Afazeres domésticos
Pensar não dói
Cada vez menos crescido, a vida vai-me sendo pequenina, pobre,
confinada, repetida e chata. Custa-me caminhar; e estar de pé, só por pouco
tempo. Falta-me energia para as tarefas simples do qüotidiano. Vagueia longe a
vontade de fazer o que seja, mas, mais estranho ainda, também não me apetece
não o fazer. Uma pequena coisa aqui, uma pequena coisa ali, sim, é verdade que
acabo por ler uns livros, oiço música – cada vez menos –, uso o computador, gasto algum tempo frente ao
televisor… Mas vida activa, com dispêndio real de energia, está reduzida a
pouco mais do que uma lembrança. A companhia da senhora cá da casa e a sua
ajuda constante, são a evidência maior da minha dependência crescente. Muita sorte,
o tê-la, sempre generosa e pronta a auxiliar-me.
Resta-me a actividade de pensar. Então… penso. Penso,
imagino, recordo e forço-me a lembranças com substância bastante para merecerem
narrativa e poder dar-me ao prazer de as passar a escrito.
Servir
Servidão, servo, servidor, servente, serviçal, terminologia
que radica na sujeição a um senhor que obteve direitos e os exerce sôbre quem os
não tem. Adqüiridos de início pela posse da terra – à fôrça – os direitos de
senhoria, baseiam-se hoje, quase só, na necessidade de meios de uns, em relação
aos que os têm em excesso – empregados e empregadores.
O conceito de serviço, também êsse evoluiu e com êle os
termos que identificam quem serve. De escravo, servo, criado e ajudante, se
passou ao suavizador eufemismo de colaborador ou assistente. A inicial ausência
de lei que protegesse os serviçais, também deu lugar a normas reguladoras do
relacionamento entre quem trabalha e quem é servido, normas que os diferentes clubes em que se filiaram, tentam todo o
tempo ajustar aos seus interêsses.
Tempos de hoje
Ao assalto da vèlhice, que redobra a cada dia, tem valido a
ajuda de gente capaz e disponível para tarefas de que vamos desistindo, e dá contributo
inestimável para o ambiente bonito e agradável de que continuamos a disfrutar. Quando
comprei o nosso quintal, foi no desejo de cultivá-lo – aprenderia fazendo –
desejo ràpidamente desfeito pelo medo que me sobreveio do enfarte sofrido há
vinte e tantos anos. Primeiro o senhor Joaquim Maria,
depois o João Lamêgo,
por um curto período o Zé Carlos e a seguir – até hoje – o
Augusto Santana,
têm sido os hortelãos a cuidar das árvores, algumas ainda
plantadas por mim; e do hortêjo, a mando da Noélia que além disso se ocupa das
ervas aromáticas e das flôres. Do interior da casa, só há pouco tempo ela aceitou
dever coïbir-se de esfòrços maiores. Duas manhãs por semana, temos então a
ajuda de uma môça brasileira, de recente chegada a Portugal.
Tempos atrás
Infância
Na minha primeira infância, quem servia em casas de família,
eram as criadas. Tivemos uma, durante pouco tempo, a Maria,
uma môça espigadota que ajudava minha mãe em tarefas de
limpeza e tomava conta deste menino. Recordo-a mal, mas tenho presente o
episódio caricato que me fez viver o papel de ‘voyeur’ involuntário. Tendo
minha mãe saído a compras, estávamos no quintal com mais uma criadita vizinha,
sua amiga. Conversavam as duas. Pelo que se seguiu, não é difícil concluir ter
o tema da conversa sido a mudança que o crescimento opera nos corpos e a
chegada dos primeiros anseios juvenis. Que me lembre sem causa aparente, a
Maria dirigiu-se-me:
_ Queres ver?...
Queres ver?
…e acto contínuo, abriu a roda da saia sôbre a minha cabeça.
Surpreendido, vi, tive que ver, a desagradável imagem de uma fenda
ensangüentada, de vermelho a fugir para
escarlate; e ainda, o desagrado de cheirar um fedorento odor desconhecido.
Tirado o retrato à cena, ficou-me a noção de que aquela novidade teria de ser assunto
tàbu e guardei silêncio.
Anos depois, tinha minha irmã nascido
havia pouco, apareceu outra criadita de servir, outra Maria. Passou sem deixar
rasto. Deixou-nos, por iniciativa de minha mãe, quando tive garrotilho, para
não correr risco de contágio.
Angola
Moçâmedes
Em Moçâmedes, enquanto vivemos na Capitania, ocupando parte
da residência do rés-do-chão, a cozinha e os sanitários eram comuns ao escrivão
– meu pai – e ao patrão-mór. À beira das horas de comer, não era raro ver
frente ao fogão, não só dois cozinheiros como um par de patroas. O nosso cozinheiro
era o Victorino. Bom cozinheiro. Foi êle que nos deu a conhecer a moamba de que
só gostámos à segunda vez, quando substituiu por galinha, o pichelim rançoso da
primeira.
Porque estávamos apertados nas duas divisões que nos cabiam
e não era amigável o relacionamento entre as famílias, meus pais decidiram
alugar casa. Não foi fácil. Conseguiram uma construção velha, na avenida, ao
lado da farmácia – Soares Pinto (?) – com o interior bem conservado e um grande
quintal. Aí tivemos dois criados: primeiro, o Chirumbo, de que não guardo
recordação, mas tenho fotografia;
que nos fez boa companhia e durante mais
tempo.
Baía dos Tigres
Na Delegação Marítima, onde vivi três semanas, quem nos
servia era o Henrique.
Desterrado, condenado, cumpria pena por ter matado a mulher.
Com o mar a Oeste e um deserto do outro lado, esta terra, nascida da abundância
de peixe na imensa baía, recebia gente sentenciada pela justiça que ali podia
cumprir castigo sem estar na cadeia. Era o caso do Henrique. Asseado e
diligente, era também um bom observador: nunca me tendo visto, reconheceu-me,
ao olhar para o avião recém-pousado de que desci sem ser esperado, quando
caminhava pela pista que era também a única rua da terra, porque o fazia com andar semelhante ao de meu pai.
Lobito
O Lobito, cidade
conhecida como a sala de visitas de Angola e porto mais movimentado da costa
oeste-africana, foi onde por mais de três anos residiram meus pais e minha
irmã. Eu, a estudar em Sá da Bandeira, só nas férias os acompanhava e por isso
tenho apenas uma vaga idèia de quem nos serviu. Havia um cozinheiro que, à
tarde, quando ia para casa no Lobito-Velho, era portador de um papelinho – um
vale – em que minha mãe indicava a carne que desejava para o dia seguinte. Ao
passar pelo talho, enfiava-o na fenda para isso praticada na porta e o vale
caía na caixa das encomendas. Ao voltar, de manhã, a carne estava cortada e
embrulhada. As contas eram acertadas ao fim de cada mês. O processo funcionava
muito bem. Tínhamos também uma mulher que lavava e passava a roupa. Muito
alegre, cantarolava o tempo todo. Mas tinha o seu prazer maior, no grosso charuto
que fumava soprando o fumo, com o morrão dentro da boca, enquanto passava a
ferro. Era a Isabel.
Houve também um outro Alfredo, êste de má memória.
Transportando da cozinha uma panela de sopa fervente para o jantar, despejou-a
sôbre a Salomé, provocando-lhe no peito queimaduras de primeiro grau que arrepanharam
a carne e deixaram cicatrizes para a vida. Custa-me aceitar que o tivesse feito
por maldade, mas a verdade é que ouvido no Posto Administrativo da Canata, além
de ter sofrido palmatoadas, ficou preso por algum tempo.
Faro
Nos três anos que vivemos em Lisboa e durante mais algum
tempo depois da mudança para Faro, minha mãe, ela própria, deu conta dos
afazeres domésticos. Mas, quando se agravaram os sintomas da doença que a
levou, foi contratada a Odete. Vivia no Chalé das Canas e vinha a nossa casa
todos os dias. Assim foi, quase até ao segundo casamento de meu pai.
Num mês de férias em que entre sol e banhos de pancada na rebentação
passei todas as manhãs na ilha, e a que invariàvelmente se seguia a intimidade algo
rápida de um encontro entre lençóis, ao chegar a casa, depois de um duche
reparador, tinha à mesa uma frigideira de barro com alto e enorme bife em
sangue que ainda gemia protestos da fritura. A Odete cuidava bem do menino
Julinho. Depois de uma soneca ficava como novo.
Almada
Belíssima casa, aquele terceiro andar na Frederico Ulrich,
com cinco assoalhadas, um átrio e ampla varanda. De renda limitada – um conto
cento e dez – tive de comprometer-me a pagar um conto e duzentos para conseguir
arrendá-la. Apartamento novo, a estrear, com mobílias novas também elas, tal
como os cortinados e habitado por uma parelha acabada de casar, que tinha muito
mais que fazeres do que sujar a casa, não havia necessidade de ninguém de fòra
para trabalhos domésticos. Quando nasceu o Pedro, porém, para aliviar a Noélia-mãe,
contratámos uma mocinha, a Rosinda,
que deu a sua ajuda por poucos meses.
Legou-nos a lembrança de um medo que ali viveu: num dia em
que estava só com o Pedro, a campaínha tocou, assomou-se ao visor da porta e
viu um homem muito grande. De facto, o meu tio Zé Grelha era um homão a roçar
dois metros, largo, cuja visão a amedrontou de tal maneira que se fez de morta.
E quanto mais a campaínha tocava, mais morta se sentia. Até que deixou de
tocar. Só mais tarde, quando meu tio tornou e foi a Noélia que lhe abriu a
porta, ficou esclarecido o pavor da miúda:
- Minha senhora, era
um gegante… não abri.
Alfeite
Sem que nada faça para isso, parece haver em mim uma
atracção especial para ser alvo de casos fora do vulgar. Quando em 1965
chefiava as 1.ª e 5.ª Brigadas da 2.ª Repartição da Direcção do Serviço do
Pessoal, tive necessidade de usar as licenças a que tinha direito, para auxiliar
minha mulher à espera do segundo filho e sem mais ninguém disponível para a
apoiar na situação. Não consegui convencer o Director do apuro em que estava.
Numa altura também ela difícil no serviço, por via da nomeação de Fuzileiros
para as guerras em África, foi-me negado entrar de licença. Mas… mas, o
Director, tinha afinal percebido o apêrto e congeminara uma solução: deu ordem
verbal ao José, um velho 1.º Criado que lhe cuidava da residência oficial e lhe
servia os almóços, para – calcule-se – apresentar-se em minha casa e ali
prestar serviço. Assim foi durante alguns dias. Eu, um jovem primeiro-tenente,
tive, sem querer, ao meu serviço na residência, o 1.º Criado de um
capitão-de-mar-e-guerra, um vèlhinho cambado, a caír para bisavô. Não conheço
caso semelhante.
Quando regressei da América, acabado mais um aperfeiçoamento,
puseram-me na Escola de Artilharia Naval, ensinando o que tinha aprendido. A
escola fazia parte do Grupo Dois de Escolas da Armada, pendurado no ainda Corpo
de Marinheiros que dispunha de três moradias para os seus oficiais, no meio da
mata do Alfeite. Uma delas estava vaga. Já com dois filhos, o dinheiro
tornara-se mais e mais escasso. Seduziu-me poupar a renda de Almada e
mudámo-nos. Infelizmente. Um ano depois fui destacado para a ‘Gago Coutinho’,
ainda em acabamentos em Alcântara e perdi direito à casa. O melhor que consegui
então foi o rés-do-chão de uma moradia no Feijó, com seis assoalhadas e direito
a jardim, mas que em vez de um terço do ordenado como acontecia antes, me levava
agora quase metade, em favor do cabo artilheiro meu senhorio, que vivia no piso
de cima. Belíssima casa, é verdade, mas não a aguentámos senão meio ano. Em
Fevereiro de 1968, começando enfim a encontrar rumo, alugámos um sexto andar no
Laranjeiro, num prédio habitado por muita gente de marinha, que tivemos por
bastos anos. Animado a contar das trocas de morada, já me esquecia do que
queria dizer, com enquadramento no tema. Ao tempo em que morei no Alfeite, casa
muito grande dividida por dois pisos, tivemos uma mulher-a-dias, Lurdes, alta,
esgalgada e trabalhadora que me era especialmente antipática. De tal modo que a
não deixei aquecer o lugar. Por a casa ser do Estado, tive ainda ao meu serviço,
um impedido, o João,
grumete que nem sequer sei bem o que fazia.
Sei, porém que ensinou ao Pedro o primeiro palavrão que
soube dizer, ou melhor, que não soube dizer, pois quando se aborrecia, com ar
muito convencido, atirava agastado :
- Nera, nera!...
Laranjeiro
Outra vez, uma Maria. Quarentona, casada com um Sargento de
Abastecimentos e moradora na nossa rua, levando às vezes uma filha ainda
criança consigo. Além do amanho de sua casa, conseguia tempo e energia para
ajudar a cuidar da nossa, por sete escudos à hora. Ridiculamente insignificante
para os preços de hoje – três cêntimos e meio – era ao tempo um valor justo.
Esta senhora, muito competente e esforçada, chegou, a levar os nossos filhos
consigo, dar-lhes de comer e acompanhá-los, por umas poucas vezes em que
tivemos impedimentos inesperados.
António Enes
Pela sua natureza, a Marinha chegava sempre primeiro a
qualquer lugar. E se o local descoberto fôsse atractivo e viesse a ser povoado,
ocuparia a área que melhor fizesse a ligação entre mar e terra, que se tornava
o pólo à roda do qual crescia um burgo. Era onde se fundavam as Capitanias, com
os seus cais ou as suas oficinas e onde se construíam residências para quem
nelas servisse. Em António Enes a área ocupada era grande: tinha rampa,
estaleiro, oficinas, quatro residências, o edifício da Capitania ela própria, e
um quintal imenso com jardim. Entre os quarenta marinheiros, havia calafates,
carpinteiros, ferreiros, mecânicos, alfaiate, cozinheiro, todos escolhidos
decerto na mira dos seus ofícios. De entre os restantes saía o pessoal para
guarnecer as embarcações e também um contínuo, um jardineiro, um lavadeiro e
dois criados. Sendo pertença do Estado, o espaço, os edifícios e seu recheio,
as embarcações e os automóveis, ao pessoal competia a manutenção e
operacionalidade de toda a propriedade. Essa a razão porque, para boa
representação da função Capitão do Porto, o trabalho na sua residência estava
atribuído a um cozinheiro, dois criados, um lavadeiro e um jardineiro. Quase
todos com muitos anos de serviço, tinham conhecido vários comandantes. No
essencial sabiam bem as suas funções e formavam uma equipa coesa. A sua fé
comum no Islão e a prática dos mandamentos do Corão contribuíam para a coesão
do grupo.
Ganhavam pouco, vivendo em permanente dificuldade
financeira. Queriam arranjar ou melhorar as suas casas no Inguri, mas quem
vendia os materiais – João Ferreira dos Santos – só o fazia a pronto. Propuseram-se
pagar em pequenas prestações, mas a loja não aceitou. Meti-me ao barulho e
avalizei todos os empréstimos que fôssem feitos. O empenho da minha palavra
resultou. Os marinheiros fizeram as obras que quiseram em suas casas e as
prestações foram religiosamente pagas no prazo. Ganhei amigos, imensamente
agradecidos.
O cozinheiro chamava-se Abudo Ossufo.
Era um homem grande, com papada e bochechas gordas, de bondoso
olhar estrábico. Cozinheiro a bòrdo de barcos mercantes ingleses, aprendera as
técnicas básicas de cozinha aplicadas às grandes quantidades. Usava agora o seu
saber para satisfação de uma só família, juntando-lhe o delicioso tempêro
macua. Muito a propósito, das duas altíssimas palmeiras de dendém à frente da
casa, colhiam-se as amêndoas que depois de fervidas e pisadas, eram espremidas
em panos de onde escorria o saboroso óleo, essencial em alguns dos seus paladares.
Cozinhava bem, ao ponto de o Administrador me pedir que o deixasse ir fazer a
comida na sua residência, quando recebia gente grande. Tratava os nossos filhos
como um avôzinho. Tinha a paciência de pisar presunto e empastá-lo em manteiga
para lhes barrar o pão. Fazia minúsculos pastéis de bacalhau e croquetes,
porque assim ‘menino não estraga comida’. Chegaram a ter pequenos
aventais de ganga azul, que vestiam para o ajudar na cozinha, brincadeira que
os miúdos adoravam. Quando metiam a mão onde não deviam, empunhava um grande
facalhão, ameaçando-os de lhes cortar a pilinha. Era um espectáculo vê-los
fugir.
O criado mais antigo, ainda novo mas já com bòchinha, andar
compassado e olhar atento, era o Àmadi Àiuba.
Dirigia com firmeza todo o trabalho de limpeza e arrumação,
e servia à mesa com muito aprumo. Cuidava da despensa e do frigorífico. Êste, era
um electrodoméstico maningue antigo,
que para iludir as freqüentes falhas de electricidade, funcionava a petróleo
iluminante. Se a torcida circular não tinha um corte horizontal perfeito, o
petróleo ardia mal, fumava e não havia frio. Ou era o Àmadi a tratar disso ou a
coisa corria mal. Os miúdos tinham as suas preferências: o Pedro chegava-se
mais ao Àmadi que lhe contava compridas histórias de aventuras com bichos, para
o ajudar a adormecer depois dos ataques de asma. Quando julgava tê-lo
conseguido e deixava pender a cabeça, ouvia a sacramental pergunta: - E depois?
Sàtique Sàlimo, assim se chamava o outro criado.
Olhos arregalados, dentes à mostra na boca sempre aberta num
sorriso, de andar saltitante, avançava veloz para onde quer que fôsse, no
cumprimento de uma ordem, mesmo que a não tivesse entendido. Era giríssimo este
Sàtique. Preferido do Paulo, também êle mais dado à galhofa. Secundava bem o
Àmadi. Quando eu punha no gira-discos Simon & Garfunkel a rodarem
‘Cecília’, o Sàtique entrava em transe, abria inda mais o sorriso, dispunha um
lenço no chão, saltava a compasso sôbre êle sem o pisar, e meneando ombros e
ancas com o requêbro africano e a elegância macua, ao sabor da música, dançava
até à última nota. Até o Àmadi, se estava por perto, comparecia, ganhava leveza
e ensaiava com graça os seus passos de baile em pandã com o outro. Parávamos a
vê-los.
O lavadeiro – mainato – Molide Muquereza de seu nome,
era um
homem débil, muito velho.
Tinha o seu quê de masoquista, a teimosia com que insistia
em trabalhar. Sofria de asma que a queima do carvão no pesado ferro de engomar
atiçava. Chegámos a levá-lo ao hospital, mas sem resultado visível. Dávamos-lhe
então a medicação do Pedro que o aliviava nas crises. Lavava tudo à mão, com a
lentidão própria da idade, secava no estendal e còrava, quando era caso disso –
as minhas fardas – sôbre o capim rasteiro do quintal. Tive sempre a roupa
impecável.
Por fim, o jardineiro – Livala Sussema.
Nunca lhe vislumbrei dotes para o mister que exercia, mas a
verdade é que não seria eu a fazer melhor; além de o jardim manter um aspecto
bastante aceitável. Sempre a tinir, a pedir adiantamentos, ora porque tinha
emprestado dinheiro ‘a meu amigo’,
ora porque um grupo de marinheiros se cotizara para fazer de um deles, o senhor
endinheirado do mês, ou por outros motivos que a invenção lhe ditava. Mas o seu
grande problema, quase diário, era outro: ter com que pagar pilhas novas para o
rádio que para todo o lado o acompanhava musicando para quem estivesse em redór
.
Quelimane
Enorme o casarão que na marginal dava morada ao Capitão do
Porto. Já o quintal era modesto em relação, mas com área suficiente para uma
dúzia de árvores, entre as quais uma mangueira que pendia para a piscina
municipal e dava uma delícia de mangas – as melhores que já comi. Dois pisos e
muitas divisões, tornavam trabalhosas limpeza e manutenção, feita por dois
criados. Não havia jardineiro, pelo que no quintal abundava o capim.
A cidade é maioritàriamente habitada por nativos de idioma
chuabo. Sem os constrangimentos que aos macuas o Corão impõe, os chuabos podem
beber vinho; e quando o fazem, são incontidos por vezes. Sentimos muito essa
diferença, com que tivemos de lidar nos dias de enfrascação do cozinheiro e do
mainato.
Alberto Casamento – assim se chamava o cozinheiro. Não
cozinhava mal, mas não tinha o apuro a que vínhamos habituados do mundo macua.
Como o meu sucessor no Parapato tardava, o Abudo estava livre, e resolvi
pedir-lhe que viesse uns dias para Quelimane a expensas minhas. Esteve quase um
mês. Pusémo-lo a dirigir a cozinha e a ensinar ao Alberto as nossas
preferências gastronómicas. Não gostou, mas aprendeu qualquer coisa e melhorou.
O lavadeiro – Sopinho Falacomigo – tratava bem da roupa
quando não estava escarado, caso em que o melhor era mandá-lo para casa, quando
não fazia sala com o Alberto e acabavam os dois em fraternal bebedeira. Com
alguma paciência, tê-los-ei levado – talvez – a guardarem a vinhaça para longe
do serviço.
António Bazo, era um criado muito bom. Sabedor e eficiente,
mas mais do que isso, um homem muito adulto e leal. Quando chegámos a
Quelimane, tinha êle sido substituído pelo Albino e passado a integrar o troço
de mar, onde não só se sentia, como estava de facto deslocado.
Servir na residência representava uma promoção. O Albino
sabia-o, e exibia isso no porte pedante, nos óculos escuros e na bicicleta sempre
empurrada. Não me lembro de o ver pedalar. Como entretanto o desempenho me provocasse alguns desagrados procurei substituto. Todos me aconselharam o
António Bazo. Tinham razão. Coitado do Albino… andou murcho por algum tempo.
O Gusmão era o segundo criado. Simpático, muito activo,
muito risonho, não fazendo demasiado uso da cabeça, mas sempre pronto… uma
edição chuabo do Sàtique. A seu pedido, démos-lhe nome para baptizar uma filha
nascida durante o nosso tempo de Quelimane: Luísa de Gusmão.
Beira
A circunstância infeliz de se ter süicidado o camarada que
capitaneava a Beira, levou à minha nomeação para o cargo, em acumulação com
Quelimane. Andei cá e lá de Junho a Dezembro, parando mais na Beira. Porto de
muito movimento, levou a um rápido crescimento da cidade à sua volta e empurrou
as estruturas da marinha para o meio do burgo. Sòzinho, não me apetecia ir
comer na casa deserta. Descobri então um restaurante, Johnny (O Grego), onde comi
até me saciar de ostras. Travessas delas, de bom tamanho, cruas, abertas em
meio de cubos de gêlo e rodelas de limão. Um petisco. Passei a comer mais em
casa quando constatei que o Jó era um bom cozinheiro. José e Henrique, os
criados.
Quando tive a Noélia comigo e recebemos amigos e conhecidos,
só tinha que dizer ao Jó quantos eram os convidados e para que horas. O resto
era com êle. Fazia questão.
Sempre em Quelimane, em 1975 acumulei ainda com o Chinde,
por pouco tempo e sem história neste tema.
Olhão
A residência ocupava parte do primeiro andar do edifício da
Capitania. Com os miúdos já crescidos, era menos difícil manter as coisas
limpas e arrumadas. Mesmo assim, acabámos por ter a ajuda da dona Fernanda.
Convidados para apadrinhar-lhe a filha Paula no casamento, acabámos
compadres. Tivemos uma bôda muito caprichada nas Pedras d’El-Rei.
Moçambique
Adido de Defesa
Já com o Mazda e alguma bagagem em Moçambique à nossa
espera, não havia meio de Samora assinar a aceitação do meu nome para Adido de
Defesa na Embaixada de Portugal em Maputo; e foi afinal Chissano, logo que
Chefe de Estado, a conceder-me o ‘agrément’. Chegámos em Novembro, pela fôrça
do calor. Sucedi ao Velasco, o primeiro no cargo, que me deu alojamento na sua
residência durante a passagem de testemunho. Ao serviço, um criado, o Estêvão,
moço novo, despachado, na cozinha como no resto. Tinha
grande vaidade nas suas bananas fritas regadas com caramelo, sobremesa que
servira a Ramalho Eanes quando êste, uns dias em Moçambique, ali se hospedara. Dizia
que lhas servia todos os dias. A verdade é que as bananas eram de facto uma
delícia. Por influência do Velasco junto de meios diplomáticos sul-africanos, o
Estêvão conseguira um trabalho na nossa embaixada em Pretória e aguardava seguir
a todo o momento. Quando aconteceu, indicou-nos para o substituir, um conhecido
seu, o Chirindze. De sorriso rasgado, menos diligente, cantarolando ou
ensaiando passos de dança, lá ia conseguindo, com falhas de vez em quando,
satisfazer que bastasse. Mas não tardou, entrou num negócio e despediu-se.
Negócio que não durou muito. Voltou a servir, em casa da nossa amiga Arlete
Amaral, de onde em pouco tempo se mudou para a cadeia por lhe ter roubado
setenta contos. Indicado pelo Chirindze ao despedir-se, apareceu-nos então o
seu primo, João Uache Buène.
Com mais de trinta anos, homem feito, pastor Adventista do
Sétimo Dia bem considerado na sua igreja, tinha sido dono em Inhambane de um
restaurante herdado de um português que engordara o êxodo das colónias. Vale a
pena contar que depois de ali ter sido obrigado a dar de comer, de graça, a
gente da Frelimo, se viu esbulhado do próprio restaurante, não obstante ter a
documentação que o anterior dono tivera o cuidado de lhe deixar e provava a
doação. Impecável na execução de qualquer tarefa, o João esteve connosco até ao
fim. Embora lhe pagasse salário superior ao comum, o que ganhava mal chegava
para o pão dos quatro filhos, que separado da mulher, tinha a seu cargo. E se
precisasse de roupa, compraria no máximo umas calças de ganga azul de marca
branca. Por isso lhe dávamos géneros: arroz, azeite, óleo, sabão, etc. Com
freqüência revistado por gente armada da Frelimo quando ia para casa, era
roubado, com a desculpa de não acreditarem na origem dos bens.
Passou então a
Noélia a levá-lo no Mazda até Polana-Caniço quando lhe queria dar coisas. Muito
asseado, desfazia-se em agradecimentos quando lhe dávamos um sabonete ou uma
embalagem de pó-de-talco que usava com fartura.
Já de volta, vivendo na Calvaria, recebemos a visita de bons
amigos de Maputo, que do Canadá iam de férias a Moçambique. Foram portadores de
ofertas nossas para o João – roupas para os miúdos, algumas lembranças e,
claro… sabonetes. Pois na volta, trouxeram-nos o agradecimento sob a forma de
caju e arroz, de descasque caseiro, que êle sabia serem do nosso agrado. Uma
delícia.
A importância de ser
Comandante
Raro era o dia em que não estávamos convidados para recepção
em embaixada ou na casa de alguém, fôsse êle ao jantar, almôço ou desoras, ou
ainda ocupados nalguma visita oficial. Quando sòzinhos em casa, comíamos numa
mesinha redonda, parte da mobília da pequena e confortável saleta com vista
para as avenidas. Tínhamos escolhido as posições em que nos sentávamos, onde o
João dispunha cuidadosamente os nossos talheres e outros aprestos, até ao
imaculado guardanapo. Se alguma obrigação me fazia ausente à refeição e a
Noélia resolvia sentar-se no meu lugar habitual, aí, a coisa complicava-se.
Para o João, aquele era o meu lugar, estivesse eu ou não presente.
- Êsse é lugar de
Senhor Comandante!
E, sem apêlo, servia a Noélia no seu lugar de todos os dias.
Como se estivesse escrito. Sem remédio.
Mas havia mais.
O João Buène, cuidava da roupa que lavava e passava muito
bem. Acontecia por vezes ter a Noélia necessidade urgente de uma peça de roupa,
quando êle passava uma coisa minha.
- João, passe-me já
esta saia.
- Senhora, estou
passar roupa de Senhor Comandante.
- Pode passar depois.
Agora passe-me a saia.
- Vai passar depressa.
Há-de ter tempo… primeiro Senhor Comandante.
E não desbancava. Nada a fazer. Ser Comandante, era assim!
- Ah! Ganda João Buène!
José Guerreiro
Calvaria, 1 de Agosto de 2018