30.9.18


Fim-de-semana



Um baile

O crepúsculo ia no fim, chegava a noite. Num 
relance, à luz dos faróis do automóvel agora parando 
atrás de nós, li o nome da fazenda, escrito em letras 
mal desenhadas nos azulejos velhos, aplicados 
sôbre o muro junto à portada: Quinta dos Almudes. 
Porta pesadona de madeira grossíssima,
suportada por enormes gonzos e com uma aldraba 
artística – carantonha assustadora – que batida deu 
um inesperado som cavo, capaz de acordar o sono 
mais profundo. Quem abriu e nos deu entrada foi um 
tipo com inequívoca figura de burgêsso, avental 
preto traçado no torso e um laço poído e tôrto ao 
pescoço. Se a pretensão era dar-lhe um ar solene…
grande fracasso. O homem olhava-nos com 
expressão de vendido cujo maior desejo fôsse estar 
longe dali. Não houve noção do tamanho da
propriedade. Via-se apenas uma casa branca, 
esquinas e janelas bordadas de cantaria, e defronte 
um recinto ajardinado e iluminado, cercado de
oliveiras, onde se dançava. Havia lâmpadas coloridas 
– fraquinhas – penduradas por cima, alternando com 
bandeirinhas de papel de sêda.
Uma boa dúzia de pares bandeava-se ao som de 
música na moda, gritada aos guinchos pelos 
altifalantes do gira-discos. Não sabendo bem que 
chão pisávamos, assim como se lançássemos ferro 
em fundo desconhecido, avançámos devagar, a 
mêdo, tacteando com o olhar. O convite chegara-
-nos como se fôra do senhor da casa, mas a cena 
era porventura mais chegada aos anos da filha de 
um caseiro. E era. Tinha sido o amigo de um amigo –
encontrá-lo-íamos na festa – quem nos convidara, 
mas, em verdade, não vimos nenhuma cara familiar. 
Que importava?... Em pouco tempo já dançávamos. 
Algumas môças bonitas, por debaixo de côres 
suaves, tules e lacinhos, cabelos armados, e 
perfumosas, foram razão bastante.

- Tás a ver aquela de azul-claro? Encosta-se toda.
- É tão gorda… não havia de encostar!
- Dança com ela. Acredita que vais gostar…

Foi o que fiz; e gostei. Bem fornida de carnes, mas 
ligeira, dançava bem, aceitava sem rebuço a minha 
pressão e colava o corpo com vontade, ajustando 
em pleno as nossas anatomias. Poucas vezes 
mudámos de par.
Com olhares gulosos, acabou de cabeça repousada 
no meu peito.
Entretanto, o João, que me acompanhava nesta 
sortida, tinha prendido a atenção da festejada. O 
caso ganhou alguma sèriedade quando a mãe,
atenta, percebeu a fixação da miúda, 
completamente desligada dos restantes convidados. 
E foi então, já a noite ia longa e o baile chegava ao
fim, apareceu o convite para uma ida à praia no dia 
seguinte, um domingo. O João e eu, a Dôres, a mãe  
e a gordinha Gracinda, amiga chegada da casa. Que 
sim, que ficávamos muito obrigados e lá 
estaríamos.  


Na praia

O vento, Oeste enfiado, frescote e húmido do mar, 
soprando rasante na areia da praia, arrastava-a 
consigo, projectando-a nos pés nus dos
veraneantes. Incomodados, abrigavam-se a 
sotavento das barracas e dos toldos apeados do alto 
e presos ao chão com as suas próprias estacas,
melhor fixados ao pêso da finíssima areia 
acumulada. 
Ir ao banho tornou-se desagradável. Abriram-se os 
apetites, era tempo de comer. Tanto quanto possível 
ao abrigo da garroa, os farnéis começaram a sair dos
cestos. Desatado o baraço que prendia a tampa do 
tacho de esmalte, saltou para os pratos o arroz de 
tomate ainda môrno; e duma vasilha embrulhada 
em papel pardo chegaram os biqueirões fritos na 
tarde da véspera, ainda gordurentos do azeite da 
fritura. Alguns, escalados e albardados tiveram a 
preferência e acabaram num instante. Destapado
um outro tachinho muito bem vedado, a salada 
montanheira sugeria toda a frescura que dela se 
espera. Não faltou o pão casqueiro, partido à mão,
e o tinto carrascão, despejado em cada púcaro. Não 
é verdade que saiba melhor comido à mão, mas que 
é a boa maneira de comer o peixe frito quando 
pequeno, não haja dúvida. De resto, o único 
processo, naquela espécie de pique-nique balnear 
em família, a fugir ao vento, a evitar a areia. Não 
tanto que não se tivesse de tarrincar com a comida, 
um ou outro intrometido grão de areia.
Já o Sol alongava as sombras quando o vento 
começou a amainar.
Esparramados na areia, as toalhas enroladas a 
fazerem de almofada, alguns dormiam e havia quem 
roncasse. Dôres tentava chamar a atenção do João, 
mal acordado, esfregando os olhos. Olhou-a. 
Ignorou-lhe a pretensão de sair dali. Fazia-se tarde. 
Era evidente que nem dêle nem de mim havia 
qualquer interêsse em ir mais além. Um baile, uma 
merenda na praia e era tudo. Não foi o que dissemos 
à despedida. Uma mentira piedosa. Que sim, que 
telefonaríamos – tomámos nota dos números. 
Até hoje.
O João foi para casa. 
Eu, tinha ainda um compromisso.


Outro baile

Os discos disponíveis para rodar tinham sido decerto 
escolhidos com intencional critério pelas duas irmãs: 
músicas lentas, harmoniosas, em apêlo claro a um 
abraço apertado. Os pares cumpriam com visível 
prazer.
Andava com a Cristina havia meses. Já antes 
tínhamos sido convidados pelas manas para o seu 
apartamento e travado conhecimento com a
maioria dos presentes. Sentíamo-nos muito à 
vontade. O nosso enlace era forte, pleno e ia para 
além do corpo. Havia muito afecto entre nós. A
masculinidade, matreiramente soltada do apêrto à 
roupa de dentro, orgulhosa e firme, contida apenas 
pelo tecido fino das calças de verão, ajustava-se 

com instintiva precisão ao côncavo quente que se 

lhe oferecia, quiçá desnudado por idêntica 

artimanha, sob a protecção única da leve saia 

rodada. Reduzido o chão onde dançávamos a um 

minúsculo quadrado que mal excedia o tamanho dos 

nossos pés, torcíamo-nos de alto a baixo como uma 

coluna ondulada, aproveitando disfarçadamente o 

ritmo da música, convertendo-o num imperceptível 

vaivém sincronizado de pressão das ancas. O 

repetido movimento, o perfeito ajuste dos corpos, os
constantes beijos de entrega, tornaram-se um real 
acto de posse. De tal modo, que em pouco tempo, 
com um prolongado suspiro, a senti escorregar por 
mim abaixo. Tinha atingido o ápice naquela peculiar 
forma de excitação. Amparei-a, ajudei-a a erguer-
se; e com inata falta de jeito, perguntei:
- O que foi?
Num susurro, mas objectiva, respondeu:
- Como se não soubesses!
Procurámos uma janela, aberta sôbre a praça 
ajardinada, para nos recompormos. Ela conseguiu. 
Eu, em vez, comecei a sentir um incómodo doloroso, 
mal definido. Desculpei-me com o longo caminho a 
fazer para chegar ao meu couto e despedi-me. Desci 
com dificuldade dois ou três lances da escada, não 
aguentei mais e encostado à parede sentei-me num
degrau. Experimentei várias posições para as 
pernas, na tentativa de minorar a dor, uma dor 
testicular que roçava o insuportável. Atento à
escada, não fôsse descer alguém conhecido que me 
visse naqueles apuros difíceis de explicar, estava 
preparado para me levantar ao primeiro sinal.
Não totalmente recomposto, arrastei-me escada 
abaixo e cheguei à rua.


Pequeno intervalo

A leve aragem fresca que corria e o exercício de 
caminhar, ajudaram a recuperação da dor e 
distraíram-me da má resolução dos meus mais
machos anseios. A cidade já estava recolhida. 
Encontrei uma pastelaria aberta. Tomei um café, 
engoli um pequeno cálice de aguardente e não
contrariei a vontade de um pastel de feijão. Voltei ao 
caminho. Ruas desertas.


Vidas

Numa transversal, vi o vulto de uma mulher de 
andar ligeiro. Estuguei o passo e fui-me 
aproximando. Andar seguro, sem bamboleios, roupa
discreta, cabelo solto, mala a tiracolo. Não sabia 
bem ao que ia. Sempre me senti acanhado em 
situações tais. Sòzinha àquela hora da noite? Seria?
Aproximei-me mais, enchi-me de coragem e não 
conseguindo engendrar melhor discurso, arrisquei 
uma pergunta que bem poderia ter sido ofensiva:
- Quanto é?
- Setenta paus.
Pouco teria além de vinte anos. Era bonitinha. Fez-
me sinal para que a seguisse. De súbito enfiou-se 
por uma porta aberta de um prédio antigo. 
escada, de madeira velha como a casa, cheirava a 
pó e gemia sob os nossos pés. Não trocámos 
palavra. Chegámos ao último andar, enfiou a chave 
na porta, abriu e entrámos. Obscuridade completa. 
Não acendeu lâmpada, candeeiro ou vela. Nalguns 
instantes os olhos adaptaram-se e lobrigaram uma 
ténue claridade, vinda não percebi de onde. Era 
um quarto muito grande. Rocei a cara por uma peça 
de roupa pendurada  e percebi um estendal entre 
paredes, a toda a largura. Melhor feitos os olhos à 
penumbra, enxerguei uma cama grande encostada à 
parede e vi que se debruçava sobre um berço 
próximo. Fiquei estarrecido. Com gesto que só uma 
mãe sabe ter, ajeitou o agasalho da criança ali 
deitada. Mas o espanto não findara: a um canto, 
recostada num cadeirão, uma mulher velha olhava-
me. Avó? Alcoviteira vigiando a maquia a 
cobrar? O estatuto pouca importância tinha. A 
presença, por demais inesperada, confundiu-me. 
Não bastava o inocente no berço… agora a velha! 
Pensei em sair daquele palco, porta fora, descer, 
voltar à rua, apagar o último pedaço de tempo. Fui 
travado pela imagem da moça a despir-se junto à
cama, batida pela misteriosa luminosidade. Um 
apetite! A hesitação foi breve. Imitei-a. Deitámo-
nos. Tocámo-nos. Abraçámo-nos. Berço e velha
abalaram para um longe muito longe. Qual berço? 
Qual velha? Pode ter fingido, pode ter de facto 
sentido prazer… a extrema macieza da pele,essa, 
não enganava, era palpável. Em todo o tempo, não 
trocámos mais que poucos monossílabos. Falar de 
quê? Vesti-me, deixei-a na cama e saí.


Alvíssaras

Não pude evitar o retorno do retrato. A mulher 
sentada, a criança de que não vi senão o vulto; a 
moça, quem sabe enganada e abandonada de
barriga, sem rendimento que não o corpo. Senti que 
ter voluntàriamente feito parte daquele quadro 
deprimente me apoucava. E entristecia-me.
Reagi.
Tal como na véspera o vento amainara na praia, 
também se me amansara a lascívia tão rudemente 
fustigada ao longo do fim-de-semana. Não era
bom? E contrariando as más lembranças recentes, 
concedi-me alvíssaras.
Voltei ao meu refúgio. Tomei um prolongado duche 
quente. Fui p’rá cama e confiante deixei-me 
adormecer cheio de esperança no porvir.


José Guerreiro
30 de Setembro de 2018