A vedeta das onze
Nota prévia
Por muito
que tenha querido acompanhar a evolução do pensamento social, há áreas em que o
não consegui.
É o caso do cada
vez mais freqüentado teatro de homens sexualmente atraídos que se recusam o
mais primordial dos instintos: adubar a árvore de que são ramos e honrar os
pais, continuando-os;
E que por
vezes, nas tábuas do palco a que sobem e onde se expõem à luz dos holofotes,
têm o supremo dislate de querer convencer-nos que levam passo errado os que na
marcha da vida o não acertam por eles.
Os meus quartos
Terminado o
curso na Escola Naval, aboletei-me no quarto número vinte da Messe do Alfeite
que foi minha casa durante anos, porque consegui conservá-lo durante as duas
primeiras estadias africanas, que fiz a bordo do ‘Sal’ e da ‘Diogo Gomes’.
Deixei-o na manhã do dia em que me casei.
Assídüo
freguês do pequeno ginásio original do Centro de Educação Física da Armada
(CEFA), viver ali a dois passos, dava-me acesso fácil às tabelas de basquete ou
às grandes futeboladas que por lá aconteciam.
Houve tempo
em que me dei ao luxo de alugar também um quarto no Clube Militar Naval, na
Praça Marquês de Pombal. Não tinha compromissos e podia derreter como me
aprouvesse o modesto vencimento. Tanto assim era que a anos-luz de poder comprar
um automóvel, tinha por minha conta, todos os carros da praça de Lisboa. Nos
dias do mês sobrantes do fim do dinheiro, recolhia-me a uma orgulhosa e quieta
modéstia.
Na messe tinha
maior comodidade, já que as instalações haviam sido desenhadas com o propósito
de alojar oficiais solteiros, a mobília, simples, era adeqüada à finalidade, os
sanitários, embora comuns, eram bons e suficientes e uma caldeirinha espalhava
um calor macio que levava de vencida a humidade da mata à volta.
Mas a par
disto, como os vinte anos ansiavam sobretudo ser vividos na cidade grande, o
quarto no clube servia de abrigo e repouso às noitadas mais agrestes.
O último
cacilheiro saía de Lisboa à meia-noite; e da Doca da Marinha, as vedetas largavam para o Alfeite, uma às onze e outra à
uma da manhã. Raramente aquelas horas se compatibilizavam com as minhas que eu
teimava querer absolutas.
Se tomava
táxi assim que chegava a Lisboa, nem sempre sabendo para onde ia, mas sabendo
que tinha pressa, de volta tinha especial prazer em caminhar. Nas noites de
inverno, difícil de combater o frio intenso naquela divisão do primeiro andar
do Militar Naval com apenas um pequeno aquecedor eléctrico, saber do forninho à
espera no quarto vinte, era incentivo maior para me pôr a caminho.
Quase
sempre, descia toda a Avenida da Liberdade, enfiava pela Rua do Ouro e virava a Sul e Sueste até à vedeta. Ajustava o passo ao
tempo disponível e não raro acabava correndo. A tolerância de algum patrão mais
simpático não ia além de um ou dois minutos, tendo por isso chegado a
acontecer-me encontrar o cais vazio.
Em razão do
que, em meia-dúzia de ocasiões de mais urgente necessidade de descanso, aluguei
cacilheiros grandes, que estacionavam na margem Sul e que depois de um
telefonema vinham buscar-nos por cento e vinte paus. Acontecia então
representar o papel de homem generoso que oferece transporte a retardatários
menos abastados e que não eram poucos.
A vedeta das onze
Algum
programa se terá gorado para eu estar a descer a avenida tão cedo.
Parei nas grandes
montras do São Jorge p’ra me inteirar dos filmes programados, hesitei à porta
de esquina de uma pastelaria perto da delegação do Belenenses mas resisti e
continuei. Não entrei no Pirata. Porém, ao contornar o Avenida Palace, olhei o
outro lado da rua e vi o Casulo, aberto havia pouco, onde se esmeravam a fazer
uns bôlos apetitosos à vista que satisfaziam a minha requintada avidez de
açúcar. Comi dois, bebi um café e saí.
À porta
cruzei-me com uma cara conhecida, um moço com idade da ordem da minha, um
marujo – marinheiro radarista - que via por vezes no ginásio do CEFA, onde era
monitor. Cumprimentei-o.
Saí e
reencetei o meu passeio para a vedeta das onze.
Parando aqui
e ali para olhar as montras mais chamativas, a uma delas apareceu também o
rapaz que vira no Casulo. Avancei, parei mais à frente… e o moço de novo ao
mesmo vidro que eu.
Não estranhei.
Sendo marinheiro, era natural que fôssemos na mesma direcção: a vedeta.
Uma vitrina
mais além e de novo o marujo. Só que desta vez se chegou perto de mim e
sussurrou:
- Ó filho… quando é que te descoses?
Hesitante,
estaquei, incrédulo.
Decidi-me
por avançar, sem qualquer réplica. Com as engrenagens em afanoso e quase
barulhento maquinar, cheguei à vedeta.
Sentei-me na
Câmara de Oficiais. Não sei se o moço embarcou na vedeta, não o vi mais. Ainda
que tenha embarcado, ocuparia a zona das praças – não me teria visto.
Na manhã
seguinte, serenadas as retorcidas circunvoluções cerebrais, assim que tive uma
aberta, fui ao CEFA. Agora vestido de segundo-tenente, nos ombros os galões luzentes
de novos.
Lá estava o
monitor – não cheguei a saber-lhe o nome. Chamei-o de lado e encetei o sermão
sem missa cantada que preparara. Pouco palavreado para não perder a força. Pus
a tónica na honradez máscula que se espera de um marujo sem me deter nos
aspectos morais da coisa, mas verberei o modo que escolhera para fazer fichas.
Surpreso
desde que me vira, o moço ia assentindo em silêncio.
Por fim,
olhei firme a praça algo amedrontada, bati ainda nas teclas da honra e da
masculinidade; e ousado, ingénüo e arriscado como decerto não seria hoje,
rematei:
- Então?... Inda queres que me descôsa?
José
Guerreiro
CLV, 28 de
Março de 2016