6.11.18


REVOLTA NA BOUNTY



Tem muito de inverosímil o que vou contar. Mas aconteceu.


Mais uma fragata

O navio estava em Alcântara, onde a Lisnave se afadigava nos acabamentos. Navio novo, com cheiro a novo, um brinco, excitava a curiosidade. Assinalados a vermelho, os apetrechos de combate a incêndios, em desusada quantidade, chamavam a atenção. Dia a dia, ia chegando mais pessoal. Encaminhado para as cobertas próprias, escolhia beliche, desferrava a maca, arrumava pertences. Depois chegava-se aos da sua classe, colhia informações àcerca do Serviço:
- Que tal é o chefe?

Em Setembro, ao fim de um ano na Escola de Artilharia Naval a leccionar sôbre a direcção de tiro e armamento associado que equipavam a nova fragata, fui para ali destacado. Novidade interessante, envergar fato-macaco (de càqui, oferecido pelo estaleiro) e acompanhar os operários, observá-los na execução das últimas tarefas, nalguns casos enriquecedora. Muito vaidosos, fizeram questão de nos mostrar soldaduras verticais, em que se haviam especializado na Suécia.

E a menos de um mês do Inverno, a obra foi dada como pronta.

Na Margueira, num estrado coberto de panos bonitos e bem armados, sentou-se imensa gente com parciais responsabilidades na construção. Em destaque, na primeira fila, apenas os dez oficiais da primeira guarnição, em uniforme 3-A, (talim e espada). Acredito que possa ter sentido alguma cagança, ao ver-me actor naquele palco, protagonista do bem urdido cerimonial.

Começou com uma arenga do director do estaleiro que concedeu à fragata uns cinco minutos e gastou os restantes vinte a tentar convencer a Marinha das vantagens de dar à Lisnave a construção das três corvetas em projecto. Porque não saíriam divisas – a concorrência era alemã – como também pela excelência do trabalho, resultante do grande investimento feito na valorização dos operários utilizados nas duas fragatas construídas, não esquecendo o incentivo à construção naval, em risco se não fizesse as corvetas. Seguiu-se o Ministro da Marinha – havia Ministro da Marinha – que sacou do bôlso um maço de papéis e começou a ler. Discurso redondo, adeqüado à circunstância política, mas que a expressão fisionómica do senhor não sublinhava. De repente, com gesto brusco amarrotou os papéis com a mão que os segurava, enfiou-os na algibeira de onde haviam saído, bufou forte e sonoro para o microfone o ar que parecia oprimi-lo, encarou com firmeza a assistência, e cravando os olhos no orador que o precedera, de improviso, encetou novo discurso:
- E agora…
Após estas palavras, usando bastante dureza, verberou tudo quanto o outro dissera a respeito das corvetas, enfatizou que não aceitava que lhe quisessem impôr um rumo… que a Marinha  avaliaria as propostas e decidiria como melhor lhe parecesse. Foi muito aplaudido.
A verdade é que se dizia não ter a construção respeitado nenhum orçamento. À medida que se fazia debitava-se, havendo mesmo notícia de se terem pago obras alheias.
- Põe nas fragatas.   
Os navios tinham-nos ficado caríssimos e ao que parece o orçamento feito para as corvetas era o mais dispendioso.
Acabaram por ser feitas na Alemanha.


Vontade de Bem Fazer

Esta divisa – Talant de bien faire – que o Infante Dom Henrique tomou para si, a Marinha herdou e ilustra o brasão da Escola Naval, deverá ser (pretende-se que seja) o norte de quem serve na Armada.
Tal como as pessoas são diferentes, assim a distinção se estende aos marinheiros. A escolha da guarnição de um navio, reflecte, naturalmente, essa individualidade que nos caracteriza. A isso se acrescentam vários parâmetros envolvidos no processo, começando desde logo pela disponibilidade dentro do pôsto, da classe e da especialização. Os cento e tantos nomes escolhidos hoje não são os mesmos que teriam sido uma semana atrás. A circunstância envolvida, originará uma boa guarnição ou outra  menos boa. No que me cabe, com alguma imodéstia, tivemos a sorte de formar um conjunto que não desmerecia a divisa.
Havia muito boas praças na marinhagem e ninguém se destacava por maus motivos; a Câmara de Sargentos era de bom nível, elevando-se dois ou três acima dos demais; e quanto a nós, mais uma vez imodesto… para ver a média, olharíamos para baixo.

Fomo-nos ajustando à nau, aos serviços, uns aos outros. Estabeleceram-se simpatias, preferências e amizades. Familiarizámo-nos com os equipamentos à custa dos manuais, muitas rotinas de manutenção e a ajuda dos artífices. Conhecer bem o pessoal sob nossa dependência funcional, foi rápido. Estender êsse conhecimento a toda a guarnição demorou o tempo de algumas divisões de serviço de dia.

Passámos ao treino de mar. As coisas não começaram bem. No regresso a Lisboa, à entrada da barra, sob nevoeiro cerrado, para fugir ao Cachôpo Sul, o Comandante empurrou o navio para além do eixo da barra e colidimos de raspão com um paquete da Colonial que saía, dando um eco pouco nítido no radar, a distância imprecisa. Do choque, a nossa proa recuou um metro e amolgou o costado do outro, deixando-lhe o desenho de uma boa dúzia de balizas. Dos autos de averigüações sôbre a colisão não resultou sanção disciplinar. Reencetámos o treinamento e mês e meio depois rumámos a Norfolk, à Base Naval, para alinhamento da bateria. Na primeira reünião com a direcção do estaleiro, esta, tirando partido do nosso deficiente domínio do idioma, estava, sem contraditório, a impôr-nos um programa desfavorável. Presente por sorte nossa, o camarada em funções de Adido Naval, tomou as rédeas da conversa e foi êle que ditou as regras, melhorando consideràvelmente a nossa posição. Desagradara-me, quando o havia conhecido, Governador da Guiné, por o achar vaidoso, mas passei a admirá-lo depois de observar aquela sua actuação, tão ousada como inteligente.

Através de conhecimentos havidos durante o curso de pós-especialização feito dois anos antes nos Estados-Unidos, soube de um estágio de uma semana para treino de artilheiros com as mesmas direcção de tiro e peças do navio, que culminava com fogo real contra uma pequena aeronave telecomandada, um ‘Zangão’. Considerei de grande utilidade para o Serviço facultar o treino ao pessoal e interessei nisso o Comando, obtendo concordância. Uma bordada de cada vez, lá estive duas semanas com os artilheiros em Dam Neck. Resultado excelente, com efeito não só nos desempenhos como no entusiasmo dos homens. Não se contava, ninguém previu que aquele estágio não fôsse oferta graciosa de um país aliado e coligado na OTAN. Mas não foi. Nem sequer barato. À chegada a Lisboa a conta já tinha chegado e o Comandante levou uma rabecada e tanto. Não há borlas na América.

Ao fim do mês previsto no estaleiro, o Comando preparava o regresso a Lisboa; e na minha presença o Imediato alinhavou as primeiras diligências. Não me tinham ouvido. Não tive remédio senão dar nas vistas ao dizer que não aceitava o alinhamento da bateria. Tinha que ser refeito. E foi. Mais uma quinzena, mas ficou perfeito.   

Chegámos a Lisboa no dia um de Agosto; e na companhia da fragata-irmã, primeiro navio da classe, partimos para o Brasil no último dia do mês. A manobras com a Armada Brasileira. Sem grande dificuldade, desempenhámo-nos muito bem. Escalámos três portos e formámos opinião sôbre o imenso país e sua gente.

Por esta altura, numa fase de tomada de consciência política no pequeno mundo naval da nossa Câmara, fomos assistir a uma reünião clandestina (semi-clandestina) de militares, num Ateneu Comercial de Lisboa quase cheio. Sem participação activa, ouvimos vozes brandirem argumentos contra o Estado-Novo, contra as três frentes de guerra, contra a exigüidade dos vencimentos. Saímos carregados de esperança. À distância de seis anos.

Em Janeiro seguinte, durante quinze dias, navegámos num pequeno rectângulo de mar, duzentas milhas a Sul da ilha de São Miguel, com o propósito de colher elementos de propagação do som naquelas águas. Passámos todo o tempo a rebocar o batitermógrafo num mar alteroso. Houve mesmo um dia em que virou tempestuoso. A tal ponto que, às tantas da madrugada fui chamado à ponte pelo Comandante (confiante nas minhas qualidades marinheiras) para ouvir conselho sôbre se devia ou não guinar o navio para o manter dentro do rectângulo pré-determinado de dez milhas por cinco. Estimei em oito metros a altura das vagas – dez foi quanto o meteorologista do Instituto Nacional, embarcado, reportou para Lisboa – , vagas tão desencontradas que tornavam impossível prever o momento asado de fazer leme, sem perigo de atravessamento ao mar. Nada mais se via que uma manta rugosa, branca de espuma, à nossa volta. Claro que desaconselhei a guinada, tendo-se optado por reduzir a velocidade e navegar a um rumo mais safo, tanto quanto possível com vento e mar numa alheta, correndo com o tempo; e aguardar melhoria para voltar à área de trabalho.

Mais um mês em Lisboa, após o que, entre Plymouth, Porto Santo, Funchal e Cádiz, retomámos, com outras marinhas, os nossos treinos de detecção e combate a submarinos.

Até que, a meio do Verão, encetámos afinal, uma viagem diferente. Não esquecendo necessidades operacionais, mais pareceu um cruzeiro de férias. Em companhia da mana número três, fomos à Califórnia, em missão de representação de Portugal no Segundo Centenário da Fundação de San Diego, achada pelo português João Rodrigues Cabrilho ao serviço de Espanha. Próxima a cidade quer da Disneylândia quer do Sea World, visitámos os dois parques, ao tempo únicos. Gostei imenso da imaginação de Disney, numa exibição notável de tecnologia recente, ao serviço de miúdos e graúdos. A celebração do Centenário teve participação de muitos portugueses. Mostrando vestes idas de Lisboa, pisaram a ‘passerelle’, duas moças com que nos relacionámos, uma delas a Ana Maria Lucas, com quem, em San Francisco, a escala seguinte, andei, eu e mais dois camaradas, numa cantina da US Navy, a comprar, calcule-se, meias de lã para o Fernando Tordo – desconhecido de todos – na altura seu namorado.

Voltámos a cruzar o Canal do Panamá, reabastecemos na Martinica (da Chiquita Bàcana, essa mesmo), depois São Vicente (obrigatório) e no primeiro de Novembro estávamos em casa.

Em Fevereiro ainda andámos por Funchal e Porto Santo.

Estávamos prontos para a Stanavforlant.


Oficial imediato

Pouco depois da chegada da América, o Imediato foi para a Alemanha, nomeado Comandante da primeira corveta ainda em construção. Assumi eu as funções desde então. Porém, sendo primeiro-tenente, não satisfazia as condições do cargo. Procurava-se novo oficial para o preencher. Começou a falar-se com insistência num camarada capitão-tenente, cuja possível nomeação causava engulhos a toda a Câmara. Não a mim, que o conhecia de longa data e com quem mantinha um relacionamento, não exactamente de amizade, mas cordial.


Carácter

Nascemos com a marca de nossos pais. Quando os seus gâmetas se fundiram – o espermatozóide mais veloz com o óvulo pronto naquela lua – ficou destinado quem viríamos a ser. Outro tivesse chegado primeiro e não seríamos quem somos.

Há perícias e inaptidões que naquele momento nos são legadas sem apêlo. Depois, a família em que crescemos, as escolas onde aprendemos, os amigos a quem nos chegamos, influenciarão o ser individual em que nos vamos tornando.

Ainda estava na Escola Naval, mas já freqüentava a Messe de Oficiais do Alfeite, onde conheci um jovem segundo-tenente, de quem recebi atenção inesperada – pensei eu, por ser apenas um incipiente cadete. O teor das nossas conversas fugia à banalidade. Com idèias muito firmes sôbre os temas de que falava, ouvia-o com interêsse e pelo meu lado procurava ser um bom interlocutor. Não desconhecia que o acompanhava uma reputação de severidade e isolamento, que, aliás, não senti. Raízes numa estranja austera e educação no Colégio Militar, ter-lhe-ão enformado o carácter, de modo a agir com alguma inflexibilidade perante desvios à norma estabelecida, à lei. Imagem esta, definitivamente cimentada, depois de ter comandado uma Companhia de Fuzileiros na Guiné, em que –dizia-se – poucos homens lhe não tinham merecido castigo disciplinar. 
Porém, muito coerente, sempre exigiu de si próprio, tanto como aos outros. Era êste o camarada de quem se falava para Oficial Imediato do nosso navio. Sem poder evitar a sua nomeação – caso viesse a dar-se – generalizava-se na Câmara a idèia de o não aceitar. Contei-lhes de como tínhamos convivido com agrado e contrapus devermos recebê-lo sem azedume, aguardando-lhe a actuação. Tentei, mas não consegui. Manteve-se o desprazer que tal nomeação ocasionaria. Estava muito em causa a presunção das mudanças e o temor delas – mudanças que iriam decerto operar-se, em relação aos processos do  anterior Imediato, tido por mais maleável e mais companheiro. Éramos uma equipa com mais de dois anos de formação, coesa, conscientemente boa, que se arreceava, em vésperas de uma missão relevante para todos, de vir a ser encimada por um elemento considerado adventício. Mas o destacamento deu-se. Foi aquele nosso camarada que passou a ser o nosso Imediato. Os oficiais – ponho-me de fora – cumpriram a recusa anteriormente manifestada. Poucas palavras, falavam com êle apenas de serviço; e se interpelados, pouco iam além de monossílabos. À mesa, o Imediato não era incluído nas conversas. Só eu lhe dirigia a palavra, procurando compôr o ambiente, reduzir-lhe a frieza. Desde o primeiro momento percebeu o que se passava. Era evidente. Sem arrogância, manteve-se sereno, exercendo o cargo com naturalidade, na linha da sua conhecida conduta, mas sem reagir ao manifesto desprezo da Câmara. Até ver.

E lá fomos para a Stanavforlant (Standing Naval Force Atlantic), que integrámos a 11 de Maio, uma Segunda-feira, em Copenhague.

Saírá do contexto, mas não resisto a contar: tinha terminado na véspera, a 1.ª Feira Internacional de Pornografia. Coisa proïbida em Portugal, onde apenas à socapa e a mêdo circulavam histórias porcas dactilografadas e uma ou outra imagem de mau gôsto, a curiosidade levou muitos de nós a ver os restos – e havia muitos – do que ao tempo chegou a ser badalado como acontecimento cultural.  

O Imediato devia tê-la fisgada: não saiu do navio nos quatro dias de Copenhague, uma capital cheia de interêsses; e logo de seguida, atravessado o Canal de Kiel, voltou a não sair em cinco dias de Antuérpia, cidade igualmente muito chamativa. O Comandante, vendo-o sempre a bòrdo, percebeu que alguma coisa não estava bem. Creio que não soube exactamente o quê. Uma vez mais, chamou-me. Pediu que falasse com o Imediato e procurasse convencê-lo a sair de licença. Foi no camarote que tivemos uma longa e interessante conversa… um bate-papo. Não foram decerto os argumentos que possa ter apresentado, mas o certo é que desistiu da greve. E tudo voltou à anormalidade anterior.


Centro de Informações em Combate (CIC)

Êste serviço era chefiado por um môço, dos mais novos de entre nós, dedicado, muito esforçado, que defendia as causas do seu credo com a fôrça das mandíbulas de um buldogue segurando a prêsa. Estudou com denôdo e persistência os manuais de operações navais tendo chegado a um patamar notável de saber. Para facilitar a vida a quem estivesse de quarto ao CIC, engendrou um esquema numas folhas de quadriculado pequeno, onde em letra miudinha depositou a sua ciência. Uma ordenada e uma abecissa, conduziam-nos à acção adeqüada a cada circunstância. E quando porventura não chegavam duas coordenadas, recorria-se a uma terceira dimensão inventada noutro papel. A coisa funcionava muito bem. Excepção feita à viagem à costa Oeste da América, passámos a vida quase sempre a três quartos. Eu, que fazia quarto à ponte, tive mesmo assim oportunidade de constatar a bondade daqueles quadriculados.

O Chefe do Serviço, muito cioso da responsabilidade que lhe cabia em manobras, mantinha-se no CIC, muito para além da sua obrigação, garantindo que não se fazia feio.

O Comandante, oriundo dos gabinetes do Estado-Maior, não trazia grande familiaridade com exercícios de mar. De resto, tinha para isso um Chefe de Serviço. Mas Comandante é Comandante; e de vez em quando, um bitaite aqui, um palpite acolá,  mexia o navio em desacôrdo com o ATP1 (Allied Tactical Publication 1), ou entre TURN’s (rotação) e CORPEN’s (rotação alinhada), por achar que se navegava muito próximo de outra unidade, tomava um rumo outro, movimento que registado nos radares dos restantes navios da esquadra, traduzia um êrro. O Chefe do Serviço tinha fúrias silenciosas, mas ia agüentando a coisa. Até que uma noite, a meio de um exercício que nos corria lindamente, o Comandante, depois de uma discordância mais acesa com o nosso camarada, impôs a sua soberania e executou uma manobra desajustada, que não tardou a provocar um STATION (vá para a posição), mensagem sempre desagradável para quem a recebe. Foi demais. Partiu o lápis de perspex, atirou-o para o vidro da mesa de registos e desembestou CIC porta fora, lançando fôgo pelas ventas.


A revolta

Seriam duas da manhã quando acordei estremunhado. Atrás da mão que me abanava, divisei um galão de primeiro-tenente.
- Que foi?
- Veste-te. Tens que vir ao CIC.

E saíu do camarote, sem me dar tempo a perguntas.

Fardei-me, subi e lá fui. Encontrei quase toda a Câmara. Não estava o médico, nem os dois guarda-marinhas. Também não vi radaristas – teriam sido afastados. Estava tudo de cara amarrada.  
Primeiro atabalhoadamente, a três ou quatro vozes, depois serenando um pouco o discurso, mas carregando-o de côres sombrias, contaram-me o que atrás relatei.
- Sim… e depois?  
- Depois, que isto não pode ser!... Há que tirá-lo daqui, ou  continuamos a fazer borradas.
- Não exageres, borrada a sério foi só esta…
- Dizes tu… Mas o pior foi ter sido completamente surdo aos nossos argumentos, à leitura da ‘bíblia’. Se tivesses visto a soberba, o desdém com que nos tratou… um verdadeiro déspota – parecia outro. Queremos prendê-lo no paiol da amarra.
- O quê???... Vocês estão doidos!
- É o único processo… E tu tomas conta do navio.

Além de enlouquecer as gónadas, muito tempo de mar ensalitra a massa cinzenta, enruga-lhe a função e anuvia as idèias. Que fôsse tanto, nunca pensei.

- Essa é boa! Eu tomo conta do navio… E o Imediato?
- Não, êsse gajo, não. Prendem-se os dois.
- Vamos lá ver se entendo… Comandante e Imediato no paiol da amarra e eu sou promovido. Presumo que estejam todos de acôrdo? Certo?
- Nem pensar. Eu, não estou.

Havia alguém que estava comigo. Fiquei mais animado.

- Haja Deus!... E que dizemos ao Comando da Stanav?
- Nada. Não tem que saber.
- Quem é que acredita nisso? A guarnição não pode deixar de ver. Aceitará? Ainda que aceite, não tardará a falar para fora… Homógrafo, lanternas Aldis, bandeiras, chave morse… tudo meios incontroláveis. Já pensaram? E mesmo que a Stanav não viesse a saber, qual é o plano para a chegada a Lisboa? Tenham juízo!
- É verdade… és capaz de ter razão… Eh malta, o gajo ‘tá certo.
- Q’esteja. Mas como ficamos nós? Na mesma?
- Pensando melhor, eu também desisto.

Calados embora, a expressão de dúvida que li nalguns, deu-me a certeza de que a coisa se encaminhava no bom sentido. Continuei a malhar no ferro enquanto estava quente. Resultou.

Sentindo que as últimas considerações tinham feito mossa, constituindo-os em minoria, os mais assanhados revoltosos, perderam ânimo e acabaram por jogar a toalha ao tapête. Não tão depressa quanto o diálogo possa dar a entender, mas em boa hora.

Voltei à cama e tive grande dificuldade em adormecer.

Nós não sabíamos, mas tínhamos vivido, intramuros, um curioso e premonitório ensaio de Abril.



Em tempo – Todas as falas do texto, ficcionadas, não são reprodução exacta do que se disse. Tento apenas dar verdade às minhas recordações.

José Guerreiro
CLV, 6 de Novembro de 2018


30.9.18


Fim-de-semana



Um baile

O crepúsculo ia no fim, chegava a noite. Num 
relance, à luz dos faróis do automóvel agora parando 
atrás de nós, li o nome da fazenda, escrito em letras 
mal desenhadas nos azulejos velhos, aplicados 
sôbre o muro junto à portada: Quinta dos Almudes. 
Porta pesadona de madeira grossíssima,
suportada por enormes gonzos e com uma aldraba 
artística – carantonha assustadora – que batida deu 
um inesperado som cavo, capaz de acordar o sono 
mais profundo. Quem abriu e nos deu entrada foi um 
tipo com inequívoca figura de burgêsso, avental 
preto traçado no torso e um laço poído e tôrto ao 
pescoço. Se a pretensão era dar-lhe um ar solene…
grande fracasso. O homem olhava-nos com 
expressão de vendido cujo maior desejo fôsse estar 
longe dali. Não houve noção do tamanho da
propriedade. Via-se apenas uma casa branca, 
esquinas e janelas bordadas de cantaria, e defronte 
um recinto ajardinado e iluminado, cercado de
oliveiras, onde se dançava. Havia lâmpadas coloridas 
– fraquinhas – penduradas por cima, alternando com 
bandeirinhas de papel de sêda.
Uma boa dúzia de pares bandeava-se ao som de 
música na moda, gritada aos guinchos pelos 
altifalantes do gira-discos. Não sabendo bem que 
chão pisávamos, assim como se lançássemos ferro 
em fundo desconhecido, avançámos devagar, a 
mêdo, tacteando com o olhar. O convite chegara-
-nos como se fôra do senhor da casa, mas a cena 
era porventura mais chegada aos anos da filha de 
um caseiro. E era. Tinha sido o amigo de um amigo –
encontrá-lo-íamos na festa – quem nos convidara, 
mas, em verdade, não vimos nenhuma cara familiar. 
Que importava?... Em pouco tempo já dançávamos. 
Algumas môças bonitas, por debaixo de côres 
suaves, tules e lacinhos, cabelos armados, e 
perfumosas, foram razão bastante.

- Tás a ver aquela de azul-claro? Encosta-se toda.
- É tão gorda… não havia de encostar!
- Dança com ela. Acredita que vais gostar…

Foi o que fiz; e gostei. Bem fornida de carnes, mas 
ligeira, dançava bem, aceitava sem rebuço a minha 
pressão e colava o corpo com vontade, ajustando 
em pleno as nossas anatomias. Poucas vezes 
mudámos de par.
Com olhares gulosos, acabou de cabeça repousada 
no meu peito.
Entretanto, o João, que me acompanhava nesta 
sortida, tinha prendido a atenção da festejada. O 
caso ganhou alguma sèriedade quando a mãe,
atenta, percebeu a fixação da miúda, 
completamente desligada dos restantes convidados. 
E foi então, já a noite ia longa e o baile chegava ao
fim, apareceu o convite para uma ida à praia no dia 
seguinte, um domingo. O João e eu, a Dôres, a mãe  
e a gordinha Gracinda, amiga chegada da casa. Que 
sim, que ficávamos muito obrigados e lá 
estaríamos.  


Na praia

O vento, Oeste enfiado, frescote e húmido do mar, 
soprando rasante na areia da praia, arrastava-a 
consigo, projectando-a nos pés nus dos
veraneantes. Incomodados, abrigavam-se a 
sotavento das barracas e dos toldos apeados do alto 
e presos ao chão com as suas próprias estacas,
melhor fixados ao pêso da finíssima areia 
acumulada. 
Ir ao banho tornou-se desagradável. Abriram-se os 
apetites, era tempo de comer. Tanto quanto possível 
ao abrigo da garroa, os farnéis começaram a sair dos
cestos. Desatado o baraço que prendia a tampa do 
tacho de esmalte, saltou para os pratos o arroz de 
tomate ainda môrno; e duma vasilha embrulhada 
em papel pardo chegaram os biqueirões fritos na 
tarde da véspera, ainda gordurentos do azeite da 
fritura. Alguns, escalados e albardados tiveram a 
preferência e acabaram num instante. Destapado
um outro tachinho muito bem vedado, a salada 
montanheira sugeria toda a frescura que dela se 
espera. Não faltou o pão casqueiro, partido à mão,
e o tinto carrascão, despejado em cada púcaro. Não 
é verdade que saiba melhor comido à mão, mas que 
é a boa maneira de comer o peixe frito quando 
pequeno, não haja dúvida. De resto, o único 
processo, naquela espécie de pique-nique balnear 
em família, a fugir ao vento, a evitar a areia. Não 
tanto que não se tivesse de tarrincar com a comida, 
um ou outro intrometido grão de areia.
Já o Sol alongava as sombras quando o vento 
começou a amainar.
Esparramados na areia, as toalhas enroladas a 
fazerem de almofada, alguns dormiam e havia quem 
roncasse. Dôres tentava chamar a atenção do João, 
mal acordado, esfregando os olhos. Olhou-a. 
Ignorou-lhe a pretensão de sair dali. Fazia-se tarde. 
Era evidente que nem dêle nem de mim havia 
qualquer interêsse em ir mais além. Um baile, uma 
merenda na praia e era tudo. Não foi o que dissemos 
à despedida. Uma mentira piedosa. Que sim, que 
telefonaríamos – tomámos nota dos números. 
Até hoje.
O João foi para casa. 
Eu, tinha ainda um compromisso.


Outro baile

Os discos disponíveis para rodar tinham sido decerto 
escolhidos com intencional critério pelas duas irmãs: 
músicas lentas, harmoniosas, em apêlo claro a um 
abraço apertado. Os pares cumpriam com visível 
prazer.
Andava com a Cristina havia meses. Já antes 
tínhamos sido convidados pelas manas para o seu 
apartamento e travado conhecimento com a
maioria dos presentes. Sentíamo-nos muito à 
vontade. O nosso enlace era forte, pleno e ia para 
além do corpo. Havia muito afecto entre nós. A
masculinidade, matreiramente soltada do apêrto à 
roupa de dentro, orgulhosa e firme, contida apenas 
pelo tecido fino das calças de verão, ajustava-se 

com instintiva precisão ao côncavo quente que se 

lhe oferecia, quiçá desnudado por idêntica 

artimanha, sob a protecção única da leve saia 

rodada. Reduzido o chão onde dançávamos a um 

minúsculo quadrado que mal excedia o tamanho dos 

nossos pés, torcíamo-nos de alto a baixo como uma 

coluna ondulada, aproveitando disfarçadamente o 

ritmo da música, convertendo-o num imperceptível 

vaivém sincronizado de pressão das ancas. O 

repetido movimento, o perfeito ajuste dos corpos, os
constantes beijos de entrega, tornaram-se um real 
acto de posse. De tal modo, que em pouco tempo, 
com um prolongado suspiro, a senti escorregar por 
mim abaixo. Tinha atingido o ápice naquela peculiar 
forma de excitação. Amparei-a, ajudei-a a erguer-
se; e com inata falta de jeito, perguntei:
- O que foi?
Num susurro, mas objectiva, respondeu:
- Como se não soubesses!
Procurámos uma janela, aberta sôbre a praça 
ajardinada, para nos recompormos. Ela conseguiu. 
Eu, em vez, comecei a sentir um incómodo doloroso, 
mal definido. Desculpei-me com o longo caminho a 
fazer para chegar ao meu couto e despedi-me. Desci 
com dificuldade dois ou três lances da escada, não 
aguentei mais e encostado à parede sentei-me num
degrau. Experimentei várias posições para as 
pernas, na tentativa de minorar a dor, uma dor 
testicular que roçava o insuportável. Atento à
escada, não fôsse descer alguém conhecido que me 
visse naqueles apuros difíceis de explicar, estava 
preparado para me levantar ao primeiro sinal.
Não totalmente recomposto, arrastei-me escada 
abaixo e cheguei à rua.


Pequeno intervalo

A leve aragem fresca que corria e o exercício de 
caminhar, ajudaram a recuperação da dor e 
distraíram-me da má resolução dos meus mais
machos anseios. A cidade já estava recolhida. 
Encontrei uma pastelaria aberta. Tomei um café, 
engoli um pequeno cálice de aguardente e não
contrariei a vontade de um pastel de feijão. Voltei ao 
caminho. Ruas desertas.


Vidas

Numa transversal, vi o vulto de uma mulher de 
andar ligeiro. Estuguei o passo e fui-me 
aproximando. Andar seguro, sem bamboleios, roupa
discreta, cabelo solto, mala a tiracolo. Não sabia 
bem ao que ia. Sempre me senti acanhado em 
situações tais. Sòzinha àquela hora da noite? Seria?
Aproximei-me mais, enchi-me de coragem e não 
conseguindo engendrar melhor discurso, arrisquei 
uma pergunta que bem poderia ter sido ofensiva:
- Quanto é?
- Setenta paus.
Pouco teria além de vinte anos. Era bonitinha. Fez-
me sinal para que a seguisse. De súbito enfiou-se 
por uma porta aberta de um prédio antigo. 
escada, de madeira velha como a casa, cheirava a 
pó e gemia sob os nossos pés. Não trocámos 
palavra. Chegámos ao último andar, enfiou a chave 
na porta, abriu e entrámos. Obscuridade completa. 
Não acendeu lâmpada, candeeiro ou vela. Nalguns 
instantes os olhos adaptaram-se e lobrigaram uma 
ténue claridade, vinda não percebi de onde. Era 
um quarto muito grande. Rocei a cara por uma peça 
de roupa pendurada  e percebi um estendal entre 
paredes, a toda a largura. Melhor feitos os olhos à 
penumbra, enxerguei uma cama grande encostada à 
parede e vi que se debruçava sobre um berço 
próximo. Fiquei estarrecido. Com gesto que só uma 
mãe sabe ter, ajeitou o agasalho da criança ali 
deitada. Mas o espanto não findara: a um canto, 
recostada num cadeirão, uma mulher velha olhava-
me. Avó? Alcoviteira vigiando a maquia a 
cobrar? O estatuto pouca importância tinha. A 
presença, por demais inesperada, confundiu-me. 
Não bastava o inocente no berço… agora a velha! 
Pensei em sair daquele palco, porta fora, descer, 
voltar à rua, apagar o último pedaço de tempo. Fui 
travado pela imagem da moça a despir-se junto à
cama, batida pela misteriosa luminosidade. Um 
apetite! A hesitação foi breve. Imitei-a. Deitámo-
nos. Tocámo-nos. Abraçámo-nos. Berço e velha
abalaram para um longe muito longe. Qual berço? 
Qual velha? Pode ter fingido, pode ter de facto 
sentido prazer… a extrema macieza da pele,essa, 
não enganava, era palpável. Em todo o tempo, não 
trocámos mais que poucos monossílabos. Falar de 
quê? Vesti-me, deixei-a na cama e saí.


Alvíssaras

Não pude evitar o retorno do retrato. A mulher 
sentada, a criança de que não vi senão o vulto; a 
moça, quem sabe enganada e abandonada de
barriga, sem rendimento que não o corpo. Senti que 
ter voluntàriamente feito parte daquele quadro 
deprimente me apoucava. E entristecia-me.
Reagi.
Tal como na véspera o vento amainara na praia, 
também se me amansara a lascívia tão rudemente 
fustigada ao longo do fim-de-semana. Não era
bom? E contrariando as más lembranças recentes, 
concedi-me alvíssaras.
Voltei ao meu refúgio. Tomei um prolongado duche 
quente. Fui p’rá cama e confiante deixei-me 
adormecer cheio de esperança no porvir.


José Guerreiro
30 de Setembro de 2018  



 










 








1.8.18


Afazeres domésticos

Pensar não dói

Cada vez menos crescido, a vida vai-me sendo pequenina, pobre, confinada, repetida e chata. Custa-me caminhar; e estar de pé, só por pouco tempo. Falta-me energia para as tarefas simples do qüotidiano. Vagueia longe a vontade de fazer o que seja, mas, mais estranho ainda, também não me apetece não o fazer. Uma pequena coisa aqui, uma pequena coisa ali, sim, é verdade que acabo por ler uns livros, oiço música – cada vez menos –,  uso o computador, gasto algum tempo frente ao televisor… Mas vida activa, com dispêndio real de energia, está reduzida a pouco mais do que uma lembrança. A companhia da senhora cá da casa e a sua ajuda constante, são a evidência maior da minha dependência crescente. Muita sorte, o tê-la, sempre generosa e pronta a auxiliar-me.

Resta-me a actividade de pensar. Então… penso. Penso, imagino, recordo e forço-me a lembranças com substância bastante para merecerem narrativa e poder dar-me ao prazer de as passar a escrito.

Servir

Servidão, servo, servidor, servente, serviçal, terminologia que radica na sujeição a um senhor que obteve direitos e os exerce sôbre quem os não tem. Adqüiridos de início pela posse da terra – à fôrça – os direitos de senhoria, baseiam-se hoje, quase só, na necessidade de meios de uns, em relação aos que os têm em excesso – empregados e empregadores.

O conceito de serviço, também êsse evoluiu e com êle os termos que identificam quem serve. De escravo, servo, criado e ajudante, se passou ao suavizador eufemismo de colaborador ou assistente. A inicial ausência de lei que protegesse os serviçais, também deu lugar a normas reguladoras do relacionamento entre quem trabalha e quem é servido, normas que os diferentes clubes em que se filiaram, tentam todo o tempo ajustar aos seus interêsses.

Tempos de hoje

Ao assalto da vèlhice, que redobra a cada dia, tem valido a ajuda de gente capaz e disponível para tarefas de que vamos desistindo, e dá contributo inestimável para o ambiente bonito e agradável de que continuamos a disfrutar. Quando comprei o nosso quintal, foi no desejo de cultivá-lo – aprenderia fazendo – desejo ràpidamente desfeito pelo medo que me sobreveio do enfarte sofrido há vinte e tantos anos. Primeiro o senhor Joaquim Maria,


depois o João Lamêgo,


por um curto período o Zé Carlos e a seguir – até hoje – o Augusto Santana,


têm sido os hortelãos a cuidar das árvores, algumas ainda plantadas por mim; e do hortêjo, a mando da Noélia que além disso se ocupa das ervas aromáticas e das flôres. Do interior da casa, só há pouco tempo ela aceitou dever coïbir-se de esfòrços maiores. Duas manhãs por semana, temos então a ajuda de uma môça brasileira, de recente chegada a Portugal.

Tempos atrás

Infância

Na minha primeira infância, quem servia em casas de família, eram as criadas. Tivemos uma, durante pouco tempo, a Maria,


uma môça espigadota que ajudava minha mãe em tarefas de limpeza e tomava conta deste menino. Recordo-a mal, mas tenho presente o episódio caricato que me fez viver o papel de ‘voyeur’ involuntário. Tendo minha mãe saído a compras, estávamos no quintal com mais uma criadita vizinha, sua amiga. Conversavam as duas. Pelo que se seguiu, não é difícil concluir ter o tema da conversa sido a mudança que o crescimento opera nos corpos e a chegada dos primeiros anseios juvenis. Que me lembre sem causa aparente, a Maria dirigiu-se-me:

_ Queres ver?... Queres ver?

…e acto contínuo, abriu a roda da saia sôbre a minha cabeça. Surpreendido, vi, tive que ver, a desagradável imagem de uma fenda ensangüentada, de vermelho a fugir para escarlate; e ainda, o desagrado de cheirar um fedorento odor desconhecido. Tirado o retrato à cena, ficou-me a noção de que aquela novidade teria de ser assunto tàbu e guardei silêncio.

Anos depois, tinha minha irmã nascido havia pouco, apareceu outra criadita de servir, outra Maria. Passou sem deixar rasto. Deixou-nos, por iniciativa de minha mãe, quando tive garrotilho, para não correr risco de contágio.

Angola
Moçâmedes

Em Moçâmedes, enquanto vivemos na Capitania, ocupando parte da residência do rés-do-chão, a cozinha e os sanitários eram comuns ao escrivão – meu pai – e ao patrão-mór. À beira das horas de comer, não era raro ver frente ao fogão, não só dois cozinheiros como um par de patroas. O nosso cozinheiro era o Victorino. Bom cozinheiro. Foi êle que nos deu a conhecer a moamba de que só gostámos à segunda vez, quando substituiu por galinha, o pichelim rançoso da primeira.
Porque estávamos apertados nas duas divisões que nos cabiam e não era amigável o relacionamento entre as famílias, meus pais decidiram alugar casa. Não foi fácil. Conseguiram uma construção velha, na avenida, ao lado da farmácia – Soares Pinto (?) – com o interior bem conservado e um grande quintal. Aí tivemos dois criados: primeiro, o Chirumbo, de que não guardo recordação, mas tenho fotografia;


 depois, o Alfredo, 


que nos fez boa companhia e durante mais tempo.
  

Baía dos Tigres

Na Delegação Marítima, onde vivi três semanas, quem nos servia era o Henrique.


Desterrado, condenado, cumpria pena por ter matado a mulher. Com o mar a Oeste e um deserto do outro lado, esta terra, nascida da abundância de peixe na imensa baía, recebia gente sentenciada pela justiça que ali podia cumprir castigo sem estar na cadeia. Era o caso do Henrique. Asseado e diligente, era também um bom observador: nunca me tendo visto, reconheceu-me, ao olhar para o avião recém-pousado de que desci sem ser esperado, quando caminhava pela pista que era também a única rua da terra, porque o fazia  com andar semelhante ao de meu pai.

Lobito

O Lobito, cidade conhecida como a sala de visitas de Angola e porto mais movimentado da costa oeste-africana, foi onde por mais de três anos residiram meus pais e minha irmã. Eu, a estudar em Sá da Bandeira, só nas férias os acompanhava e por isso tenho apenas uma vaga idèia de quem nos serviu. Havia um cozinheiro que, à tarde, quando ia para casa no Lobito-Velho, era portador de um papelinho – um vale – em que minha mãe indicava a carne que desejava para o dia seguinte. Ao passar pelo talho, enfiava-o na fenda para isso praticada na porta e o vale caía na caixa das encomendas. Ao voltar, de manhã, a carne estava cortada e embrulhada. As contas eram acertadas ao fim de cada mês. O processo funcionava muito bem. Tínhamos também uma mulher que lavava e passava a roupa. Muito alegre, cantarolava o tempo todo. Mas tinha o seu prazer maior, no grosso charuto que fumava soprando o fumo, com o morrão dentro da boca, enquanto passava a ferro. Era a Isabel.


Houve também um outro Alfredo, êste de má memória. Transportando da cozinha uma panela de sopa fervente para o jantar, despejou-a sôbre a Salomé, provocando-lhe no peito queimaduras de primeiro grau que arrepanharam a carne e deixaram cicatrizes para a vida. Custa-me aceitar que o tivesse feito por maldade, mas a verdade é que ouvido no Posto Administrativo da Canata, além de ter sofrido palmatoadas, ficou preso por algum tempo.

Faro

Nos três anos que vivemos em Lisboa e durante mais algum tempo depois da mudança para Faro, minha mãe, ela própria, deu conta dos afazeres domésticos. Mas, quando se agravaram os sintomas da doença que a levou, foi contratada a Odete. Vivia no Chalé das Canas e vinha a nossa casa todos os dias. Assim foi, quase até ao segundo casamento de meu pai.

Num mês de férias em que entre sol e banhos de pancada na rebentação passei todas as manhãs na ilha, e a que invariàvelmente se seguia a intimidade algo rápida de um encontro entre lençóis, ao chegar a casa, depois de um duche reparador, tinha à mesa uma frigideira de barro com alto e enorme bife em sangue que ainda gemia protestos da fritura. A Odete cuidava bem do menino Julinho. Depois de uma soneca ficava como novo.

Almada

Belíssima casa, aquele terceiro andar na Frederico Ulrich, com cinco assoalhadas, um átrio e ampla varanda. De renda limitada – um conto cento e dez – tive de comprometer-me a pagar um conto e duzentos para conseguir arrendá-la. Apartamento novo, a estrear, com mobílias novas também elas, tal como os cortinados e habitado por uma parelha acabada de casar, que tinha muito mais que fazeres do que sujar a casa, não havia necessidade de ninguém de fòra para trabalhos domésticos. Quando nasceu o Pedro, porém, para aliviar a Noélia-mãe, contratámos uma mocinha, a Rosinda, 


que deu a sua ajuda por poucos meses.
Legou-nos a lembrança de um medo que ali viveu: num dia em que estava só com o Pedro, a campaínha tocou, assomou-se ao visor da porta e viu um homem muito grande. De facto, o meu tio Zé Grelha era um homão a roçar dois metros, largo, cuja visão a amedrontou de tal maneira que se fez de morta. E quanto mais a campaínha tocava, mais morta se sentia. Até que deixou de tocar. Só mais tarde, quando meu tio tornou e foi a Noélia que lhe abriu a porta, ficou esclarecido o pavor da miúda:
- Minha senhora, era um gegante… não abri.

Alfeite

Sem que nada faça para isso, parece haver em mim uma atracção especial para ser alvo de casos fora do vulgar. Quando em 1965 chefiava as 1.ª e 5.ª Brigadas da 2.ª Repartição da Direcção do Serviço do Pessoal, tive necessidade de usar as licenças a que tinha direito, para auxiliar minha mulher à espera do segundo filho e sem mais ninguém disponível para a apoiar na situação. Não consegui convencer o Director do apuro em que estava. Numa altura também ela difícil no serviço, por via da nomeação de Fuzileiros para as guerras em África, foi-me negado entrar de licença. Mas… mas, o Director, tinha afinal percebido o apêrto e congeminara uma solução: deu ordem verbal ao José, um velho 1.º Criado que lhe cuidava da residência oficial e lhe servia os almóços, para – calcule-se – apresentar-se em minha casa e ali prestar serviço. Assim foi durante alguns dias. Eu, um jovem primeiro-tenente, tive, sem querer, ao meu serviço na residência, o 1.º Criado de um capitão-de-mar-e-guerra, um vèlhinho cambado, a caír para bisavô. Não conheço caso semelhante.

Quando regressei da América, acabado mais um aperfeiçoamento, puseram-me na Escola de Artilharia Naval, ensinando o que tinha aprendido. A escola fazia parte do Grupo Dois de Escolas da Armada, pendurado no ainda Corpo de Marinheiros que dispunha de três moradias para os seus oficiais, no meio da mata do Alfeite. Uma delas estava vaga. Já com dois filhos, o dinheiro tornara-se mais e mais escasso. Seduziu-me poupar a renda de Almada e mudámo-nos. Infelizmente. Um ano depois fui destacado para a ‘Gago Coutinho’, ainda em acabamentos em Alcântara e perdi direito à casa. O melhor que consegui então foi o rés-do-chão de uma moradia no Feijó, com seis assoalhadas e direito a jardim, mas que em vez de um terço do ordenado como acontecia antes, me levava agora quase metade, em favor do cabo artilheiro meu senhorio, que vivia no piso de cima. Belíssima casa, é verdade, mas não a aguentámos senão meio ano. Em Fevereiro de 1968, começando enfim a encontrar rumo, alugámos um sexto andar no Laranjeiro, num prédio habitado por muita gente de marinha, que tivemos por bastos anos. Animado a contar das trocas de morada, já me esquecia do que queria dizer, com enquadramento no tema. Ao tempo em que morei no Alfeite, casa muito grande dividida por dois pisos, tivemos uma mulher-a-dias, Lurdes, alta, esgalgada e trabalhadora que me era especialmente antipática. De tal modo que a não deixei aquecer o lugar. Por a casa ser do Estado, tive ainda ao meu serviço, um impedido, o João, 


grumete que nem sequer sei bem o que fazia.
Sei, porém que ensinou ao Pedro o primeiro palavrão que soube dizer, ou melhor, que não soube dizer, pois quando se aborrecia, com ar muito convencido, atirava agastado :

- Nera, nera!...

Laranjeiro

Outra vez, uma Maria. Quarentona, casada com um Sargento de Abastecimentos e moradora na nossa rua, levando às vezes uma filha ainda criança consigo. Além do amanho de sua casa, conseguia tempo e energia para ajudar a cuidar da nossa, por sete escudos à hora. Ridiculamente insignificante para os preços de hoje – três cêntimos e meio – era ao tempo um valor justo. Esta senhora, muito competente e esforçada, chegou, a levar os nossos filhos consigo, dar-lhes de comer e acompanhá-los, por umas poucas vezes em que tivemos impedimentos inesperados.

António Enes    

Pela sua natureza, a Marinha chegava sempre primeiro a qualquer lugar. E se o local descoberto fôsse atractivo e viesse a ser povoado, ocuparia a área que melhor fizesse a ligação entre mar e terra, que se tornava o pólo à roda do qual crescia um burgo. Era onde se fundavam as Capitanias, com os seus cais ou as suas oficinas e onde se construíam residências para quem nelas servisse. Em António Enes a área ocupada era grande: tinha rampa, estaleiro, oficinas, quatro residências, o edifício da Capitania ela própria, e um quintal imenso com jardim. Entre os quarenta marinheiros, havia calafates, carpinteiros, ferreiros, mecânicos, alfaiate, cozinheiro, todos escolhidos decerto na mira dos seus ofícios. De entre os restantes saía o pessoal para guarnecer as embarcações e também um contínuo, um jardineiro, um lavadeiro e dois criados. Sendo pertença do Estado, o espaço, os edifícios e seu recheio, as embarcações e os automóveis, ao pessoal competia a manutenção e operacionalidade de toda a propriedade. Essa a razão porque, para boa representação da função Capitão do Porto, o trabalho na sua residência estava atribuído a um cozinheiro, dois criados, um lavadeiro e um jardineiro. Quase todos com muitos anos de serviço, tinham conhecido vários comandantes. No essencial sabiam bem as suas funções e formavam uma equipa coesa. A sua fé comum no Islão e a prática dos mandamentos do Corão contribuíam para a coesão do grupo.
Ganhavam pouco, vivendo em permanente dificuldade financeira. Queriam arranjar ou melhorar as suas casas no Inguri, mas quem vendia os materiais – João Ferreira dos Santos – só o fazia a pronto. Propuseram-se pagar em pequenas prestações, mas a loja não aceitou. Meti-me ao barulho e avalizei todos os empréstimos que fôssem feitos. O empenho da minha palavra resultou. Os marinheiros fizeram as obras que quiseram em suas casas e as prestações foram religiosamente pagas no prazo. Ganhei amigos, imensamente agradecidos.

O cozinheiro chamava-se Abudo Ossufo.


Era um homem grande, com papada e bochechas gordas, de bondoso olhar estrábico. Cozinheiro a bòrdo de barcos mercantes ingleses, aprendera as técnicas básicas de cozinha aplicadas às grandes quantidades. Usava agora o seu saber para satisfação de uma só família, juntando-lhe o delicioso tempêro macua. Muito a propósito, das duas altíssimas palmeiras de dendém à frente da casa, colhiam-se as amêndoas que depois de fervidas e pisadas, eram espremidas em panos de onde escorria o saboroso óleo, essencial em alguns dos seus paladares. Cozinhava bem, ao ponto de o Administrador me pedir que o deixasse ir fazer a comida na sua residência, quando recebia gente grande. Tratava os nossos filhos como um avôzinho. Tinha a paciência de pisar presunto e empastá-lo em manteiga para lhes barrar o pão. Fazia minúsculos pastéis de bacalhau e croquetes, porque assim ‘menino não estraga comida’. Chegaram a ter pequenos aventais de ganga azul, que vestiam para o ajudar na cozinha, brincadeira que os miúdos adoravam. Quando metiam a mão onde não deviam, empunhava um grande facalhão, ameaçando-os de lhes cortar a pilinha. Era um espectáculo vê-los fugir.

O criado mais antigo, ainda novo mas já com bòchinha, andar compassado e olhar atento, era o Àmadi Àiuba.


Dirigia com firmeza todo o trabalho de limpeza e arrumação, e servia à mesa com muito aprumo. Cuidava da despensa e do frigorífico. Êste, era um electrodoméstico maningue antigo, que para iludir as freqüentes falhas de electricidade, funcionava a petróleo iluminante. Se a torcida circular não tinha um corte horizontal perfeito, o petróleo ardia mal, fumava e não havia frio. Ou era o Àmadi a tratar disso ou a coisa corria mal. Os miúdos tinham as suas preferências: o Pedro chegava-se mais ao Àmadi que lhe contava compridas histórias de aventuras com bichos, para o ajudar a adormecer depois dos ataques de asma. Quando julgava tê-lo conseguido e deixava pender a cabeça, ouvia a sacramental pergunta: - E depois?  

Sàtique Sàlimo, assim se chamava o outro criado.


Olhos arregalados, dentes à mostra na boca sempre aberta num sorriso, de andar saltitante, avançava veloz para onde quer que fôsse, no cumprimento de uma ordem, mesmo que a não tivesse entendido. Era giríssimo este Sàtique. Preferido do Paulo, também êle mais dado à galhofa. Secundava bem o Àmadi. Quando eu punha no gira-discos Simon & Garfunkel a rodarem ‘Cecília’, o Sàtique entrava em transe, abria inda mais o sorriso, dispunha um lenço no chão, saltava a compasso sôbre êle sem o pisar, e meneando ombros e ancas com o requêbro africano e a elegância macua, ao sabor da música, dançava até à última nota. Até o Àmadi, se estava por perto, comparecia, ganhava leveza e ensaiava com graça os seus passos de baile em pandã com o outro. Parávamos a vê-los.

O lavadeiro – mainato – Molide Muquereza de seu nome, 


era um homem débil, muito velho.
Tinha o seu quê de masoquista, a teimosia com que insistia em trabalhar. Sofria de asma que a queima do carvão no pesado ferro de engomar atiçava. Chegámos a levá-lo ao hospital, mas sem resultado visível. Dávamos-lhe então a medicação do Pedro que o aliviava nas crises. Lavava tudo à mão, com a lentidão própria da idade, secava no estendal e còrava, quando era caso disso – as minhas fardas – sôbre o capim rasteiro do quintal. Tive sempre a roupa impecável.

Por fim, o jardineiro – Livala Sussema.


Nunca lhe vislumbrei dotes para o mister que exercia, mas a verdade é que não seria eu a fazer melhor; além de o jardim manter um aspecto bastante aceitável. Sempre a tinir, a pedir adiantamentos, ora porque tinha emprestado dinheiro ‘a meu amigo’, ora porque um grupo de marinheiros se cotizara para fazer de um deles, o senhor endinheirado do mês, ou por outros motivos que a invenção lhe ditava. Mas o seu grande problema, quase diário, era outro: ter com que pagar pilhas novas para o rádio que para todo o lado o acompanhava musicando para quem estivesse em redór .

Quelimane

Enorme o casarão que na marginal dava morada ao Capitão do Porto. Já o quintal era modesto em relação, mas com área suficiente para uma dúzia de árvores, entre as quais uma mangueira que pendia para a piscina municipal e dava uma delícia de mangas – as melhores que já comi. Dois pisos e muitas divisões, tornavam trabalhosas limpeza e manutenção, feita por dois criados. Não havia jardineiro, pelo que no quintal abundava o capim.

A cidade é maioritàriamente habitada por nativos de idioma chuabo. Sem os constrangimentos que aos macuas o Corão impõe, os chuabos podem beber vinho; e quando o fazem, são incontidos por vezes. Sentimos muito essa diferença, com que tivemos de lidar nos dias de enfrascação do cozinheiro e do mainato.  

Alberto Casamento – assim se chamava o cozinheiro. Não cozinhava mal, mas não tinha o apuro a que vínhamos habituados do mundo macua. Como o meu sucessor no Parapato tardava, o Abudo estava livre, e resolvi pedir-lhe que viesse uns dias para Quelimane a expensas minhas. Esteve quase um mês. Pusémo-lo a dirigir a cozinha e a ensinar ao Alberto as nossas preferências gastronómicas. Não gostou, mas aprendeu qualquer coisa e melhorou.

O lavadeiro – Sopinho Falacomigo – tratava bem da roupa quando não estava escarado, caso em que o melhor era mandá-lo para casa, quando não fazia sala com o Alberto e acabavam os dois em fraternal bebedeira. Com alguma paciência, tê-los-ei levado – talvez – a guardarem a vinhaça para longe do serviço.

António Bazo, era um criado muito bom. Sabedor e eficiente, mas mais do que isso, um homem muito adulto e leal. Quando chegámos a Quelimane, tinha êle sido substituído pelo Albino e passado a integrar o troço de mar, onde não só se sentia, como estava de facto deslocado.

Servir na residência representava uma promoção. O Albino sabia-o, e exibia isso no porte pedante, nos óculos escuros e na bicicleta sempre empurrada. Não me lembro de o ver pedalar. Como entretanto o desempenho me provocasse alguns desagrados procurei substituto. Todos me aconselharam o António Bazo. Tinham razão. Coitado do Albino… andou murcho por algum tempo.

O Gusmão era o segundo criado. Simpático, muito activo, muito risonho, não fazendo demasiado uso da cabeça, mas sempre pronto… uma edição chuabo do Sàtique. A seu pedido, démos-lhe nome para baptizar uma filha nascida durante o nosso tempo de Quelimane: Luísa de Gusmão.

Beira

A circunstância infeliz de se ter süicidado o camarada que capitaneava a Beira, levou à minha nomeação para o cargo, em acumulação com Quelimane. Andei cá e lá de Junho a Dezembro, parando mais na Beira. Porto de muito movimento, levou a um rápido crescimento da cidade à sua volta e empurrou as estruturas da marinha para o meio do burgo. Sòzinho, não me apetecia ir comer na casa deserta. Descobri então um restaurante, Johnny (O Grego), onde comi até me saciar de ostras. Travessas delas, de bom tamanho, cruas, abertas em meio de cubos de gêlo e rodelas de limão. Um petisco. Passei a comer mais em casa quando constatei que o Jó era um bom cozinheiro. José e Henrique, os criados.


Quando tive a Noélia comigo e recebemos amigos e conhecidos, só tinha que dizer ao Jó quantos eram os convidados e para que horas. O resto era com êle. Fazia questão.

Sempre em Quelimane, em 1975 acumulei ainda com o Chinde, por pouco tempo e sem história neste tema.

Olhão

A residência ocupava parte do primeiro andar do edifício da Capitania. Com os miúdos já crescidos, era menos difícil manter as coisas limpas e arrumadas. Mesmo assim, acabámos por ter a ajuda da dona Fernanda. Convidados para apadrinhar-lhe a filha Paula no casamento, acabámos compadres. Tivemos uma bôda muito caprichada nas Pedras d’El-Rei.



Moçambique

Adido de Defesa

Já com o Mazda e alguma bagagem em Moçambique à nossa espera, não havia meio de Samora assinar a aceitação do meu nome para Adido de Defesa na Embaixada de Portugal em Maputo; e foi afinal Chissano, logo que Chefe de Estado, a conceder-me o ‘agrément’. Chegámos em Novembro, pela fôrça do calor. Sucedi ao Velasco, o primeiro no cargo, que me deu alojamento na sua residência durante a passagem de testemunho. Ao serviço, um criado, o Estêvão,


moço novo, despachado, na cozinha como no resto. Tinha grande vaidade nas suas bananas fritas regadas com caramelo, sobremesa que servira a Ramalho Eanes quando êste, uns dias em Moçambique, ali se hospedara. Dizia que lhas servia todos os dias. A verdade é que as bananas eram de facto uma delícia. Por influência do Velasco junto de meios diplomáticos sul-africanos, o Estêvão conseguira um trabalho na nossa embaixada em Pretória e aguardava seguir a todo o momento. Quando aconteceu, indicou-nos para o substituir, um conhecido seu, o Chirindze. De sorriso rasgado, menos diligente, cantarolando ou ensaiando passos de dança, lá ia conseguindo, com falhas de vez em quando, satisfazer que bastasse. Mas não tardou, entrou num negócio e despediu-se. Negócio que não durou muito. Voltou a servir, em casa da nossa amiga Arlete Amaral, de onde em pouco tempo se mudou para a cadeia por lhe ter roubado setenta contos. Indicado pelo Chirindze ao despedir-se, apareceu-nos então o seu primo, João Uache Buène.


Com mais de trinta anos, homem feito, pastor Adventista do Sétimo Dia bem considerado na sua igreja, tinha sido dono em Inhambane de um restaurante herdado de um português que engordara o êxodo das colónias. Vale a pena contar que depois de ali ter sido obrigado a dar de comer, de graça, a gente da Frelimo, se viu esbulhado do próprio restaurante, não obstante ter a documentação que o anterior dono tivera o cuidado de lhe deixar e provava a doação. Impecável na execução de qualquer tarefa, o João esteve connosco até ao fim. Embora lhe pagasse salário superior ao comum, o que ganhava mal chegava para o pão dos quatro filhos, que separado da mulher, tinha a seu cargo. E se precisasse de roupa, compraria no máximo umas calças de ganga azul de marca branca. Por isso lhe dávamos géneros: arroz, azeite, óleo, sabão, etc. Com freqüência revistado por gente armada da Frelimo quando ia para casa, era roubado, com a desculpa de não acreditarem na origem dos bens. 
Passou então a Noélia a levá-lo no Mazda até Polana-Caniço quando lhe queria dar coisas. Muito asseado, desfazia-se em agradecimentos quando lhe dávamos um sabonete ou uma embalagem de pó-de-talco que usava com fartura.

Já de volta, vivendo na Calvaria, recebemos a visita de bons amigos de Maputo, que do Canadá iam de férias a Moçambique. Foram portadores de ofertas nossas para o João – roupas para os miúdos, algumas lembranças e, claro… sabonetes. Pois na volta, trouxeram-nos o agradecimento sob a forma de caju e arroz, de descasque caseiro, que êle sabia serem do nosso agrado. Uma delícia.

A importância de ser Comandante

Raro era o dia em que não estávamos convidados para recepção em embaixada ou na casa de alguém, fôsse êle ao jantar, almôço ou desoras, ou ainda ocupados nalguma visita oficial. Quando sòzinhos em casa, comíamos numa mesinha redonda, parte da mobília da pequena e confortável saleta com vista para as avenidas. Tínhamos escolhido as posições em que nos sentávamos, onde o João dispunha cuidadosamente os nossos talheres e outros aprestos, até ao imaculado guardanapo. Se alguma obrigação me fazia ausente à refeição e a Noélia resolvia sentar-se no meu lugar habitual, aí, a coisa complicava-se. Para o João, aquele era o meu lugar, estivesse eu ou não presente.

- Êsse é lugar de Senhor Comandante!

E, sem apêlo, servia a Noélia no seu lugar de todos os dias. Como se estivesse escrito. Sem remédio.

Mas havia mais.
O João Buène, cuidava da roupa que lavava e passava muito bem. Acontecia por vezes ter a Noélia necessidade urgente de uma peça de roupa, quando êle passava uma coisa minha.

- João, passe-me já esta saia.
- Senhora, estou passar roupa de Senhor Comandante.
- Pode passar depois. Agora passe-me a saia.
- Vai passar depressa. Há-de ter tempo… primeiro Senhor Comandante.

E não desbancava. Nada a fazer. Ser Comandante, era assim!

- Ah! Ganda João Buène!




José Guerreiro
Calvaria, 1 de Agosto de 2018