela: estava
a beber whiskey às goladas.
Era cedo
quando regressámos a bordo. À excepção do Comandante, não creio que alguém
superasse o teste do balão. O Bento não ficaria longe disso; e a seguir, talvez
eu. Na caminhada até à ponte amparámos os mais precisados. O percurso no
escalèr até ao navio, o ar nas ventas, dissipou alguns vapores. Mas um certo
doutor médico a quem batera a nostalgia e se dera ao desfrute de Dioniso, foi
com duas muletas – eu e o Bento – que entrou no camarote. Não o deitámos no
beliche sem antes o sujeitar a um velho tratamento
Eu, o Pombo e o doutor. O Bento ficou
atrás da ocular
que provocou sentido arrependimento, bem expresso em palavras sincopadas e lamuriosas que soltava enquanto lhe despejava a água do balde:
- Eh pá! Tu não digas a ninguém… Eu
sou méééédico… sou méééédico!...
Solidão assistida
A Câmara de
Oficiais é um espaço talhado p’ra convívio, mas as exigências desencontradas
dos serviços faziam que nem sempre os ócios coïncidissem no tempo. Da presença
constante das vidas deixadas nas nossas esteiras, decorria uma ou outra
insónia, tornando por vezes a Câmara, às mais inesperadas horas, um silencioso
ponto de encontro de cada um consigo mesmo.
Um cálice
enchido de uma garrafa ao acaso era companhia casual. Com o cigarro – tabaco
forte se possível – e os novêlos de fumo a compôrem o ambiente… já éramos três.
Condoídos,
compareciam então Jacques Brel, Léo Ferré ou Brassens. José Afonso nunca faltou
à chamada e ainda estou p’ra saber como ‘Os Vampiros’ aguentaram dar som até ao
fim, tantas vezes foram lavrados os sulcos do disco. Pela mão da Deutsche Grammophon
também David Oistrakh, alçando o violino e trazendo uma orquestra atrás, nos
visitava muito com os concertos de Mendelssohn e Beethoven.
Em ocasiões
outras, mais participadas, esteve connosco de forma tangível o miliciano Luiz
Goes que, por falta ou destreino dos instrumentos nos não chegou a dar a sua
voz. Luís Penedo, em serviço na Armada, ao tempo dedilhando sons de Coimbra,
apareceu na ‘Diogo Gomes’ que nos veio render. Foi muito ouvido. Há vinte anos
e já com afinação de Lisboa tornou-se Presidente da Academia da Guitarra
Portuguesa e do Fado de que com minha mulher e alguns amigos fui co-fundador.
Fado que nos
chegou de Lisboa em ocasiões especiais na pessoa de uma Hermínia muito chunga e
divertidíssima que o Sousa Santos, sempre aplaudido, mimava p’ra nós,
acompanhado na banza pelo Pombo Rodrigues. Que pena, José Malhoa os não ter
tido por modêlo.
Primeiro-tenente
Todo ufano
estreei os galões no dia primeiro de Maio.
De combóio p’ra Bafatá
Desde a
chegada a Bissau não temos desperdiçado oportunidades para ir a um recinto
desportivo da cidade, usar o corpo e consumir energia. O andebol de sete foi
eleito desporto preferido. Sapatilhas, calções e camisola ou um fato de treino,
uma bola, pouca gente, um piso plano e uma baliza, nada mais é necessário.
O professor
Raposo que dava ginástica no Liceu Gil Vicente era um entusiasta do andebol e
contagiava os alunos. Foi dele que aprendi os primeiros rudimentos. Anos
depois, o Sousa Santos, talentoso, saído do mesmo liceu, atingiu a selecção
portuguesa da modalidade. Era ele que orientava os treinos em Bissau. Até me
custa confessar quanta falta de juízo se seguia a cada treino; e só o faço p’ra
ser fiel à verdade: depois de uma longa hora a suar, a reposição de líquidos,
fazíamo-la a longos goles de geladíssimas garrafas de cerveja Beck´s de litro
empinadas à boca.
Outras vezes
era o ténis. Aqui, Vasco Madeira e eu, fazemos pares mistos com a filha do
governador e uma amiga, pouco antes da chegada de Arnaldo Schulz para
substituir o nosso camarada Vasco Rodrigues.
Pouco a
pouco ganhando adeptos, foi-se construindo uma equipa de andebol. De início sem
competidores, depois rivalizando com os fuzileiros e por último unidos com eles
num misto da Marinha, desafiámos os campeões da Guiné e a 22 de Maio
vencemo-los por 18 a 13, arvorando-nos campeões.
Neste
comenos, alguém se lembrou de usar o realce que o andebol vinha ganhando para
uma partida muito bem tramada.
O meio em se
movem os médicos por força das suas funções específicas, fá-los muitas vezes
estranhar, quando lhes cabe embarcar, esse ambiente diverso que os navios são.
Não é invulgar por isso vê-los ser escolhidos para alvo de brincadeiras. Foi o
caso.
- Eh pá, fomos convidados para jogar
andebol em Bafatá e temos que levar médico e massagista. Vamos amanhã; e como
estás mais livre podias ir à estação comprar os bilhetes p’ró primeiro
combóio…
Houve que
acrescentar que estávamos todos muito ocupados e que a expedição seria
protegida por uma pequena força armada, já que Bafatá se tornara uma zona pouco
recomendável para excursões.
Quanto ao
local da estação, o melhor seria ir perguntar no Comando da Defesa Marítima –
onde claro, tinham sido prèviamente industriados. Dali foi para o
aquartelamento de fuzileiros; e lá ou na cidade, alguém lhe disse afinal que
não havia combóios na Guiné.
Foi no
regresso que mostrou quanto nosso companheirão é. Não se mostrou nada
melindrado. E foi em riso conjunto que celebrámos mais uma peripécia da ‘chave
do portaló’.
Bissau – Mostra breve
Nesta mostra
falta a livraria em que me abastecia. Numa rua paralela ao rio, logo acima da
marginal e não muito longe da avenida principal, havia um livreiro – sabia tão
bem o nome dele… - que embora muito
solicitado não deixava esgotar a mercadoria. Mas tendo o seguro morrido de
velho, para as ausências maiores de Bissau, permitia-me a fantasia de comprar
livros às prateleiras. Era o tempo de ler Somerset Maugham, Steinbeck, Martin
du Gard, de ler tudo o que aparecesse sobre 2ª Guerra e os judeus, de ler (às
vezes não ler) uns pretensiosos livrinhos muito sóbrios da Presença, de capa
cinzenta, acabados de editar. A limitação que tinha eram os pêsos do preço: não podia esquecer que
havia um menino lá em casa.
Operação no Como. Mais uma
Transportados
no Vouga para Sueste, fuzileiros e pàraquedistas, embarcam depois em lanchas de
desembarque e vão ocupar posições pré-determinadas.
Fogo de
cobertura.
A 18 ou 19 de Maio voltámos a disparar as peças. Desta vez para
cobrir o desembarque do DFE9 na Ilha de Caiar, onde estivera montada a Base Logística
da Operação Tridente.
O destacamento,
comandado por Metello de Nápoles, foi transportado numa LDM, o Pombo Rodrigues
embarcado com a tarefa de a fazer chegar à praia onde fôra a base. Nas
imediações do ponto desejado, o DFE9 guarneceu os botes de borracha e arrancou.
Foram alvejados botes e LDM. Aí entrou em acção o ‘Vouga’, que estava fundeado
a uns 15 quilómetros, atirando para a posição do inimigo. De início com
informações àcerca dos pontos de queda dos projécteis, pelo Pombo; e depois –
situação prevista e preparada – por outro oficial artilheiro, o Martins Bota,
embarcado num helicóptero e com visão privilegiada sobre a operação. Os
primeiros tiros foram logo bons e só tive que fazer correcções em distância.
Chegou-se ao apuro de me ser pedida uma correcção de 50 metros que não usamos –
o mínimo é 100 – e que não respeitei. Só que de seguida o Bota me pediu de novo
50 em sentido contrário. Tanto quanto foi possível fi-lo: Na ‘mouche’! – foi o
que ouvi.
Apesar de a distância
ser tão grande, com os binóculos estabilizados sobre uma repetidora da
girobússola, consegui ver algumas gèrbes pertíssimo dos botes. Assustou-me a
proximidade, uns duzentos ou pouco mais metros. De qualquer modo, como
artilheiro fiquei vaidoso do fôgo que fiz. Que fizemos.
A guarnição
era boa. No Serviço de Artilharia havia gente de muito bom nível. Já esqueci
nomes, mas Afonso, o sargento da peça de vante, os cabos Louro e Cigarrinho, marinheiros como o Fernando,
o Niza, o Roque… eram gente que não
dispensaria.
Acabado o
fogo e com a peça quente ficou uma munição na câmara. Havia que dispará-la. Foi
disparada para um esteiro. Como entretanto caía a noite, quis aproveitar a
circunstância para testar o estado das munições iluminantes, de que desconfiava.
Autorizado, fiz um primeiro disparo que nada iluminou. Tentei de novo, com o
mesmo resultado. Material com muitos anos de idade e composição química
alterada, já não cumpria a função.
Ainda hoje
são motivo de gozo os meus foguetões de luz negra.
Gostava de
ter sabido do Metello se se tinha sentido ameaçado por um fogo de tão longe a
caír-lhe tão próximo; e por outro lado, se havia sido cumprido o objectivo,
isto é, se de facto o tinha protegido. Não o soube. Anos mais tarde visitei-o
em Faro quando comandava a Zona Marítima do Sul, mas deixara de ser oportuno
perguntar-lhe.
Era mesmo verdade.
As peças de 120 eram espingardas grandes. Onde se punha o olho punha-se o tiro.
Bubaque, Junho de 1964
Bolama, Junho de 1964
Ulysses Grant
É neste
entretanto – chegaram a 3 de Junho - que Moreira do Amaral e Martins Gomes têm
por uns dias suas mulheres em Bolama, hospedadas no Hotel de Turismo, de
pretensiosa frontaria.
Tornado
Na noite de
17 de Junho fomos à Ilha dos Escravos, levar fuzileiros para uma operação.
Enquanto ali estivemos aconteceu um tornado. Vento modesto: 110 km/h.
Bissau, Dia da Marinha
O desenrolar
da guerra terá decerto estado na origem de ter-se comemorado o Dia da Marinha
em 21 de Junho e não em 8 de Julho, como era uso na época.
Bissau, 23JUN1964
A Diogo Cão
– F 333 – chega a Bissau. Traz a bòrdo o Destacamento de Fuzileiros Especiais
Nº 10.
De volta a Lisboa levará o Senhor Lima, fiel de artilharia do Vouga. O desempenho de funções que teve, obrigou-me a castigá-lo e prescindir dele. Custou-me imenso. Primeiro sargento em fim de carreira, teria sido muito mais agradável propor-lhe um louvor. Coitado, estava marcado pela alcunha – pai da desgraça.
Bissau, 4 de Julho de 1964. Recital
de canto lírico
Aconteceu na
Associação Comercial. Gostaria de ter ido ouvir o Calvão. Amarrado ao beliche
com uma gripalhada não pude. Parece que se houve muito bem.
Sabia desta
sua inclinação artística que também em tempos pensei cultivar. Cheguei a ter
aulas em Lisboa com Dona Ema Cordeiro que me catalogou como tenor dramático,
classificação que achei encantadora e digna de figurar num cartão de visita,
mas que levei à conta de agrado ao então potencial aluno. Deixar de fumar e
recusar um eventual cálice ao café, foram no entanto exigências excessivas.
A que
propósito falar deste meu fracasso?
Recüemos à
Escola Naval, antes do fim de Fevereiro de 1957, data em que deixei de ser
caloiro, quero dizer mancebo. O primeiro tempo de aulas das tardes de quarta-feira
era preenchido com Marinharia, a cargo do cabo ‘Filaças’. Por vezes esse tempo
era usado para uma sessão de cinema naval para todo o Corpo de Alunos que à
data contava 81 cadetes. Do primeiro ano éramos só 16, do que resultava que
enquanto não chegava o instrutor p’ra começar a projecção, não tínhamos mãos a
medir, praxados por um, por outro e ainda por outro.
Chamou-me o
Semedo que apontando o Calvão me encomendou um recado:
- Mancebo, vais da minha parte dizer
ali àquele Senhor Guarda-Marinha, que em Lourenço Marques (não
me lembro onde) há maningue merda.
Depois de
suportar uns dois ou três ‘flaque-têtes’ da mão grande do Calvão espalmada na
testa, fui incumbido da resposta:
- Vai dizer ao Senhor Guarda-Marinha
Semedo que onde há merda maningue é no Desportivo de Beja.
A mão do Semedo
era ainda maior que a do ´Maningue’.
Com muita
oportunidade entrou o instrutor e começou o cinema.
Quando
apanhei o Calvão a jeito, consegui levar a conversa para a ópera, disse-lhe das
minhas aulas e como se mostrou interessado, indiquei-lhe a Dona Ema Cordeiro.
Nunca mais me fez praxe.
Campeane, 8 de Julho de 1964, no fim
da Operação Tulipa
Pelas dez da
manhã saímos de Bissau e fomos reabastecer ao cais de Bandim. Prontos antes das
cinco da tarde, largámos. Pouco depois, para surpresa nossa, voltámos à
capital. Ainda de forma pouco precisa soubemos a razão da mudança de planos. Um
avião português fizera fôgo sôbre forças nossas, tendo havidos alguns mortos e
muitos feridos. O navio aguardaria em Bissau a eventualidade de ser necessário
ir prestar assistência.
Decorria uma
operação de envergadura – Tulipa - que se desenvolvera no extremo Sueste do
território, levada a cabo por todos os quatro destacamentos de fuzileiros
especiais que tinham sido transportados pelo ‘Pedro Nunes’ até perto de Cacine.
A operação estava quase no fim.
Chegado
havia poucos dias, o destacamento 10, comandado pelo Roncon, fazia o seu
baptismo de fôgo. E que baptismo! A primeira informação dava-o como tendo sido
alvo de todas as baixas. Soube-se depois que as dividira com o DFE8. Quatro
mortos e mais de quarenta feridos.
Um sistema
de comunicações deficiente ou mal usado, ou ainda uma percepção errada das
informações trocadas, redundou em não se saber no avião quem era quem cá em
baixo, tendo o piloto tido tempo para duas picadas aziagas.
Na tarde do
dia 9 fui aos funerais, uma manifestação oportuna de solidariedade naval.
Depois, para lhes dar algum ânimo, fiz companhia ao Roncon e à mulher e jantámos
juntos. Parecendo-me que ele começava a ir-se abaixo arrastei-os até ao navio
para que tivessem mais gente amiga à volta. Oxalá tenha resultado.
Caió, 11 de Julho de 1964. O 1º Ronco
Largámos
ontem à tarde de Bissau onde estava de serviço; e assim continuei, logo que
fundeámos.
Em àlerta. O
Presidente da Rèpública em viagem para Moçambique a bòrdo do Princípe Perfeito,
passa perto.
Compreende-se
que tenhamos fixado a data de largada de Lisboa. Foi importante para muitos de
nós. É natural por isso que a visão do seu número representativo, ao escrevê-lo
numa carta ou no Diário Náutico, ao lê-lo no calendário ou ouvi-lo pronunciar,
nos traga a lembrança das emoções vividas.
Assim terá
acontecido quando já bastante noite nos fomos juntando na Câmara. Sorrateiro, o
onze insinuou-se entre nós. Fizeram-se contas – andavam mais do que feitas – e
zás: faz hoje seis meses! Mas eram já
duas horas do dia seguinte – pelos vistos a nossa hora canónica - quando tudo
começou: chouriço assado em álcool e umas garrafas de Dão tinto. Depois vieram
conservas e apareceram nozes e amêndoas – aperitivos chegados sem dúvida no
tempo próprio – e não tardou abria-se espumante e bebiam-se outras
especialidades espirituosas a eito.
Aconteceu
porque aconteceu. Espontânea. Foi uma confraternização e tanto. Alegria alcoólica
a rôdos. Tão necessária e tão genuïna! A debandada para os camarotes começou às
quatro. Fiquei só, a ver as fotografias recebidas de casa e a consumir-me em angústias.
Admiradíssimo quando subi ao convés e vi o Sol. Era Domingo e pude enfiar-me no
beliche até ao almoço. De resto, havia muito balanço em Caió e aceitava-se bem
a horizontal.
Bissau, 12 de Julho de 1964
O Pedro
Nunes sai hoje para Lisboa. O engenheiro, doente, está na Metrópole. Para
exercer a função, o Silva Coelho foi para lá movimentado em diligência. Passará
cinco dias em casa. Que inveja!
O
‘Lima’ vem à Guiné
Chegada do
Lima a 17 de Julho. Parece ter tido avaria no radiogoniómetro. Rendez-vous na foz do Geba. Sobe o rio
na nossa companhia. Navio com muito bom aspecto.
Navegando
lado a lado, voou sobre nós o Pombo aviador, fazendo a usual pirueta. Ele lá
saberá como entre dois navios gémeos identificou o nosso.
Chegados a
Bissau, o Comandante Moura da Fonseca – Zé
da Moura - no cais olhando o Vouga, vê-me no convés. Talvez por nos
conhecermos do Militar Naval, interpela-me com um discurso crítico sobre o
atavio do nosso pessoal, com particular incidência sobre os troncos nus e as
sandálias de plástico. Sugeri-lhe que entrasse e falasse com Neto Valente. Preferiu
seguir caminho.
Recebi
depois a visita do Artur Fiadeiro, meu condiscípulo artilheiro. Amanhã vou a
bordo do Lima despedir-me dele.
Voltarão à
Guiné e a Bissau nos dias 27 e 28.
Bissau, 18 de Julho de 1964
- 6º Centenário da Redescoberta da
Guiné
Tão bem
comportados tínhamos sido até uma semana atrás, quando lembrámos o 11 de
Janeiro… Quem acreditaria que aquilo tivesse sido apenas o ensaio geral de uma
representação com inúmeras réplicas até ao regresso a Lisboa?
O
desanuviamento resultante do convívio de Caió foi de tal modo agradável que logo
se congeminou uma recidiva mais enramalhetada. Houve tempo para preparativos e
fez-se mesmo um programa que incluía distribuição de encargos, indicação do
traje e horário do ‘ronco’.
Horas que
não foram respeitadas – longe disso.
Em meio a
uma sociedade que adia na presunção de resolver, de súbito, contra todas as
expectativas, o início do ‘ronco’ foi largamente antecipado.
Erán las dos de la mañana!
O nosso
distinto imediato e amigo… deu-lhe uma coisa má. Teve um àmok! Irrompeu pelos
camarotes num vozeirão cavo, profundo e muitos decibéis acima do habitual,
compeliu-nos ao banho, a aparar as barbas, carregar nos perfumes
‘aftersheivícos’ e comparecer na Câmara trajando de branco completo – desistira-se
do uso da jaqueta por nem todos a terem. Assim se fez.
Qué pasa?
- Faz hoje seis meses que chegámos à
Guiné. Os meses aqui contam-se por séculos. Vamos comemorar o 6º Centenário da
Redescoberta da Guiné. A nossa redescoberta da Guiné.
Mesmo tendo
vivido os acontecimentos, não é fácil crer no que pode o querer. A mobilização
foi instantânea e tudo quanto preparáramos começou a surgir. A taifa
apresentou-se sorridente. O compartimento foi arrumado quanto possível. Apareceram
candelabros – desenho meu – e balões. Posta a mesa em obediência aos bons preceitos, a baixela impecável, os copos
ofuscantes de brilho novo. Até flores… Aberta a escotilha do paiol da despensa,
dele começaram a sair as vitualhas adeqüadas a tão memorável feito da
inenarrável gesta lusa, algumas compradas por mim na véspera, como caviar,
foie-gras, queijo com camarão, mexilhões, etc.
Mais tarde
compareceu um bôlo coroado com seis velas.
Todos
botaram discurso alusivo à presença na Guiné, obrigatòriamente em idioma
estranho. Falei em francês, mau francês; e juro não ter idèia do que possa ter
dito.
Mas veja-se quão escorreita estava a carta de vinhos:
Mas veja-se quão escorreita estava a carta de vinhos:
Aos brindes foi
feito o anúncio oficial da criação da Ordem do Jàgudi Emboscado.
- Porquê do Jàgudí?
- Sendo uma
Ave de rapina falconiforme, "falcónida accipitridae", presença frequente nas árvores
ou grandes arbustos da savana da Guiné, o Jàgudí, com a denominação científica
de“Necrosyrtes monachus”,
poder-se-á definir como o abutre-de-capuz ou, em língua inglesa, hooded vulture.
(Classificação retirada
do blogue Reserva Naval, 18JUN2008)
- Poder-se-á dizer dele também que
O jàgudí é uma ave
curiosa que parece feita de várias outras aves.
Bico recurvado de
papagaio.
Olhos vivos de falcão.
Cabeça de galo a que
amputaram a crista.
Pescoço enrugado de
peru em véspera de Natal.
Corpo avantajado de
avestruz, de penas sem brilho e de cor indefinida.
Pernilongo como um
flamingo, mas com aceradas garras de águia imperial.
No solo, caminha como
marujo recém-desembarcado a quem falta o balanço.
Em contrapartida, na
Guiné é rei dos céus, onde paira, elegante, especialmente enquanto o sol não
transforma a manhã amena no inferno do meio-dia.
É o mais eficiente dos
funcionários municipais.
Ocupa-se da limpeza da
via pública e não há ponta de lixo que não atraia a sua visão de lince.
Remove-o, total e diligentemente; e leva-o para o ninho, dando às ruas e
jardins o ar asseado da manhã.
Transcrito, com
alterações, de um interessante texto de Magalhães Pinto em “entre aspas” em
28JUL2012.
- E porquê emboscado?
A explicação
é um pouco mais rebuscada:
Na reportagem
de situação (SITREP) de cada dia, tinha o navio que informar as chefias, entre
outras coisas, da posição onde estava. Ocorria bastas vezes estar a navegar no
Rio Geba, o rio de acesso natural a Bissau, o maior, o mais largo e mais sujeito
ao regime atlântico. Nesta alínea, em que a informação bem poderia cingir-se a
um sêco, ‘No Geba’, o Comandante não resistia ao seu eu e escrevia: ‘Algures emboscado no Geba’,
manifestamente uma impossibilidade para um navio do tamanho do Vouga num rio da
largueza do Geba.
O capitão-de-fragata
Manuel Lopes de Mendonça era o Comandante da Defesa Marítima da Guiné e o
capitão-de-fragata Rui Adélio Neto Valente comandava o Vouga. Promovidos no
mesmo dia aos postos de guarda-marinha e
de segundo-tenente, também na última promoção quase tinham coïncidido. Eram
amigos e cúmplices. E por nós tratados carinhosamente por ‘Contra-mestre Manel’
e ‘Pampas’.
Quando o
Comandante da Defesa Marítima da Guiné recebia a mensagem que o informava estar
o Vouga ‘algures emboscado no Geba’, só
podia sorrir. E quando frente a frente fazia a provocação de perguntar como se conseguia
emboscar o Vouga, o outro não se esquivava e embrenhava-se em explicações
filosóficas, tudo acabando em pagode.
Guiné e
Vouga irmanados na expressão Jàgudí Emboscado, fizeram história.
Foi assim
que,
Sem
concordância Papal nem consulta ao Presidente da Rèpública, mas dando seqüência
ao princípio de restauração do prestígio das Ordens Honoríficas Portuguesas
iniciado por Sua Majestade a Raínha Dona Maria, a Primeira; e sob os Saber e Graça
de um Grão-Mestre de carácter transiente em função de parâmetros como
disponibilidade e oportunidade, foi criada a Ordem do Jàgudí Emboscado.
Não se perdeu
tempo em mariquices heráldicas como: de negro, jàgudí volante sobre céu
prateado, ou lisonjas de azul perfiladas de ouro postas em cruz. Nada disso que
seria muita cêra para tais defuntos. Tudo se resolveu com rapidez cortando
quadrados de aço inox, furando-os num canto onde se enfiou uma fita vermelha e
fixando-lhes com adesivo transparente, papelinhos com indicação dactilografada
do nome da Ordem. A eficiência é simples.
Estavam
feitos os colares da Ordem, que num exercício de democracia em forma pura, eram
iguais p’ra Grão-Mestre, Grande Oficial ou simples Iniciado.
Atente-se na
estética conseguida com o uso dos capacetes amarelos da Segurança,
indispensável adereço do ritual de iniciação.
Acima, o
Sampaio Cabral, que foi o primeiro Grão-Mestre da Ordem, a arengar no comêço da
cerimónia das investiduras;
e aqui, o
Bandeira, que Oficial de Dia tinha que tomar conta de todo o maralhal, a vestir
o colar ao Bento.
Em momento
de muita solenidade acenderam-se os seiscentos anos de velas.
Todos alegremente
investidos no Grande-Oficialato da Ordem,
que aqui já
tinha outro Grão-Mestre, o Imediato, coberto com o tetracórnio.
Por fim
houve baile. Não havendo damas para abraçar, rodopiando sòzinho, cada
um terá imaginado a sua.
Imperou nos
festejos um misto de alegria e camaradagem que descambou em sonolência.
Bissau, 19 de Julho de 1964 –
Abertura ao mundo
Com a embalagem
adquirida na véspera foi irresistível ter que dar conhecimento ao mundo dos
sucessos da nova Ordem.
Foram feitos
aos amigos os convites que a pressa permitiu e investidos os primeiros irmãos
exteriores à Câmara de Oficiais do Vouga.
No fim, houve
espectáculo com uma versão aligeirada dos Beatles.
Mais tarde,
tornou-se canónico mostrar ter cabeça dura o suficiente para querer irmanar-se
connosco na ordem, pelo que o ritual passou a incluir mais duas transições:
parar a ventoínha de teto da Câmara com a cabeça e suportar que lhe partissem
na dita um ou dois discos de 78 rotações,
que havia em
abundância e já não eram usados.
Comboiar transportes de tropas
A 20 de
Julho o N/M Índia e a 21 o N/M Benguela, foram comboiados por nós nos percursos
entre Caió e Bissau.
Pau-sangue
Fui à
serração do Zé Malcriado. Acertei com
ele a compra de um metro cúbico de pau-sangue por um conto e quatrocentos. Três
semanas depois, a 11 de Agosto escolhi as pranchas e paguei.
Compra que veio a ser útil dois anos mais tarde.
Nascido mais um rebento, desenhei para lhes mobilar o quarto um móvel de
dois andares, grande, pesado, quadradão e cheio de arestas. Quatro módulos:
dois beliches em éle, uma cómoda e um guarda-roupa. Foi feito pelo Cabo Carpinteiro Cópio, que tinha oficina em casa. Serviu anos a fio e
hoje está em casa do segundo filho. Madeira eterna o pau-sangue.
Operação Broca - Imagens
Cruzando informações na busca de confirmar as minhas
lembranças, encontrei no blogue ‘Fora nada e vão três’ um post (carta) de Carlos Geraldes, datado de 2009, relativo a esta operação, que me enterneceu ler
e envaideceu por saber que alguém achou boa a esteira da nossa singradura. Não
posso deixar de transcrever:
“Desta
vez fomos para os lados de Catió e Bedanda, perto da fronteira
Sul. Fomos e viemos a bordo de um contratorpedeiro, o “Vouga”. Ficámos assim a conhecer uma série de oficiais da
Marinha, extraordinariamente simpáticos. Ficámos todos entusiasmados com o
nível de educação, camaradagem e cultura destes indivíduos. Trataram-nos
muitíssimo bem, principalmente quando no regresso do mato aparecemos todos
sujos e esfarrapados. Não se pouparam a esforços, arranjando-nos banho, roupas
lavadas e comidas quentes, apesar de já passar das duas horas da madrugada.”
Companhia de Artilharia
Num dia do
início de Agosto, coube-me ir a Catió recolher uma Companhia de Artilharia.
Levava duas
LDP’s, sendo que na segunda embarcava também o Sampaio Cabral.
A Companhia
tinha calcorreado durante três dias a zona em que se pretendia combatesse o
inimigo, missão que não pôde cumprir porque não teve contra quem. Esgotara água
e comida e não dera um tiro.
Recebi cento
e tal homens sedentos, esfaimados e agitados, preparados para guerrear e com as
cartucheiras cheias. Valemos-lhes como pudémos, o que foi quase nada.
O céu estava
escuro e a tarde começou a tornar-se noite. Iniciado o regresso, apareceu a
chuva. O crepúsculo já de si tão pequeno nas latitudes baixas, não teve tempo
de se mostrar. Vento brando permitia que a água caísse grossa e vertical.
Visibilidade muito curta. Era contando ribeiros e riachos que entroncavam nas
margens que sabia quando e para onde devia guinar. Os Távoras deviam andar por
perto, algum rio sumido na chuva e na noite não veio à contagem e perdi-me. A
complicar, o Cabral que me seguia, perdeu-se de mim. Chamei de lado o
Comandante da Companhia, disse-lhe o que se passava e pedi-lhe para estar de
olho no pessoal e no seu inquieto comportamento, não fosse dar-se o caso de as
coisas piorarem e haver que responder a um eventual ataque das margens. Isso
estava facilitado porque para que as lanchas soubessem uma da outra e voltassem
a reünir-se mandei acender os projectores para cima. Iluminada a chuva e
denunciadas as posições, pedi ao Cabral que parasse a lancha e fui em busca
dela. De novo juntos, fundeei a minha lancha para ver para onde corria a água.
A maré já vazava, mas ainda muito perto do estôfo. Só com um pedaço de madeira
a flutuar tive a certeza do sentido a seguir. Quando avistámos ao longe as
luzes do Vouga os espíritos serenaram. Dando curso ao alívio sentido, o Patrão
não resistiu e pediu velocidade ao motor. Já em mar aberto e com bastante
ondulação, em dois ou três minutos de balanço alguns soldados começaram a
fraquejar. Tive de sofrear o ânimo do cabo.
Tudo está
bem quando acaba bem.
Saltar à corda
Sob o título
oficioso e sugestivo de Chefe dos Serviços de Artilharia Naval, o Comando da
Defesa Marítima incumbiu-me de gerir o armamento naval, com enfoque especial na
reparação de avarias. Só lanchas de desembarque eram quase vinte. Foi maior a
responsabilidade que o trabalho, levado a efeito numa dependência da zona das
oficinas navais. Com dois aptos marinheiros artilheiros – Almas era o nome de
um deles - tudo se foi resolvendo.
Até que um
dia apareceu uma MG-42 com defeito e mal identificado. Foi desmontada, limpa,
lubrificada e refeita. Municiada, passou à carreira de tiro para teste.
Iniciado o fogo, a arma, descomandou-se e emperrou em fôgo de rajada. O
marinheiro que deitado no chão a empunhava não conseguiu evitar a queda do bipé
e a metralhadora, fazendo fulcro sôbre o tapa-fôgo embirrado na areia do chão,
desatou a rodar sem que houvesse força que a detivesse. Longe de se acabarem as
munições da fita, a rotação aproximava dos meus pés a trajectória dos tiros.
Tive sangue frio. E sorte. Com a serenidade possível, esperei o momento de saltar
sôbre a corda materializada pelos projécteis. E esgotou-se a fita.
Novo Ronco
Mesmo quando
é curta a permanência em Bissau, a vontade de receber, de conviver e ter
connosco gente que insiste em viver para além da guerra, aponta sempre o
caminho de mais uma pequena festa, a colmatar as oportunidades perdidas de
Janeiro a Julho.
Convidados
permanentes eram todos os oficiais de marinha não ocupados que estivessem por
perto. Entre os que nos acompanhavam, havia um singular camarada com ADN de mar
que tomava de assinatura o sofá individual postado à entrada da câmara.
Silenciosamente, serenamente, paulatinamente, participava com o olhar e um
meio-sorriso. Poupando quanto podia em gestos inúteis, segurava sôbre o braço
do assento um balão com brandy, ora
meio-cheio ora meio-vazio, ao lentíssimo compasso com que o levava à boca e o
criado lhe renovava o conteúdo. Pouco de cada vez, com unção, num rito de saber
beber e fazer disso um gôsto. Ali passava o serão e olhá-lo chegava para
sentirmos a sua companhia. Tão sóbrio como entrava, era assim que saía.
Bissau, Vouga, Agosto de 1964. O
Silva Marques e o Lino Góis Ferreira, companheiros da Amadora
Vôo nocturno
Vieram
dizer-me que o Catarino Salgado perdeu a mão direita em acidente com uma
granada. Dificilmente me perdoarei que por distracção tenha deixado num táxi o
livro que me oferecera: ‘Vôo nocturno’, de Saint-Exupéry. Mais do que o livro
perdera-se a dedicatória, agora irrepetível, numa letra bonita a tinta muito
preta, com palavras de generosa amizade. Ao acabar a Escola Naval tinha ido para
o Horta, onde eu era imediato do Guise. Ali fortalecemos a mütua simpatia
nascida na escola.
Operação Dedal – Imagens
Refazer marcas de navegação no
Tombali - Imagens
Um acesso de
mau tempo deu cabo das marcas – visuais e radar - de ajuda à navegação.
O Serviço de
Máquinas do Vouga foi reparar os estragos.
Um másculo Can-Can
É verdade
que os sapatos eram de camurça branca; e também que a sola de anta tinha a
mesma côr. Do mesmo modo as peúgas, calças e camisas. Destoavam as passadeiras
nos ombros, que sôbre fundo preto exibiam todos os ouros a que tinham direito
os capitães-de-fragata. Mas nem a alva brilhância dos uniformes conseguia
rivalizar com o imaculado da toalha de algodão adamascado que pisavam.
Restos de
água e vinho no fundo dos copos meio-cristal nem por isso roubavam requinte ao
brilho da mesa cuidadosamente posta, a despeito de algumas migas. Dos pratos perfilados
a ouro restavam os de sobremesa. Peças Christofle com o brilho baço do tempo, atestavam
o desgaste do uso diário. Os guardanapos, cumprida a função, pousavam
amarrotados e dispersos. Foi este o
tablado em que por saborosos momentos assistimos a uma dança espontânea a que
se deram os dois amigos. Sem a elegância que nos habituámos a ver em
reproduções do Moulin Rouge, sem o frou-frou do roçagar das vestes, o levantar
das saias e a visão das jarreteiras, esforçaram-se com brio e conseguiram não
só não partir nada, como fazêr-nos adivinhar o que pretendiam dançar.
Desenganem-se
os puristas. Não deixaram de cativar-nos. Pelo contrário, encurtaram-se
distâncias.
É o Pombo que está de serviço!
Pouco tempo
antes de acabada a comissão, o Pombo Rodrigues deixou-nos, passou para a lancha
do Aguiar de Jesus – tínhamos uma operação de seguida – e aguardou transporte
para Lisboa onde retomou a vida civil.
Cada vez
dormíamos menos tempo, na mesma medida em que o gastávamos em mais demorados
colóquios inteligentes e escorripichávamos mais copos. Em abono da verdade,
cumpre-me dizer que esta última afirmação não é universal.
Após mais
uma noite em que aturadamente nos esforçámos por resolver os problemas do mundo
– o da Guiné incluído – foi já madrugada adentro que recolhemos aos beliches.
Os serviços
rendiam à alvorada. Pontualmente, abluções completadas e duche tomado, trajando
uniforme branco colonial, o Sampaio Cabral encetou a sua divisão de serviço.
Mas a
mornaceira envolvente, a reacção ao banho e ao matabicho somados ao défice de
repouso, potenciados pela visão da cadeira postada na tolda onde à vez nos
refastelávamos… foram irresistíveis.
Quando Neto
Valente subiu e o viu a dormir de braçadeira na manga da camisa, acordou-o:
- Senhor Oficial de Dia!
- É o Pombo que está de serviço.
O Comandante
era um homem sábio. Mandou que um de nós fôsse cuidar do Cabral e pô-lo nas
calhas. Cena muito lembrada em todos estes anos. Ainda é.
Mas agora, o
Cabral já não pode ouvir-nos perguntando:
- Com que então era o Pombo que estava de
serviço?
Recepção à ‘Diogo Gomes’
A Diogo Gomes
chegou a Bissau pelas duas da tarde do dia 15, 3ª feira.
Aguarda-se
que entremos ainda numa operação, coisa em grande, com muitos navios, o que não
invalida o contentamento de vermos aproximar-se o regresso, desejado desde o
momento da partida e quadro melhor desta vida de viageiro.
Na quarta
(ou foi na quinta-feira?) demos expressão ao nosso estado de espírito,
oferecendo aos nossos camaradas recém-chegados uma recepção muito participada,
com manga de ronco.
Bissau, Vouga, 17 de Setembro de 1964
Bissau, Vouga, 17 de Setembro de 1964
Reconheço Roncon, Silva Marques,
Sampaio Cabral, Ribeiro Reis, Bernardino Pinto, Henrique Sales Grade e Couceiro
Bissau, Vouga, 17 de Setembro de 1964
Imediato, Luís Penedo, Sousa Santos,
Pacheco, Vasco Madeira, Cardoso Tavares, Martins Gomes, Castanho Paes
Bissau, Vouga, 17 de Setembro de 1964
Operação Tornado
Sem que lhe
tenha pedido, dou agora a palavra a Carlos Geraldes:
“Bissau, 23 Set. 1964
Chegámos no “Vouga”, ontem à noite. Tudo ainda me parece um pesadelo que
desejaria não ter vivido. A operação “Tornado”, como se chamava, foi
terrível. A região era a pior que já vi, toda semeada de bolanhas,
completamente alagada pela chuva que tem caído incessantemente. Não era terra
nem água mas sim uma enorme região mergulhada em lama líquida. Uma lama viscosa
que, nos prendia como tenazes. Quando algum de nós mergulhava até à cintura,
eram precisos três a puxá-lo para ao fim de muitos esforços o arrancarem de lá
sem botas e com as calças em farrapos.
Localização: zona Sul, entre Cacine e a fronteira com a República da Guiné.
Saímos daqui no nosso habitual contratorpedeiro “Vouga”. É o único navio grande que está cá, tendo chegado agora um outro que, o vem substituir, a fragata “Diogo Gomes”.
Chegámos diante da famigerada Ilha do Como, ao fim da tarde. Pelas nove da noite passámos para lanchas de desembarque. O Carvalho na mais pequena, a LDP 101 e eu e o Castro, o capitão e o grupo de comando da Companhia, na maior a LDM 202.
Subimos o rio Cumbijã e desembarcámos finalmente em terra, pelas seis da manhã do dia seguinte. Se é que aquilo se podia chamar terra. Era só água, lodo e o entrelaçado dos ramos do mangal que delimitava as margens. Atravessada essa primeira barreira, estendia-se à nossa frente um enorme arrozal, tendo como pano de fundo um formidável maciço de palmeiras e mato cerrado. Dispersámo-nos o mais possível e fomos avançando com todas as cautelas.
Desta vez foram alguns grupos pequenos que nos atacaram com tiros inofensivos, fugindo sempre quando tentávamos apanhá-los.
Já a uns 200 metros da mata ouvimos as primeiras rajadas de pistola-metralhadora, de um grupo de cinco ou seis que deviam estar empoleirados no cimo das palmeiras. Sempre o mais abaixados possível e fazendo fogo de vez em quando, para nos protegermos, lá nos fomos aproximando cada vez mais. Mandámos duas ou três granadas de morteiro e uma rebentou mesmo na orla das árvores. Após meia hora de tiroteio e vendo talvez que a nossa manobra de envolvimento os pudesse vir a dominar, fugiram e nunca mais ouvimos as famosas rajadas de pistola-metralhadora, a tão característica PPSH, a costureira, pois faz um matraquear que lembra uma máquina de costura.
Depois deste primeiro incidente, continuámos a progressão atravessando a mata até encontrarmos uma estrada. Uns metros mais à frente fomos novamente alvejados por vários tiros que nem soubemos de onde vieram. Ninguém ficou ferido mas como não respondemos, tornaram a fugir, deixando-nos o caminho livre. A táctica deles foi sempre a de utilizar grupos pequenos de 5 ou 7 que, rapidamente se deslocam para qualquer lado, flagelando e fazendo parar Companhias inteiras. Como não os conseguimos ver, fogem sempre que lhes apetece. São extraordinariamente ágeis, pois por duas vezes, dois grupos deles (alguns até já usam farda camuflada) iam tropeçando nas nossas posições, mas logo que davam por isso, desapareciam com tal rapidez que pareciam eclipsar-se. Mesmo assim creio que matámos alguns.
Esta operação durou três dias, sábado, domingo e segunda-feira. O último dia foi o pior, pois choveu sempre, ininterruptamente. Actuaram mais de 900 homens e a missão que nos coube consistia em formar uma linha de cerco à volta de uma mata onde se acoitava o inimigo. Ali parados, enrolados nas capas impermeáveis que nos abrigavam da chuva que não parava de cair, por volta do meio-dia já tiritávamos de frio. Mas o pior, o que mais custou, foi o lodo e os pântanos intermináveis que tivemos de atravessar, sem qualquer esperança de amparo, sem qualquer protecção, receando a morte que nunca se faz anunciar.
Como consolo valeu-nos a habitual e sempre simpática recepção que tivemos no regresso, quando embarcámos no “Vouga”, por parte dos nossos já conhecidos companheiros destas lutas, os oficiais, os sargentos e os marinheiros daquele barco de guerra.”
Localização: zona Sul, entre Cacine e a fronteira com a República da Guiné.
Saímos daqui no nosso habitual contratorpedeiro “Vouga”. É o único navio grande que está cá, tendo chegado agora um outro que, o vem substituir, a fragata “Diogo Gomes”.
Chegámos diante da famigerada Ilha do Como, ao fim da tarde. Pelas nove da noite passámos para lanchas de desembarque. O Carvalho na mais pequena, a LDP 101 e eu e o Castro, o capitão e o grupo de comando da Companhia, na maior a LDM 202.
Subimos o rio Cumbijã e desembarcámos finalmente em terra, pelas seis da manhã do dia seguinte. Se é que aquilo se podia chamar terra. Era só água, lodo e o entrelaçado dos ramos do mangal que delimitava as margens. Atravessada essa primeira barreira, estendia-se à nossa frente um enorme arrozal, tendo como pano de fundo um formidável maciço de palmeiras e mato cerrado. Dispersámo-nos o mais possível e fomos avançando com todas as cautelas.
Desta vez foram alguns grupos pequenos que nos atacaram com tiros inofensivos, fugindo sempre quando tentávamos apanhá-los.
Já a uns 200 metros da mata ouvimos as primeiras rajadas de pistola-metralhadora, de um grupo de cinco ou seis que deviam estar empoleirados no cimo das palmeiras. Sempre o mais abaixados possível e fazendo fogo de vez em quando, para nos protegermos, lá nos fomos aproximando cada vez mais. Mandámos duas ou três granadas de morteiro e uma rebentou mesmo na orla das árvores. Após meia hora de tiroteio e vendo talvez que a nossa manobra de envolvimento os pudesse vir a dominar, fugiram e nunca mais ouvimos as famosas rajadas de pistola-metralhadora, a tão característica PPSH, a costureira, pois faz um matraquear que lembra uma máquina de costura.
Depois deste primeiro incidente, continuámos a progressão atravessando a mata até encontrarmos uma estrada. Uns metros mais à frente fomos novamente alvejados por vários tiros que nem soubemos de onde vieram. Ninguém ficou ferido mas como não respondemos, tornaram a fugir, deixando-nos o caminho livre. A táctica deles foi sempre a de utilizar grupos pequenos de 5 ou 7 que, rapidamente se deslocam para qualquer lado, flagelando e fazendo parar Companhias inteiras. Como não os conseguimos ver, fogem sempre que lhes apetece. São extraordinariamente ágeis, pois por duas vezes, dois grupos deles (alguns até já usam farda camuflada) iam tropeçando nas nossas posições, mas logo que davam por isso, desapareciam com tal rapidez que pareciam eclipsar-se. Mesmo assim creio que matámos alguns.
Esta operação durou três dias, sábado, domingo e segunda-feira. O último dia foi o pior, pois choveu sempre, ininterruptamente. Actuaram mais de 900 homens e a missão que nos coube consistia em formar uma linha de cerco à volta de uma mata onde se acoitava o inimigo. Ali parados, enrolados nas capas impermeáveis que nos abrigavam da chuva que não parava de cair, por volta do meio-dia já tiritávamos de frio. Mas o pior, o que mais custou, foi o lodo e os pântanos intermináveis que tivemos de atravessar, sem qualquer esperança de amparo, sem qualquer protecção, receando a morte que nunca se faz anunciar.
Como consolo valeu-nos a habitual e sempre simpática recepção que tivemos no regresso, quando embarcámos no “Vouga”, por parte dos nossos já conhecidos companheiros destas lutas, os oficiais, os sargentos e os marinheiros daquele barco de guerra.”
Hidra e Cassiopeia
Chegaram a
19, estávamos na Tornado. Assim que voltámos fui raptado pelos comandantes:
Isaías e Pessôa Lopes. Os dois navios estavam de braço dado no cais de Bissau.
Fiquei a par das novidades de Lisboa, por onde andava a malta do curso, etc. Só
depois me apercebi que faltava o mais importante, que se tratava de ser o
terceiro coudel de um interessante jogo de cavalos de corrida, o Totopoly. Comprado pelo Pessôa Lopes que
o descobrira recentemente, era um passatempo viciante. Com a ajuda dos
habituais gins, whiskeys e tapas, a
noite durou até quase de manhã. Sempre fui dado a jogos de mesa e fiquei
encantado com este. Não descansei enquanto não tive um, o que aconteceu anos
mais tarde em Inglaterra e fez as delícias da gente de minha casa. Jaz arrecadado
num baú mas vou recuperá-lo para os netos.
Ronco de despedida
Foi muito
concorrido. Camaradas, amigos, forças vivas de Bissau, toda a gente que
interessava esteve presente. Ementa cuidada. Um ou dois cascos de Chateau Paiol ao alcance de todos.
Largada para Lisboa
Às
despedidas esteve um mundo de gente, deixando-nos desconfiados de que gostaram
de nós e fomos úteis.
Foi de
Bandim, do cais da Sacor, onde atestámos os tanques de nafta, que saímos Geba
abaixo no dia 29 de Setembro de 1964. Eram três horas da tarde, cinco em
Lisboa.
E quando
começámos a navegar tivemos durante algum tempo a escolta que as fotografias
mostram.
O Torpedo
Rusty Nail é
um cocktail escocês que mistura
Drambuie e scotch em proporções
variáveis com o gosto de cada um, que pode ser enfeitado com casca de limão e
ainda incluir ou não umas pedras de gêlo (Straight Up Nail).
Bebida
que caiu no gôto dos oficiais do Vouga e foi sofrendo changes ao longo do terço final da estadia na Guiné, com tendência
crescente para a riqueza em etanol, maior facilidade de acêsso à vasilha contentora
e simplicidade de execução. Foi assim que se chegou à fórmula última, que os
escoceses para mal das suas vendas não sabem, mas cujo conhecimento passa agora
a ser mundial:
- Tome-se um copo para água, da
palamenta naval;
- Deixando dêdo e meio de borda
livre, vertam-se em iguais quantidades, Drambuie e whiskey escocês (velho de
preferência).
É tudo.
Nesta versão passou a chamar-se Torpedo, mas há quem prefira TNT.
Foi através
deste verdadeiro rabo de galo
generosamente servido a nós próprios e a muitos amigos de visita, que alguns
estarão para saber a razão do sono tão profundo de uma certa noite.
Estávamos
treinados e raramente houve seqüelas entre nós.
Estávamos no Funchal, a poucos dias de casa e o Imediato recebia a visita do
seu homólogo do HMS Protector. Como era de praxe, cada um se entreteve com o
seu Torpedo, o que no britânico teve um efeito tão deletério quanto rápido.
Cambaleante,
percebendo o veloz efeito inebriante da beberagem, terá querido retribüir a
gentileza e convidou o Imediato para a câmara do seu navio, atracado à nossa
pôpa. Este, de saída disse-me ao que ia e que não demorava. Quando achei grande
a demora resolvi ir ao Protector. O Imediato estava knock-out. Não sabia o que lhe tinham dado a beber. Sabia apenas
que bebera pouco e que estava zonzo de todo. Amparei-o até ao Vouga. Vingança
de inglês. Um dano colateral.
O Juca
Sob tutela
do Bandeira, o Juca veio para Lisboa. Em pouco tempo os milandos que o primata lhe
criou em casa agravaram-se ao ponto de a serviçal lhe ter pôsto o dilema: ou ele ou eu! Nada sei da natureza dos
problemas, mas não me admiraria que tivesse relação com odor de fêmea. Não
houve escolha. O Bandeira terá sem sucesso tentado dar o bicho ao Jardim
Zoológico. Conseguiu entretanto que o Comandante Busttorf Guerra o aceitasse na
sua quinta para os lados de Azeitão. Não durou muito. Repetiram-se
incomodidades com a empregada e o Juca voltou para o Bandeira, que o terá
devolvido à Guiné.
Funchal, Outubro de 1964
Alugámos um
automóvel e passeámos pela Madeira.
15 de Outubro de 1964
Já com oito
meses – quase um homem – conheci o Pedro.
À guisa de posfácio
O corpo,
gelha aqui gelha ali, encolhendo-se apertado na pele lavrada, desajudado
adentro no ranger silencioso das engrenagens, gastas as almofadas da coluna que
o reduzem, mal azeitados os tornéis e cardãs, cada vez mais hirtos; o corpo,
apequenando-se, constringe a alma, que em contra-ciclo, sempre desperta, cresce
a cada vivência, a cada nova experiência, busca espaço e procura libertar-se.
Não tendo
conseguido ainda, continua a guiar-me em cada testemunho escrito, repositório
de memórias alinhavadas sob um norte titulado de ‘Enquanto me lembro’.
Que neste
caso bem melhor seria “Enquanto nos lembramos” para abarcar os que me ajudaram
a lembrar.
Mezena
CLV, 12 de
Março de 2014
ANEXO ALFA
Galeria com Bajudas
ANEXO BRAVO
Galeria com Bojudos
Neto Valente
ia nos cinqüenta e dois anos quando largámos de Lisboa. Já se não lhe vislumbrava nenhum resto da
elegância que decerto fôra a sua quando rapaz. Como muitas vezes acontece não
perdia a esperança de voltar a caber nos fatos pendurados no guarda-roupa,
conservados em naftalina. Anos depois, numa das metamorfoses do Corpo de
Marinheiros de que foi 2º Comandante e estando eu na 2ª Repartição, constatei
isso mesmo. Mantinha na residência oficial um aparato de treino de remo que
utilizava ao fim do dia e com vaidade confidenciava-me os êxitos que ia
conseguindo. Lembro-o com amizade.
Afora ele,
todos ao tempo se mantinham desenxovalhados, com silhuetas, senão de manequins,
pelo menos muito desempenadas.
Afinidades e
afectos tornaram o agrónomo Silveira Ramos e o clínico Acácio Branco, sócios de mérito
do pequeno clube que a Câmara de Oficiais passou a ser, quando com regularidade
anual, decidiu reünir-se em convívios gastronómicos nas noites de Lisboa. Alguma proximidade trouxe também até nós o Perry por duas vezes. Mais recentemente, com muito
acêrto, decidimos passar os nossos convívios para dia claro e almoçar apenas.
Primeiro em
grandes festins, muito e bem regados. Agora, recorrendo mais ao peixinho
grelhado, com excepções, claro, como foi o arroz de lampreia de há um mês; embora
não se dispense um bom vinho de mesa, há garrafas que não se acabam e há mesmo
quem já beba água.
Tempo houve
em que continuávamos a querer fazer prova da nossa jovialidade bebedora.
Lembro-me de após um opíparo jantar - Março de 1982 - termos ido para a casa do Bandeira, um
solar no Bairro Alto que conservava chumbadas nas paredes do pátio as argolas
de ferro para amarrar as bêstas. Instalou-nos numa espécie de grande cofèrdame
logo abaixo do telhado, todo forrado a boa madeira crua, onde continuámos por
horas as nossas libações e inteligentíssimos
diálogos. Quando o dono da casa bocejou, reagimos com prontidão ao sinal e
saímos. Para onde? Para casa do Pombo que não distava muito. Mais umas quantas
horas… É no fim destas reüniões que se amontoam as asneiras. Démos cabo de
todas, não sei quantas garrafas, da então ainda soberba reserva de Carvalho
Ribeiro & Ferreira a recato em casa do moço. Saímos era já dia. Não sei o
que ganharam os outros. A mim coube-me uma inesquecível dôr de cabeça.
Entretanto a
Terra deu cinqüenta vezes a volta ao Sol e dos que restam, poucos escaparam à
papada e ao inchamento das aduelas. Daí que ao incluir aqui fotografias nossas
do post-Guiné, tenha chamado a este
anexo, ‘Galeria com bojudos’. Não fica mal, pois não?...
Aqui ficam
alguns registos:
Março de 1982.
Março de 1983.
29 de Março de 1985. Lisboa, num
restaurante chinês na Duque de Loulé (?)
15 de Abril de 1988
Abril de 1989
Martins Gomes e Bento foram a casa do Comandante mas não conseguiram arrastá-lo. Já não se sentia em condições de os acompanhar ao restaurante.
Lisboa, 16 de Abril de 1993, ao Arco do Cego (?)
Lisboa, 10 de Março de 1994.
Lisboa, ‘O
Arpão’, 3 de Março de 1995
Lisboa, ‘O
Apuradinho’, 15 de Março de 1996
Lisboa, ‘O
Apuradinho’…
Marrazes,
‘Tromba Rija’, 20 de Outubro de 2001
Celeiro,
‘Pérola do Fètal’, 14 de Maio de 2003
Lisboa. CMN,
29 de Abril de 2005
Cascais,
Messe, 9 de Abril de 2008
Lisboa, CMN,
12 de Janeiro de 2012
Lisboa, CMN,
6 de Fevereiro de 2014
fim
Depois do fim
Lisboa, CMN, 3 de Setembro de 2014
O escrito acima mereceu comentários de familiares de oficiais
de marinha aqui presentes, alvo de prosa ou apenas em fotografia. Foram os casos
do comandante do ‘Vouga’, Rui Adélio Neto Valente e do comandante da ‘Deneb’,
José Manuel Burnay.
O teor dos comentários e a nossa curiosidade levaram-nos a
convidá-los para o mais recente convívio que foi por isso enriquecido com a
presença de Miguel Neto Valente e Suzana Neto Valente, netos de Rui Adélio; e
Teresa Burnay, filha de José Manuel.
Gostei sinceramente do desfiar das suas recordações, em especial acerca da Guiné onde, por pouco não nos encontrámos. É a propósito da revolta da Amura que resolvi escrever-lhe. Contou-me, anos mais tarde,o governador Vasco Rodrigues,camarada nosso conhecido pelo Benfica que, quando foi informado da situação, mandou sair a banda do Exército que tocou pelas ruas de Bissau, fazendo esmorecer todo o ímpeto guerreiro que então já se fazia sentir
ResponderEliminarAbraço do Encarnação Gomes
Muito obrigado por partilhar com tanta riqueza uma importante fatia da história deste nosso País mas também da dos muitos que a viveram com sacrifício e muita aventura. Foi enorme a emoção e o prazer ao reconhecer em fotografias que não conhecia o meu pai, José Manuel Burnay, que infelizmente morreu em 11/1/2011.
ResponderEliminarMuito Obrigado,
Teresa Burnay
Ainda se reúnem com toda a certeza, como sempre o fizeram ao longo de todos estes anos. Naturalmente, manifestar o apreço pela estima ao meu avô.
ResponderEliminarDisponível, se assim o entenderem, para estar presente nalguns desses momentos.
Grato pela lembrança.
Miguel Neto Valente - miguelnetovalente@mnv.pt
Adorei ver as fotografias e alguns relatos de tempos passados com o avô Rui Neto Valente. Obrigada por partilharem esses momentos. As lágrimas de saudade do meu querido avô são uma constante. Era o meu Comandante preferido, e vejo pela 1º vez o macaco que me foi prometido mas...nunca o levou para Lisboa. Seria o Juca?
ResponderEliminarObrigada a todos pela amabilidade das lembranças.
Suzana Neto Valente
O convite endereçado aos netos de Rui Adélio Neto Valente, foi um gesto de grande dignidade, que honra o meu Avô (homem por quem tenho uma infinita admiração), bem como os seus netos e toda a família. Agradeço, pois, em nome da mesma, o convite, para um momento digno, a cujos Autores e convivas agradeço a oportunidade, em especial ao Autor do presente Blog, cujo conhecimento permitiu aqui chegar.
ResponderEliminarFica a promessa de fazer chegar dezenas e dezenas de registos fotográficos do «Vouga».Bem Hajam!
Bom dia. Permitam-me dar os meus sinceros parabéns pela fantástica reportagem sobre o contratorpedeiro "Vouga" nas águas da Guiné.
ResponderEliminarUm documento muito interessante e importante.
Sou formado em História e investigador. Gostaria de saber se existe possibilidade de contactar com alguns dos intervenientes nesta odisseia.
Grato pela atenção,
Artur de Jesus
(arturjesus77@gmail.com)
Este comentário foi removido pelo autor.
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