Fim-de-semana
Um baile
O crepúsculo ia no fim, chegava a noite. Num 
relance, à luz
dos faróis do automóvel agora parando 
atrás de nós, li o nome da fazenda, escrito
em letras 
mal desenhadas nos azulejos velhos, aplicados 
sôbre o
muro junto à portada: Quinta dos Almudes. 
Porta pesadona de madeira
grossíssima,
suportada por enormes gonzos e com uma aldraba 
artística –
carantonha assustadora – que batida deu 
um inesperado som cavo, capaz de
acordar o sono 
mais profundo. Quem abriu e nos deu entrada foi um 
tipo com inequívoca figura de burgêsso, avental 
preto traçado no torso
e um laço poído e tôrto ao 
pescoço. Se a pretensão era dar-lhe um ar
solene…
grande fracasso. O homem olhava-nos com 
expressão de vendido cujo maior desejo fôsse estar 
longe dali. Não houve noção do
tamanho da
propriedade. Via-se apenas uma casa branca, 
esquinas e
janelas bordadas de cantaria, e defronte 
um recinto ajardinado e iluminado, cercado
de
oliveiras, onde se dançava. Havia lâmpadas coloridas 
–
fraquinhas – penduradas por cima, alternando com 
bandeirinhas de papel de
sêda.
Uma boa dúzia de pares bandeava-se ao som de 
música na moda,
gritada aos guinchos pelos 
altifalantes do gira-discos. Não sabendo
bem que 
chão pisávamos, assim como se lançássemos ferro 
em fundo
desconhecido, avançámos devagar, a 
mêdo, tacteando com o olhar. O convite
chegara-
-nos como se fôra do senhor da casa, mas a cena 
era porventura
mais chegada aos anos da filha de 
um caseiro. E era. Tinha sido o
amigo de um amigo –
encontrá-lo-íamos na festa – quem nos convidara, 
mas,
em verdade, não vimos nenhuma cara familiar. 
Que importava?... Em
pouco tempo já dançávamos. 
Algumas môças bonitas, por debaixo de côres 
suaves, tules e lacinhos, cabelos armados, e 
perfumosas,
foram razão bastante.
- Tás a ver aquela de
azul-claro? Encosta-se toda.
- É tão gorda… não
havia de encostar!
- Dança com ela. Acredita
que vais gostar…
Foi o que fiz; e gostei. Bem fornida de carnes, mas 
ligeira,
dançava bem, aceitava sem rebuço a minha 
pressão e colava o corpo com
vontade, ajustando 
em pleno as nossas anatomias. Poucas vezes 
mudámos
de par.
Com olhares gulosos, acabou de cabeça repousada 
no meu peito.
Entretanto, o João, que me acompanhava nesta 
sortida, tinha
prendido a atenção da festejada. O 
caso ganhou alguma sèriedade quando a
mãe,
atenta, percebeu a fixação da miúda, 
completamente desligada
dos restantes convidados. 
E foi então, já a noite ia longa e o
baile chegava ao
fim, apareceu o convite para uma ida à praia no dia 
seguinte,
um domingo. O João e eu, a Dôres, a mãe  
e a gordinha Gracinda,
amiga chegada da casa. Que 
sim, que ficávamos muito obrigados e lá 
estaríamos.  
Na praia
O vento, Oeste enfiado, frescote e húmido do mar, 
soprando
rasante na areia da praia, arrastava-a 
consigo, projectando-a nos pés
nus dos
veraneantes. Incomodados, abrigavam-se a 
sotavento das
barracas e dos toldos apeados do alto 
e presos ao chão com as suas próprias estacas,
melhor fixados ao pêso da finíssima areia 
acumulada. 
Ir ao
banho tornou-se desagradável. Abriram-se os 
apetites, era tempo de comer.
Tanto quanto possível 
ao abrigo da garroa, os farnéis começaram a
sair dos
cestos. Desatado o baraço que prendia a tampa do 
tacho de
esmalte, saltou para os pratos o arroz de 
tomate ainda môrno; e duma
vasilha embrulhada 
em papel pardo chegaram os biqueirões fritos na 
tarde da véspera, ainda gordurentos do azeite da 
fritura. Alguns,
escalados e albardados tiveram a 
preferência e acabaram num instante. Destapado
um outro tachinho muito bem vedado, a salada 
montanheira sugeria
toda a frescura que dela se 
espera. Não faltou o pão casqueiro, partido
à mão,
e o tinto carrascão, despejado em cada púcaro. Não 
é verdade
que saiba melhor comido à mão, mas que 
é a boa maneira de comer o peixe
frito quando 
pequeno, não haja dúvida. De resto, o único 
processo,
naquela espécie de pique-nique balnear 
em família, a fugir ao vento,
a evitar a areia. Não 
tanto que não se tivesse de tarrincar com a comida, 
um ou outro intrometido grão de areia.
Já o Sol alongava as sombras quando o vento 
começou a
amainar. 
Esparramados na areia, as toalhas enroladas a 
fazerem de
almofada, alguns dormiam e havia quem 
roncasse. Dôres tentava chamar a
atenção do João, 
mal acordado, esfregando os olhos. Olhou-a. 
Ignorou-lhe a pretensão de sair dali. Fazia-se tarde. 
Era evidente que nem dêle
nem de mim havia 
qualquer interêsse em ir mais além. Um baile, uma 
merenda na praia e era tudo. Não foi o que dissemos 
à despedida. Uma
mentira piedosa. Que sim, que 
telefonaríamos – tomámos nota dos
números. 
Até hoje.
O João foi para casa. 
Eu, tinha ainda um compromisso.
Outro baile
Os discos disponíveis para rodar tinham sido decerto 
escolhidos com intencional critério pelas duas irmãs: 
músicas lentas, harmoniosas,
em apêlo claro a um 
abraço apertado. Os pares cumpriam com
visível 
prazer.
Andava com a Cristina havia meses. Já antes 
tínhamos sido
convidados pelas manas para o seu 
apartamento e travado conhecimento com
a
maioria dos presentes. Sentíamo-nos muito à 
vontade. O nosso
enlace era forte, pleno e ia para 
além do corpo. Havia muito afecto
entre nós. A
masculinidade, matreiramente soltada do apêrto à 
roupa de
dentro, orgulhosa e firme, contida apenas 
pelo tecido fino das calças
de verão, ajustava-se 
com instintiva precisão ao côncavo quente que se 
lhe oferecia, quiçá desnudado por idêntica 
artimanha, sob a protecção única
da leve saia 
rodada. Reduzido o chão onde dançávamos a um 
minúsculo
quadrado que mal excedia o tamanho dos 
nossos pés, torcíamo-nos de
alto a baixo como uma 
coluna ondulada, aproveitando disfarçadamente o 
ritmo da música, convertendo-o num imperceptível 
vaivém sincronizado
de pressão das ancas. O 
repetido movimento, o perfeito ajuste dos
corpos, os
constantes beijos de entrega, tornaram-se um real 
acto de
posse. De tal modo, que em pouco tempo, 
com um prolongado suspiro, a senti escorregar por 
mim abaixo. Tinha atingido o ápice naquela
peculiar 
forma de excitação. Amparei-a, ajudei-a a erguer-
se; e com inata falta de jeito, perguntei:
- O que foi?
Num susurro, mas objectiva, respondeu:
- Como se não
soubesses!
Procurámos uma janela, aberta sôbre a praça 
ajardinada, para
nos recompormos. Ela conseguiu. 
Eu, em vez, comecei a sentir um
incómodo doloroso, 
mal definido. Desculpei-me com o longo caminho a 
fazer
para chegar ao meu couto e despedi-me. Desci 
com dificuldade dois
ou três lances da escada, não 
aguentei mais e encostado à parede sentei-me
num
degrau. Experimentei várias posições para as 
pernas, na
tentativa de minorar a dor, uma dor 
testicular que roçava o insuportável.
Atento à
escada, não fôsse descer alguém conhecido que me 
visse
naqueles apuros difíceis de explicar, estava 
preparado para me levantar ao
primeiro sinal.
Não totalmente recomposto, arrastei-me escada 
abaixo e
cheguei à rua.
Pequeno intervalo
A leve aragem fresca que corria e o exercício de 
caminhar,
ajudaram a recuperação da dor e 
distraíram-me da má resolução dos meus
mais
machos anseios. A cidade já estava recolhida. 
Encontrei uma
pastelaria aberta. Tomei um café, 
engoli um pequeno cálice de aguardente
e não
contrariei a vontade de um pastel de feijão. Voltei ao 
caminho. Ruas desertas.
Vidas 
Numa transversal, vi o vulto de uma mulher de 
andar ligeiro.
Estuguei o passo e fui-me 
aproximando. Andar seguro, sem bamboleios,
roupa
discreta, cabelo solto, mala a tiracolo. Não sabia 
bem ao que
ia. Sempre me senti acanhado em 
situações tais. Sòzinha àquela hora da
noite? Seria?
Aproximei-me mais, enchi-me de coragem e não 
conseguindo
engendrar melhor discurso, arrisquei 
uma pergunta que bem poderia ter
sido ofensiva:
- Quanto é?
- Setenta paus.
Pouco teria além de vinte anos. Era bonitinha. Fez-
me sinal
para que a seguisse. De súbito enfiou-se 
por uma porta aberta de um
prédio antigo. 
A escada, de madeira velha como a casa, cheirava a 
pó e gemia
sob os nossos pés. Não trocámos 
palavra. Chegámos ao último andar,
enfiou a chave 
na porta, abriu e entrámos. Obscuridade completa. 
Não
acendeu lâmpada, candeeiro ou vela. Nalguns 
instantes os olhos
adaptaram-se e lobrigaram uma 
ténue claridade, vinda não percebi de onde.
Era 
um quarto muito grande. Rocei a cara por uma peça 
de roupa
pendurada  e percebi um estendal entre 
paredes, a toda a largura. Melhor
feitos os olhos à 
penumbra, enxerguei uma cama grande encostada à 
parede e vi que se debruçava sobre um berço 
próximo. Fiquei estarrecido. Com
gesto que só uma 
mãe sabe ter, ajeitou o agasalho da criança ali 
deitada. Mas o espanto não findara: a um canto, 
recostada num cadeirão, uma
mulher velha olhava-
me. Avó? Alcoviteira vigiando a maquia a 
cobrar? O estatuto pouca importância tinha. A 
presença, por demais
inesperada, confundiu-me. 
Não bastava o inocente no berço… agora a velha! 
Pensei em sair daquele palco, porta fora, descer, 
voltar à rua,
apagar o último pedaço de tempo. Fui 
travado pela imagem da moça a despir-se
junto à
cama, batida pela misteriosa luminosidade. Um 
apetite! A
hesitação foi breve. Imitei-a. Deitámo-
nos. Tocámo-nos. Abraçámo-nos. Berço
e velha
abalaram para um longe muito longe. Qual berço? 
Qual velha?
Pode ter fingido, pode ter de facto 
sentido prazer… a extrema macieza
da pele,essa, 
não enganava, era palpável. Em todo o tempo, não 
trocámos mais que poucos monossílabos. Falar de 
quê? Vesti-me, deixei-a na
cama e saí.
Alvíssaras
Não pude evitar o retorno do retrato. A mulher 
sentada, a
criança de que não vi senão o vulto; a 
moça, quem sabe enganada e abandonada
de
barriga, sem rendimento que não o corpo. Senti que 
ter
voluntàriamente feito parte daquele quadro 
deprimente me apoucava. E
entristecia-me.
Reagi. 
Tal como na véspera o vento amainara na praia, 
também se me
amansara a lascívia tão rudemente 
fustigada ao longo do fim-de-semana.
Não era
bom? E contrariando as más lembranças recentes, 
concedi-me
alvíssaras.
Voltei ao meu refúgio. Tomei um prolongado duche 
quente. Fui
p’rá cama e confiante deixei-me 
adormecer cheio de esperança no porvir.
José Guerreiro
30 de Setembro de 2018