Marinha de outrora
Teve mau começo.
Não se sabe onde, quando e de quem nasceu.
Entrou na Roda em Faro a 18 de Abril de 1829.
Nesse mesmo dia o baptizaram na Sé com o nome de Sebastião e
foi dado a criar a Bernarda Maria, mulher de Manuel Guerreiro, um casal que vivia
na Tôrre de Natal, lugar da freguesia da Conceição, a meio caminho entre Faro e
Pechão.
Com os tutores aprendeu a tratar do pomar e comerciar fruta.
‘Na forma do Sagrado Concílio Tridentino e da Constitüição
do Bispado de Faro’, usando Sebastião Guerreiro como nome, casou-se com Thereza
de Jesuz, de Pechão, que lhe deu dois filhos.
Enviüvou passados seis anos. No registo de óbito os nomes aparecem
modificados: ela como Thereza Rosa de Jesuz, ele como Sebastião de Souza.
Sob a mesma regra e sendo de novo Sebastião de Souza, voltou
a casar-se. Com Maria Catharina, mais uma vez de Pechão. Tiveram sete filhos,
sendo que no registo de baptismo de pelo menos os três primeiros, volta a
aparecer como Sebastião Guerreiro.
Do nome com que morreu, Sebastião Guerreiro da Tôrre, -
gravado no gavetão do Cemitério da Boa Esperança que lhe guarda a urna - parece
evidente a razão dos apelidos: Guerreiro adoptado do tutor; e Tôrre, do lugar.
De onde viria então o Souza? Uma explicação é que tenha acabado
por saber algo da sua ascendência. Bem possível.
De qualquer modo, foi conhecido pelos três nomes e
respeitado sob todos eles.
Ainda na posse de um Tôrre, existe no centro de Faro uma
casa que foi sua e onde viveu, com frente na Travessa do Pé da Cruz e traseira
na Rua Nova.
Esta casa foi palco de um auto, hoje com o seu quê de
burlesco, mas que no fim do século dezanove, além de dramático, numa cidade
pequena onde todos se conheciam terá tido contôrno de escândalo.
Foi o caso de Sebastião se ter ausentado a passeio para Lisboa
durante uma semana, sem dar cavaco a Maria Catharina, exercício de liberdade de
que ela não gostou. Tomou as suas medidas e quando o marido voltou, uma parede
dividia a habitação em duas: cedeu-lhe a metade da frente e ficou com o lado da
Rua Nova. Assim foi até Sebastião morrer em 1904. Dizia-se dela que não mais
lhe falou.
Tiradas nos Grandes Armazéns do Chiado em 1900, são dessa escapadela aziaga, as duas fotografias a seguir:
A ocupação que lhe é atribuída nos documentos consultados é
a de arrendatário.
Terá arrendado outras propriedades, mas houve uma à volta da
qual a família se foi fixando, a Horta do Ferragial, cujo arrendamento aliás, foi
herdado e mantido pelo primogénito do segundo casamento, Francisco Guerreiro da
Tôrre.
1939, Faro, Francisco Guerreiro da
Tôrre
Dos dois ramos da família que teve em Sebastião o criador,
houve cinco descendentes que se fizeram oficiais da Armada: um Construtor
Naval, três da classe de Marinha e um do Serviço Geral.
É deste – Júlio Guerreiro da Tôrre - que quero falar.
Oitavo e último filho de Francisco, foi em 20 de Julho de
1903 que nasceu na Rua do Ferragial – actual Rua da Polícia, no preciso local
onde hoje, à esquina, se entra no Comando da Polícia de Segurança Pública.
Esquina que aliás só existe desde a urbanização da horta, com a abertura da rua
Dona Teresa Ramalho Ortigão.
Cresceu na imensa propriedade de onde lhes vinha sustento.
Armava aos pássaros, subia aos ninhos, chapinhava no tanque grande onde as
mulheres pagavam uns centavos para lavar a roupa que ensaboavam e batiam na
pedra lavrada posta em cada posição do lavadouro.
Faro, 1914/15? Parece ter uns 11 ou 12
anos.
Feita a instrução primária eclodiu a Grande Guerra.
Portugal era ingovernável. Os Presidentes do Ministério duravam
dias. A dívida pública herdada em 1910, as despesas com a guerra, a inflacção,
a desvalorização da moeda, empobreciam as pessoas e o futuro amedrontava-as.
Para um miúdo cuja escolaridade terminara, o horizonte
ficava longe.
Faro, 1918? Talvez aqui tivesse uns 15
anos.
O pai quis que fosse aprender o ofício de sapateiro. Júlio
queria mais e rebelou-se.
Foi à Escola de Alunos Marinheiros - instalada no secular
edifício que fôra Paço Episcopal, no Largo da Sé – colheu informações e decidiu
que faria vida na Marinha.
Era menor e precisava de autorização paterna. Levou ao pai
os papéis a assinar, com medo de ouvir um não. Mas convenceu Francisco, que não
deixou de o ameaçar:
- Quando perceberes a
asneira e voltares, não contes comigo.
Assentou praça na Escola de Alunos Marinheiros do Sul. Foi o
número 3 de 1919. Tinha 16 anos.
Freqüentou a Escola de Artilharia Naval que desde 1865
funcionava na Fragata Dom Fernando II e Glória.
Foi promovido a primeiro-grumète no dia em que completou 17
anos.
Lisboa, 1921?
Deve ser desse tempo e da Fragata Dom Fernando, esta equipa
de futebol, em que Júlio é o quinto a contar da esquerda no último plano.
Feito artilheiro,
Lisboa, 1921?
não tardou muito, seguiu para o Extremo-Oriente, onde
tínhamos presença naval constante.
Foi em Julho de 1922 a bordo do Paquete ‘Tenente Roby’.
A Lusitânia comemorava ainda a travessia aérea do Atlântico
Sul por Sacadura Cabral e Gago Coutinho que elevara de uns pontos o índice de
vaidade que lhe andava bem por baixo. A portugalidade na Ásia não era menor e
os chineses iam fazendo sedosos bordados alusivos ao sucesso - p’ra mais tarde
recordar.
Ali esteve por cinco anos, tendo por isso tido ocasião de
servir em algumas unidades.
Construída no Arsenal de Lisboa, com fundos de uma
subscrição nacional, reacção popular contra a submissão ao ultimato britânico
de 1890,
a canhoneira ‘Pátria - ter pertencido à sua guarnição - parece
ter sido marcante na formação do jovem marujo.
1923, Extremo-Oriente, NRP ‘Pátria’
1924, Macau, NRP ‘Pátria’
1924, Shangai, NRP ‘Pátria’
1924, Shangai, NRP ‘Pátria’
Na fotografia acima, Júlio Tôrre está sentado no
pau-de-cumeeira do tôldo; e no primeiro plano do lado direito, o segundo
oficial desse lado, por quem ele nutria especial admiração é o 1º tenente
Joaquim Marques Esparteiro, distinto artilheiro, possivelmente o Imediato.
De licença em terra alinhava em rapaziadas, destrajes e
convívios.
1923, Macau, com Salvador Silvestre
1923, Macau, com José Marquilha
1924, Macau, com Beles Fragata, Júlio
Bento e António Carrôlo
1924, Macau
1924.10.05, Shangai
Antecipando-se à Associação de Amizade Portugal-Portugal
criada nos anos oitenta por Mário Moniz Pereira, vêem-se no dia da Rèpública de
1924 duas bandeiras de Portugal congraçadas, uma maneira original de expressar
o desejo de que o país se reconcilie consigo próprio.
Estar em Shangai não foi
impedimento.
1925.10.14, Macau. Na Gruta de Camões.
1926, Macau
1926, Macau
1926, Macau. Elas não matam mas moem.
Júlio viveu muito tempo em concubinato com uma rapariga
chinesa que o serenou e lhe refreou os ímpetos. Abria-se num sorriso quando
falava de Macau, em especial da vida comum com a pequena.
1926, Macau. Na Gruta de Camões.
No Oriente, os marujos faziam grande gala no trajar. Os
uniformes dos macaístas eram mesmo feitos por medida nos alfaiates e tinham um
corte especial.
1926, Macau. Tirou as cartas de
condução que havia para tirar.
Para a Ilha
do Faial,1926 foi um ano terrível. De Abril a Agosto ocorreu uma série de
sismos que culminou no dia 31 com um terramoto de maior violência que provocou
mortos, muitos feridos e destruiu grande número de construções em várias
freguesias, designadamente na cidade da Horta.
Somos um povo
compassivo.
O Núcleo
Desportivo Pátria, integrando muita marujada que a lonjura não tornara menos
atenta, levou à cena em Hong-Kong em Fevereiro de 1927, uma Récita em benefício
dos sinistrados do Faial.
Além de ter
cantado no Acto de Variedades, Júlio representou a Tia Censura na comédia em um
acto ‘Um Julgamento’.
Em Outubro de
1927 embarca no Transporte NRP ‘Pêro de Alenquer’ e regressa à Metrópole.
1929. Com 26 anos é 2º Sargento.
1934? Lisboa, Restauradores.
Apanhado por
um fotógrafo de rua, com ar do pai de família que se prepara para ser.
Casou-se
em Janeiro de 1935.
1938.04.09,
à beira do Arade
Num passeio da canhoneira 'Limpôpo', de Portimão a Silves, pelo Rio Arade.
1941, no Pôrto. 1º Sargento
De 1946 a
1951 prestou serviço nos Serviços de Marinha de Angola.
1947.07.05, Moçâmedes, Escrivão da
Capitania
Com os
filhos.
1947, Baía dos Tigres
Foi Delegado
Marítimo da Baía dos Tigres nos últimos quatro meses do ano, tempo suficiente
para denunciar o mau desempenho do Chefe do Posto Administrativo por ter matado
um nativo à chibatada.
A fotografia
mostra o edifício da Delegação Marítima, ligada por uma passadeira de concreto
à rua principal e única da povoação, também ela do mesmo material, que cumpria
em simultâneo a função de pista para o pequeno avião Stinson que tornava o
deserto transponível.
1949, Lobito. Com mulher, filha e a
macaca 'Lobito'
Foi Escrivão
da Capitania do Lobito durante pouco mais de três anos. Regressou a Lisboa em
Abril de 1951 para se preparar para o Curso Geral de Sargentos.
1951, Lisboa
Fotografia
para renovação do Bilhete de Identidade que substituiu dois anos depois, quando
se tornou Oficial do Serviço Geral e obteve o galão de Subtenente.
1953, Lisboa
1954.10.17, Lisboa, S. Vicente de
Fora
Garboso, na
sua sobrecasaca, símbolo de um caminho bem caminhado, apadrinhando uma noiva,
filha de casal amigo.
No mês seguinte regressou ao ponto de partida, Faro; e foi
Escrivão da Capitania do Porto até Agosto de 1959. Interessante é que a
Capitania estava sedeada no mesmo ex-Paço Episcopal em que assentara praça quarenta
anos antes.
Enviüvou em 1958 e tornou a casar-se.
Foi padrasto de um
enteado que encaminhou p’rá Armada. Mais uma vez e sempre um artilheiro naval.
Enteado que tendo desaparecido cêdo teve ainda tempo de usar
estrêlas nos ombros.
Júlio Guerreiro da Tôrre morreu a 1 de Janeiro de 1977, em
Lisboa, no Campo de Santa Clara, num espaço onde após dois séculos de dedicação
à saúde da Marinha, não pode mais morrer-se.
Mezena
26 de Agosto de 2014