29.12.12


Torna-viagem

O que agora escrevo dá continuação ao ‘Livro de Ordens do Comandante’.   

Depois do mergulho com que Neptuno me convocou, mostrando grande exagero no desejo de melhor me conhecer, duas semanas passarão, antes que ‘Torna-viagem’ tome sentido como título.

Lourenço Marques

Como já foi dito, o Estado-Maior ordenou que não navegássemos a mais de doze nós. Depois, mandou que escalássemos Lourenço Marques para embarcar munições. O nível de ameaça crescente nas posições tomadas pela Índia em vários palcos internacionais, fez-nos crer que aquela arribada enriqueceria os paióis que serviam as nossas duas peças de 101.6 milímetros e as seis Bofors anti-aéreas de 40 milímetros. Estávamos enganados. O que nos esperava eram alguns cunhetes de munições para armamento portátil: de 7.92 milímetros para as espingardas Mauser e de 9 milímetros para as pistolas-metralhadoras e pistolas. E, vá lá, alguma coisa, pouca, para a artilharia do Exército em Goa. Nada que pudesse compensar a perda de um dia de viagem e ser contributo válido para resolver o que iríamos enfrentar.

Deixou de haver dúvidas quanto à pretensão de atrasar-nos.

Era meio de Dezembro. Estivemos no porto pouco mais que um dia. Foi suficiente. Como ‘quem procura sempre encontra’ não deixei de me fazer aparecido em casa da autora do telegrama de felicitações recebido dias antes. Senti-me rodeado de grande simpatia por parte dela e dos pais. Estava ocupada como professora, mas tirou a tarde para me levar a passeio pela cidade. Imagem de firme registo na memória - enquanto lhe olhava o joelho que se mostrava no pisar da embraiagem - ficou-me a sua mão esquerda tomando com firmeza o punho e manobrando com desenvoltura a alavanca de velocidades do ‘carocha’. Sendo dextro e tendo à esquerda uma mão inepta até para as mais elementares tarefas, sinto um arrepio mental quando vejo um canhoto em acção. Não é que ela o fosse de facto, mas com o volante do lado direito, não tinha outro remédio. Afinal, também eu que tempo depois em duas comissões estive oito anos em Moçambique, acabei por ser exímio sinistro… mas sem conseguir ir além das mudanças de velocidade.

Confessou-se-me interessada em outro rapaz, por sinal meu conhecido, mas isso não arrefeceu a vontade de a reconquistar. Empreitada difícil, a caminho de uma Índia, ela própria a ferver em ânsias de reconquista; e que, tudo indicava, não nos concederia retôrno, como séculos atrás fizera a Vasco da Gama.

Despedida

Essa mesma convicção de que o nosso caminho marítimo para a Índia era só de ida, foi o móbil que atirou para o cais toda aquela pequena multidão, ávida de participar na mais nova página da nossa história, que se adivinhava – tinha tudo para isso – viria a ser um funesto sucesso. E como os finais aziagos são mais atractivos, ali estavam para um último adeus. Lia-se-lhes nos olhos e no peso da expressão, como se condoíam de nós.

As suas vozes sussurradas continham o silêncio das horas grandes. Os bem intencionados sorrisos que nos atiravam diluíam-se num esgar de desesperança, podendo imaginar-se sobre a turba o voejar de morcegos de mau agouro.

Os nossos amigos, os nossos mais próximos, sublimavam o sentimento geral de derrota e tentavam banalizar o discurso e mascarar com leveza, a alma fadista de tons menores que nos vem de longe.

Sarmento Rodrigues, governador-geral, foi a bordo despedir-se de nós. Do Comandante, que o antecedera no Palácio da Ponta Vermelha. Dos oficiais, um a um, tratando a todos pelo nome. Aos três mais novos, seus comandados no último ano de freqüência da Escola Naval, recordando episódios escolares que tínhamos protagonizado e davam agora jeito para uma crítica galhofeira.

Olhando fundo, retesando o queixo com firmeza, não deixando que as palavras lhe descambassem em pieguice, esteve presente o tempo todo o militar, a lembrar-nos essa condição comum.   

Com ele aqui estamos, o Curso ‘Pedro Nunes’ – falta o Clarimundo – no átrio da Escola Naval, durante o nosso Baile de Finalistas, na noite de 16 de Janeiro de 1959. Tão meninos…


Parte da guarnição, sem tarefa imediata, expunha-se no cais à proximidade solidária de tanta gente anónima. Eu fazia um pequeno grupo com a menina dos meus sonhos e seus pais que também tinham vindo. O Secretário-Geral do governo de Moçambique, outro oficial da Armada, Vasco Rodrigues, estava na muralha com as filhas a dar-nos o seu adeus informal.

Até que apitou à faina e se apertaram os últimos abraços, se deram alguns beijos esquivos e outros nem tanto; e reembarcámos.

O navio afastou-se fazendo perder tamanho ao cais, às pessoas no cais e aos lenços com que nos acenavam. De bordo, fizeram-se continências e agitaram-se bonés e panamás.

Foi então que dei por falta do ‘Cunene’. Foi o primeiro cão que tive. Deu-mo um camarada, o Sales Henriques de Brito, em Moçâmedes, onde era Capitão do Porto. Chegou-me às mãos ainda cachorrinho, um perdigueiro muito bonito, malhado de castanho macio e branco. Em pouco tempo já não era meu. Tinha sido adoptado pelo pessoal e era de todos. Um dia caíu na escada que descia para onde se fazia o rancho e partiu uma perna. Foi o Cruz Afonso, veterinário em Luanda, anos atrás colega mais velho no Liceu Diogo Cão em Sá da Bandeira, que lhe reparou a avaria. Ficou bom, mas não chegou a ter tempo para crescer entre nós. Só ia a terra acompanhado; e ninguém deu pela saída dele no dia da largada. Ou era dado a prèmonições e a Índia lhe cheirou mal à distância ou mão benfazeja o quis livrar de uma sina que se adivinhava má. Tenha sido por alguma daquelas razões ou por qualquer outra, o certo é que faltou ao embarque. Foi o único. Verdade que não fizera juramento de bandeira.

A nós, parecia ter chegado o tempo de honrar até ao limite, o que juráramos.

Rumo a Goa

A idèia inicial que nos chegou foi que o ‘Afonso’ estava a precisar de ser assistido em estaleiro. Previu-se a nossa deslocação para Karachi, onde nos iríamos encontrar, abasteceríamos, receberíamos testemunho e seguiríamos para Goa. Com a dose de imprevisibilidade de uma situação de guerra iminente, não estava no entanto posta de parte a nossa ida directa para Goa. Acabou por ser esta a decisão final, de resto mais inteligente, por significar que em vez de um só navio, menos artilhado, haveria dois na liça, sendo nós portanto um reforço da presença naval. A rendição do ‘Afonso de Albuquerque’ pela ‘Diogo Gomes’ iria somar desvantagens para o nosso lado, se é que em face de tão grande desproporção tivesse alguma importância que as quatro peças de 120 do ‘Afonso’, que com canos bem espelhados, boas estrias, e pólvoras jovens poderiam atingir alvos a 21 km, fossem substituídas pelas duas peças de 101.6 da ‘Diogo Gomes’ que faziam metade daquele alcance. 

Durante o percurso reiniciado à saída de Lourenço Marques voltou-se às determinações contidas no Livro de Ordens do Comandante - o treinamento do pessoal.

A insistência na execução das tarefas levou-nos a um assinalável apuro de forma e não seria pelo desempenho da guarnição que viria a perder-se a guerra. Porém, quanto mais depressa o destino caminhava para nós, mais se sentia a necessidade de ordenar o pensamento, fazer o balanço de quanto e como se vivera, rejeitar o supérfluo e o mau; e manter nas prateleiras de cima o que nos pusesse de bem com a vida, nos mantivesse tão serenos quanto possível… preparados para tudo.

Essa preparação mental e psicológica era primordial. Uma tarefa individual. De cada um para consigo mesmo. Cientes de que, se e quando o conflito armado eclodisse, a presumível e enorme desigualdade de forças nos deixava de sobra nulas possibilidades de êxito, só cabeças bem ordenadas e fortes conseguiriam aproximar-se daquele Bojador.

Começavam a tomar sentido as palavras do padre António Vieira: «um palmo de terra para nascer e o mundo inteiro para morrer».

Informações

Não havia relações diplomáticas com a Índia, o que obrigava a amizades alternativas.

Considerando adquirido que:

- As Necessidades tinham escolhido bem os diplomatas que dispuseram no terreno e que estes eram gente apta, diligente e inteligente;

- Se sabia do esforço para equipar a sua Marinha que a Índia fazia ao balcão de compras do Reino Unido, onde, aí sim, tínhamos sempre uma vasta missão diplomática, escolhida entre a elite;

- A Grã-Bretanha consegue às vezes fazer jus ao rèclamo à volta da perenidade da nossa aliança secular;

- Toda a informação colhida pelas instâncias a isso dedicadas era canalizada para as entidades onde fazia falta, no caso o Estado-Maior da Armada;

- O Estado-Maior, ele próprio, tinha capacidades que investia com denôdo na recolha de informações e as fazia chegar onde seriam úteis - os navios de guerra ao seu dispor.

Considerando certas as premissas enunciadas, tem que fazer-se a pergunta:

Porque era tão escasso o conhecimento que nos chegava àcerca dos meios navais do inimigo?

Sim, tínhamos o Jane’s Fighting Ships, sim, constava que tinham fragatas da classe ‘Leopard’, sim, parece que tinham comprado um porta-aviões… Parece…?...?...?

Mas, quantos navios, quais, com que características de deslocamento, velocidade, que artilharia, torpedos, aviões, que poder de fogo, com que alcance?

Sejamos realistas. Em verdade pouco interessava saber tanto. Chegava-nos ter a noção do desequilíbrio das duas forças, que fazia do seu embate uma desigualdade… primária.

As unidades navais portuguesas na Índia representavam em relação ao poderio naval indiano, a mosca perante o mata-moscas… um Sansão a quem Dalila não tivesse deixado vestígio de cabelo.

É que a formação de uma armada forte, tinha outro alvo que não a expulsão de Portugal da península. A idèia olhava mais longe e tinha a ver com a grande intolerância religiosa entre hindus e muçulmanos e os ajustes de contas por fazer, acumulados ao longo de uma eternidade. Foi aliás essa fricção eivada de violência surda que obrigou à criação de dois estados para que fosse viável a concessão da independência. Anexar Goa era apenas um exercício militar, um ordenamento das tropas, manobras para testar capacidades e melhorar a eficiência na futura luta com o Paquistão.

Era Nehru que nos dizia que a bem ou a mal tomaria Goa. Era Nehru que nos dava indicação do movimento dos seus meios militares…

…enquanto  as ‘mais altas instâncias’ de Lisboa, que ali nos tinham deixado à mercê, tonitruavam um recado à nação: do Estado Português da Índia não se receberiam vencidos… só mortos ou vencedores. Recado que era um reflexo de má consciência, de uma política mal conduzida que não tinha sabido ler os sinais que o mundo emitira. A responsabilidade do desastre anunciado, como é hábito em tais circunstâncias era atirada para os profissionais da guerra, que passam por ter as costas largas.

Estratégia

Não havia margem para desenhar uma estratégia face à nossa pequenez militar no terreno.

Digamos que havia uma ‘não estratégia’. David e Golias não terão sido alheios ao seu nascimento na cabeça do Comandante. Por mais pequeno que seja, alguém que se sinta acüado vende sempre cara a vida.

Estávamos convictos de que seríamos interceptados antes que pudéssemos chegar a Goa. Se mais não soubéssemos, a marinha indiana tinha no final dos anos quarenta, pelo menos uma corveta do tempo da Índia colonial, um destroyer da classe ‘R’ e o cruzador ‘Delhi’, um histórico que enquanto ‘Achilles’ fora emprestado pela Grã-Bretanha à Nova Zelândia, sob cuja bandeira serviu na 2ª Grande Guerra, onde combateu ao lado dos ‘Exeter’ e ‘Ajax’, tendo ganho cicatrizes na Batalha do Rio da Prata que terminou com a auto-destruição e afundamento do cruzador pesado alemão (por vezes tratado como couraçado de bolso) ‘Almirante Graf Spee’. Não considerando mais que o ‘Delhi’, defrontrar-nos-íamos com oito peças de seis polegadas e oito tubos de lança-torpedos de vinte e uma polegadas, que nos poderiam atingir muito, mas muito antes, que pudéssemos nós fazê-lo com as nossas duas peças de quatro polegadas.

Foi este o cenário a partir do qual ganhou forma o que fazer:

Aproximarmo-nos de quem nos enfrentasse, tão engenhosamente quanto soubéssemos e pudéssemos, executando manobras evasivas (ziguezagueando), tentando escapar aos disparos inimigos. Se conseguíssemos chegar a uma distância propícia, fazer alguns tiros, mas ràpidamente desistir do combate e pormo-nos em fuga, na tentativa de que provocados, nos caçassem. Mais velozes, aproximar-se-iam disparando. Com mudanças súbitas de rumo e diferentes ângulos de visão como alvo, continuaríamos a tentar escapar a quantos impates pudéssemos; e se porventura ainda navegássemos quando estivessem muito próximos, aí usaríamos a funda de David contra Golias, invertendo o rumo para abalroar o caçador, enfiando-lhe a proa na amura que mais jeito desse.

Estratégia?

Que mais poderia ser feito?

18 de Dezembro de 1961

Estávamos a jantar. Com grande estardalhaço abre-se a porta da Câmara, um marujo irrompe por ali e detém-se junto ao canto da mesa. Falando com dificuldade – a correria sugara-lhe o ar – diz-nos aos repelões que a Índia tinha entrado em Goa. Era o marinheiro-fogueiro Ferreira, que acabara de ler a Press Lusitânia na cabina de TSF e se adiantava a telegrafistas e sinaleiros p’ra dar a notícia em primeira mão.

Agora navegávamos para um combate já iniciado. Tinham-se acabado os ‘ses’.

Não tardou muito, uma ordem de Lisboa mandava-nos ir abastecer de nafta e aguardar ordens em Diego Suárez. De facto estávamos próximos do Arquipélago das Ilhas Comores e Diego Suárez ficava ali à mão.

Diego Suarez

Avisados da grande impopularidade de que gozávamos em Madagáscar, não tivemos autorização de pôr o pé em terra. 


Não obstante, termos ali estadiado por vinte e quatro horas apenas, houve  convite para uma visita de câmara. Foram o Carocho, o Isaías e o doutor médico, excelente e tímido moço que se esquivava àquele tipo de convívios, escudando-se na sua pouca aptidão para o inglês, idioma em que habitualmente aconteciam. Ainda se fosse em francês… Pois era o caso; e o Almeida e Castro foi. Parece que mal abriu o bico, obrigando os outros a um rápido rebuscar em reminiscências das páginas de ‘Mon premier livre de français’ e encontrarem um francês liceal para serviços mínimos. Ó doutor, ficaste mal visto!

Esta tinha-me passado ao lado. Soube-a agora do Isaías quando lhe telefonei – telefonei a vários camaradas - para juntar à minha a memória deles e procurar a confirmação de pormenores desta comum vivência.

Recebeu-se entretanto ordem para ir aguardar ordens noutro poiso: Porto Amélia.

Anexação de Goa

Antes de arrumar o assunto Índia quis satisfazer a curiosidade algo mórbida de saber que Armada poderia ter interrompido a viagem da ‘Diogo Gomes’ para Goa e com muita probabilidade a trajectória de muitos de nós para o futuro.

Integrado numa estratégia de consolidação da independência, a União Indiana arquitectou um plano ambicioso de 15 anos para reforço militar, transformado em 1954, por constricção financeira, num plano de 6 anos. Revisto quase de seguida, foi ampliado o número de unidades navais a adquirir e o prazo de execução passou para 10 anos. Foi nesta fase do projecto que foi levada a cabo a Operação Vijay de invasão, ocupação, libertação ou anexação de Goa, Damão e Diu.

Aquando do ataque ao então Estado Português da Índia, a Armada indiana apresentou-se assim:





…para enfrentar a simbólica




que íamos a caminho de integrar.


Colectei todos estes elementos para fazer uma análise comparativa entre as duas Armadas presentes nos mares de Goa em 18 de Dezembro. Desisti, porque um olhar chega para evidenciar como era pretensioso ordenar que derrotássemos a Índia ou pelo menos aguentássemos o combate por uma semana, como acabou por pretender o Presidente do Conselho de Ministros. Limitando-me apenas aos deslocamentos – mais fácil – constatei que a soma dos dos navios indianos era 24 vezes superior à soma dos dos nossos.

Porto Amélia

Encontrámos a ‘Francisco d’Almeida’ em Porto Amélia. Pouco nos ligaram, ocupados que estavam em comemorar o aniversário do Zilhão. Devo ter ido cumprimentar o Comandante, de quem era amigo desde os nove anos, era ele Capitão do Porto de Moçâmedes.

A evolução dos acontecimentos em Goa alterou as nossas vidas. Claro que lamentávamos o que teria sucedido aos que lá estavam… e o que estaria sucedendo ainda. Mas não se leve a mal que tenhamos voltado a sorrir com os olhos. Se eu tinha recomeçado a contagem da vida uma semana antes, aquando do mergulho no Índico, podia agora azerar tudo de novo.

Com o espírito liberto do peso que o sufocava, o pessoal deu largas ao seu contentamento. E a complementar essa alegria, recebeu uns dinheiros atrasados que chegaram a 7 contos de réis para alguns marinheiros, sendo que nessa altura o vencimento-base de um 2º tenente era de 3.600§oo.

Chegada a hora de licenças, o marujal correu para terra disposto a desforrar-se das ansiedades e temores recentes. Cabia-me naquele dia a braçadeira de Oficial de Serviço; e a Divisão decorria sem sobressaltos. Decorria… até que, já noite, chegou a notícia de que os marinheiros da ‘Diogo Gomes’ tinham armado uma imensa zaragata e estavam a partir um bar na cidade. Nomeados ‘ad hoc’ para irem a terra rebocar aquele pessoal, seguiram o Janes Semedo e o Gomes Teixeira, com um par de praças da guarda. Passado não muito tempo estava tudo de volta. A bordo, ao cimo da prancha, eu, caneta em riste e o Livro de Ocorrências na outra mão. Nas proximidades, a bordo e em terra, montes de curiosos. Havia uniformes rasgados, algumas equimoses, poucas; e toda a gente me pareceu nada constrangida com a situação, antes com uma expressão de alívio, como se destruir um bar tivesse sido apenas a mèzinha necessária ao exorcismo dos fantasmas acumulados no último mês. A todos ia pedindo o ‘algarismo’ – número de matrícula – e tomando nota dos sinais exteriores de pancadaria. Fez-se bicha ao longo da prancha, pois o ritual demorava algum tempo. No fim, tinha ‘posto no livro’ vinte e uma praças do nosso navio. Não me lembro dos castigos aplicados, mas não creio que se tenha ido muito além de uns quantos dias de privação de saída. Disse-se depois que tudo tinha começado quando um conhecido marinheiro radarista, exibira, agitando na mão, em leque, as notas recebidas, uma exorbitância. Deixou-as cair e não tendo conseguido apanhar o dinheiro todo, desatou à bordoada, que se generalizou. É natural que o álcool não tenha sido alheio ao ocorrido.

Passámos o Natal em Porto Amélia e creio que foi em 27 de Dezembro que rumámos a Sul.

Presunção e água benta…

Claro que ninguém nos disse que parâmetros foram tidos em conta na escolha do nosso navio para uma missão de tão duvidoso sucesso como a que nos foi cometida. Decerto o Chefe do Estado-Maior da Armada terá ouvido opiniões, tê-las-á até pesado, mas este era o caso típico de uma decisão unipessoal e difícil.

Porquê a ‘Diogo Gomes’?

O desempenho do navio em Angola estava a ser muito bom. A força de desembarque vinha cumprindo sem mácula as suas missões - embora tenha havido um acidente mortal. A guarnição passava por estar bem enquadrada, ser disciplinada e operacional. Mas tudo isto, e mais umas quantas loas que se lhe poderiam juntar, era mais ou menos comum às outras unidades em serviço na costa de Angola.

Que poderia então singularizar a ‘Diogo Gomes’? Só podia ser o Comandante.

Pedro Correia de Barros era um oficial distinto que enobrecia o navio e sabia colher dos homens que comandava o que de melhor tivessem. Andara pelos hidroaviões e pela política, onde ganhara a confiança do Estado Novo, sem que alguma vez se lhe tenha notado em actos de comando que pusesse na lapela o emblema do clube. Era honesto, digno, responsável e corajoso. Distante por timidez, comandava sem sobranceria e tinha a rara qualidade de saber na hora de decidir, usar de frieza para separar o essencial do que apenas embonecava o embrulho.

Assim, a nossa fragata era de facto um conjunto homogéneo, harmonioso e eficiente que almejava sempre uma bitola mais alta. Éramos uma equipa.

Um parêntesis no futuro

Correia de Barros e Paulino Pereira, seu antecessor na ‘Diogo Gomes’, foram à Estrêla ver-me casar e estiveram na bôda em Montes Claros.

Um par de anos depois, Correia de Barros chefiava uma unidade complexa que deixara de ser  Corpo de Marinheiros da Armada. Integrava o Grupo Nº 2 de Escolas da Armada – com uma extensão em Vale de Zebro, a Escola de Fuzileiros – e a 2ª Repartição da Direcção do Serviço do Pessoal. Para esta última me levou, como já antes fizera com o Semedo. Chefiei a Brigada dos Artilheiros, a 1ª; e reformada a repartição, mantendo a chefia da 1ª Brigada que recebeu os efectivos de mais umas quantas classes, fundei e passei a chefiar também a 5ª Brigada, a dos Fuzileiros.

Corria 1965 e minha mulher esperava para Setembro o nosso segundo filho. Morávamos perto de Cacilhas, minha sogra vivia em Lisboa, manteve-se indisponível e ‘comme d’habitude’ dali não viria ajuda. Pela minha parte, não tinha ninguém perto a quem pedir apoio. Tinha licença para gozar, expus a necessidade de ajudar minha mulher e pedi ao Comandante para entrar de licença.

- Nem pense nisso!

Na verdade havia sempre muito que fazer. Talvez fosse o caso, não me lembro, de ter que se nomear algum destacamento ou companhia de fuzileiros para o Ultramar.

Fora de hipótese estava contratar alguém que nos valesse. Lembro-me que em 1965 me sobrava quase uma semana quando o salário acabava. Expliquei-lhe minuciosamente o impasse, mas licença não tive.

O Comandante do Grupo de Escolas tinha ali residência própria (que não usava a não ser para almoçar) e dispunha de um criado, um 1º Criado, que lhe mantinha os aposentos e o servia. Ao tempo era o José, um velho 1º Criado de andar pesadão algo trôpego, cabeça branca e ar de avô, quase a cair da tripeça. E não é que o pobre do José recebeu ordem para prestar serviço em nossa casa quando minha mulher saiu com o miúdo da Clínica de S. Miguel?! Coitada! Mal sabia o que dizer ao senhor para fazer. Lá se foi incumbindo de arrumações, limpezas e caldinhos…  

Não conheço mais ninguém que tenha tido o privilégio de um 1º Criado em casa.

Era assim também, o Comandante Correia de Barros.  

Torna-viagem

Saímos de Porto Amélia sem o Ferreira, aquele mesmo que anunciara a invasão. Faltou ao embarque. Tomou depois um avião e estava à nossa espera no cais seguinte. Deve ter arquitectado uma boa razão, pois não recordo que tenha havido conseqüências. No Paquitequete havia morenas lindas e esculturais e tenho para mim ter uma delas sido a razão do deslize.  

De novo a caminho de Lourenço Marques vinha todo contente por poder rever a minha ex-'fidanzata'.

Aguardaríamos em LM a chegada de 1962 e partiríamos para a Guiné na manhã de 2 de Janeiro.

A escolha da ‘Diogo Gomes’ para a Guiné, tal como fôra para a Índia, não terá sido ocasional. Adivinhava-se que as sementes de insurreição postas a germinar por toda a África colonial, tinham ali terreno fértil. O navio atingira um estado de prontidão que o recomendava para o desempenho de qualquer missão e a que lhe foi destinada executar na Guiné - presença dissuasora – parecia simples. Embora a revolta dos marinheiros da Casa Gouveia no cais do Pidgiguiti já tivesse mais de dois anos, o PAIGC ainda não tomara as rédeas e o período Guiné seria pacífico.

Depois destas incursões no futuro, voltemos ao agora, que convém recordar neste discorrer de lembranças, será 29 ou 30 de Dezembro de 1961, em que regressámos à capital de Moçambique.

Sei que na última noite do ano jantei no Polana com ela e com os pais. Havia uma zona do hotel vedada, que percebi estar destinada à festa de fim do ano. Num daqueles repentes em que era useiro, escusei-me, levantei-me da mesa e fui comprar dois ingressos para a festa. Caríssimos. Regressado à mesa, convidei-a para meu par. Consultados os pais, mais os olhos que as palavras, o convite foi aceite. Rejubilei.

Voltávamos a um baile… volvidos quase dois anos, tê-la-ia de novo nos braços… as engrenagens da minha imaginação tomaram o freio nos dentes.

Logo eu, sempre avesso àquele muito programado festejo de mudança de ano, a meter-me na balbúrdia e de vontade própria! Quem diria? Como ‘o sonho comanda a vida’, hem!, Gedeão?

Conversámos, bebemos, e dançámos, em volteios, ondas e rodopios, de bem com a música, enlaçados não com o mesmo amoroso e quente apêrto de outros tempos, mas tendo mesmo assim, cada um consciência do corpo do outro. Tudo parecia encaminhar-se para um regresso e a seguir tudo ruiu. Quando as cornetas e apitos nos deram fé da meia-noite, toda a gente à volta se abraçava e ao meu apelo mudo deu a face a beijar e não a boca, aí, como num passe de mágica, desfez-se um contacto, houve um apagão e ela deixou de ter espaço na minha vida. Assim mesmo. Definitivo. O pensamento não chegou a ter presença. Tão sòmente um automático e instantâneo sentimento de rejeição. Fui levá-la a casa e horas depois ainda lá almocei, porque já antes aceitara o convite dos pais.

O golpe de Beja ocorrido na noite anterior foi aturado tema da conversa que mantive com o pai, que apesar do fracassado ataque ao quartel, não escondia um sorriso reviralhista de satisfação pela tentativa, uma espécie de apoteose do como tal conhecido, ‘ano horrível’ do regime.  

Enquanto o ‘Bartolomeu Dias’ chegava, partíamos nós, numa viagem sem história, para Bissau.

Nunca enjeitando uma boa compra em S. Vicente fui aos bazares do costume e cheguei a bordo com uma câmara de filmar de 8mm ‘Carena Zoomex’, uma espingarda-caçadeira ‘Robuste’ de dois canos laterais e um gravador estereofónico ‘Grundig’. Notável a elasticidade do meu conceito de boa compra. Para não falar de como a posse de tais bens seria inestimável contributo para a minha felicidade. Se a espingarda, aliás uma belíssima arma, acabou no ‘Pedro Nunes’ através de Bustorff Guerra e não me lembro do fim do gravador, conservo treze filmes, tão toscos quanto a tecnologia da época produzia, que apesar disso são preciosas cábulas de momentos vividos entre 1962 e 1969.

Bissau, Bijagós e Ca.

Não termos uma guerra à proa não foi razão para que perdesse força o Livro de Ordens do Comandante. Quase sempre navegando em rios, estávamos condicionados não  só pela proximidade das margens, como pelos fundos baixos, mas tudo o que pudesse ser feito, era feito. Continuava a arriar-se a baleeira,


fazia-se tiro para um alvo posto a flutuar, simulava-se um salvamento, etc. Marcava-se presença aqui e ali, mais aturadamente no arquipélago dos Bijagós; e fiscalizava-se a pesca – havia franceses a pescar naquelas águas.

Traçado um rumo na carta, é sobre ele que o navegador tem que fazer cair as posições que fôr observando; e isso é tanto mais necessário quanto mais restritas forem as águas, o que na Guiné é particularmente verdade. A confirmação constante de que o navio navegava por onde queríamos e não ao alvedrio de ventos e correntes, era uma exigência do Comandante. Daí a inumerável quantidade de observações que tinha que fazer. Quase em permanência na ponte, numa das suas asas, atrás da  repetidora da girobússola, óculos alçados na testa e empunhando os binóculos em busca de uma marca de referência que estivesse impressa na carta, era um instantâneo fácil de captar. A Guiné é plana e baixa e os marcos geodésicos, sempre longe de nós, são pequenos pontos brancos escondidos na finíssima fita castanha e verde das margens, difíceis de encontrar, tal como alguns recortes costeiros referenciáveis. Depois de reconhecidos, assentava os binóculos sobre o vidro da repetidora na direcção aproximada do avistamento, repetia a busca com os binóculos ali pousados e ajustava a alidade do aparelho de marcar ao azimute de avistamento. Com rapidez, tirava os binóculos, baixava os óculos e procurava de novo a mesma baliza, agora em tamanho real. Nem sempre conseguia à primeira e tinha que repetir tudo. Marcado o ponto de referência, segurava nas mãos o rebôrdo da ponte junto à porta do CIC (Centro de Informações em Combate), balançava o corpo e atirava-me porta adentro. Em dois passos estava frente ao monitor do velho KH 975, media a distância mais próxima a terra e com aquele azimute e esta distância tinha um ponto. Repetidos estes gestos centenas e centenas de vezes, em três meses de navegação naquele dédalo tortuoso de águas barrentas, estraguei ainda mais os olhos. Os suplícios por que passa um míope… Em compensação, todo o tempo aos saltos entre a ponte, o CIC e a casa das cartas, melhorei imenso a forma física.

Mostrámo-nos muito nos Bijagós. Canhabaque e Bubaque foram-nos familiares, mas também acenámos a Rubane, a João Vieira, etc. Registei em 8mm cenas interessantes de Bubaque, como foi o caso de danças tradicionais.


Pena que o apuro técnico das câmaras e dos filmes fosse ainda tão incipiente, como é aliás visível em todos os fotogramas, como este em que me exibo entre ‘bajudas de mama firmada’ (nem sempre tão firmada como isso) e além do mais, pouco sorridentes para a maquineta.


Ainda tenho o cofió que aqui uso, comprado cinquenta anos atrás no mercado de Bissau. A última vez que o pus, não há muito tempo, cruzei-me em Leiria com um velho negro que ao olhar-me a cabeça assim coberta se abriu num bonito sorriso cúmplice que devolvi com a simpatia que soube usar.

Inauguração da Piscina de Bafatá

Talvez em Fevereiro, três camaradas tiveram a visita das suas consortes: Loureiro de Sousa, Avilez e Carocho. Sortudos! Era uma prática pouquíssimo comum à época.

Por essa altura, quem sabe se com a mira de obsequiar as moças, alguém organizou uma interessantíssima excursão pelo interior da Guiné. Utilizados vários meios de transporte, desde uma lancha de desembarque pequena aos ‘jipes’, não esquecendo o popular 2 cavalos, tudo serviu para nos levar a ver uma África quase intocada. Não sei com exactidão por onde andámos, mas colectando lembranças e olhando o filme que fiz, arrisco que a lancha saiu de Bissau, navegou Geba acima, meteu pelo Corubal, talvez até ao Xitole, fizemos ‘cambança’ para os automóveis, fomos ver uns rápidos – Cassilinta ? – passámos por uma sólida ponte metálica comprida e seguimos para Bafatá, decerto passando por Bambadinca. Dali fomos para Mansôa e regressámos a Bissau.

Em Mansôa era famoso o jacaré cego, que toda a gente queria ver, e viu. Mas em Bafatá tínhamos tido a nossa hora de importância, como inauguradores da piscina. Foi um acontecimento e tanto. Junto ao rio e com casas por perto, entre paredes brancas e com um pórtico triangular de acesso à prancha, com a bandeira portuguesa içada, a piscina era uma festa. Dezenas e dezenas de miúdos, os corpos castanhos molhados brilhando ao sol numa imensa… - ia dizer chilreada, mas era muito mais do que isso – era uma algazarra, um festival de gritos e água pelo ar, de gargalhadas, de contentamento em estado puro.

Por conta própria, fizemos mais sortidas exploratórias do mato guineense. Sei que estive em Fá, perto de Bambadinca e de um Rio Geba ainda criança, numa estação agrária. Ali dormi uma noite e de manhãzinha fui estrear a espingarda. Não sendo grande caçador, contentei-me com um pombo verde.

De áfrica em áfrica, cruzava-me às vezes com gente que antes vira em diferente lugar e circunstância. O director que conheci nesta estação de Fá, fui encontrá-lo na Zambézia nos anos setenta; e já neste milénio, numa paisagem menos africana, fomos ao mesmo tempo hóspedes do Hotel do Bussaco. Coisa pequena… este planeta!

Bento Pertunhas

A bordo da ‘Diogo Gomes’ não se chamava assim.

Era a Ordenança Externa. A praça que desempenhava esta função tinha que ter o aval de confiança de toda a guarnição. Lidava com dinheiros e era a estação de correio do navio. De mala a tiracolo e sabre à cinta, era fiel depositário nos dois sentidos, não só da correspondência oficial como das missivas entre os 180 homens da guarnição e a rectaguarda. Uma missão com o seu quê de sagrado.

Nos dias de ‘São Avião’ era esperada com ansiedade a sua vinda de terra. Não tocava trompa nem usava óculos como mestre Bento Pertunhas; nem sequer se dava ares ou perdia tempo em delongas. Não dava ao momento a gravidade acrescida do outro e acompanhava a entrega de correspondência com o sorriso de um homem bom. Sorriso logo reproduzido nos olhos do destinatário do envelope. E quantos mais houvesse e mais mãos se erguessem para os recolher, mais o ar ficava leve e limpo.

Com os laços familiares enfraquecidos, só a espaços trocando notícias com as amizades mais chegadas e fazendo ainda o luto pelos últimos amores, não recebia cartas. Olhos mais atentos entre as três visitas femininas com que partilhávamos a câmara e assistiam às cerimónias de distribuição do correio, notaram o meu isolamento a um canto, alheio à chamada. Soube mais tarde que isso deu origem a condoídos comentários mais ou menos casamenteiros e a bem intencionados propósitos de colmatar o meu vazio de ‘Julieta’.

De volta a Lisboa, a ‘Milita’ mexeu tão bem os cordelinhos que acabei por vir a conhecer a jovem que ela tinha em mente para o papel. Em poucos dias estava embeiçado. Resultou. De tal modo que o casamento vai em cinqüenta anos e ainda dura.

Lisboa

Na transição para Abril recebeu-se uma mensagem que ordenava a substituição de um 2º tenente não especializado da classe de Marinha, que deveria voltar a Lisboa e apresentar-se na 1ª Repartição. Éramos três nestas condições e o comando entregou-nos a tarefa de escolher o eleito. Mostrou-se interessado o Isaías e concordámos. Entretanto percebi que deveria aproveitar a ocasião para tentar apaziguar questões surgidas entre familiares, o que o Gi aceitou. Coube-me pois regressar antes do fim da comissão. Chegou o Anacleto, a quem entreguei a pasta.

O meu bota-fora ficou registado em filme, feito no aeroporto de Bissalanca em 19 de Abril de 1962. Olho com enlêvo as longínqüas personagens que se agitam nas imagens, que se riem, que me abraçam e confirmam o companheirismo que nos unia.

Viajei num DC-4 da Força Aérea e ao princípio da tarde estava no Marquês, à porta do Militar Naval. Vinha a sair o Barata, que me fez uma grande festa e me deu a novidade: estavam à minha espera na Escola de Fuzileiros. Fiquei surpreso. A ingenüidade trazida do berço não me permitira cogitar essa tão provável hipótese. Começámos por descer a pé a avenida e não sei o que nos fez mudar de rumo. Terão sido tiros? Assevero que aparecemos no Bairro Alto à frente de umas fardas cinzentas com poláinas, vestindo corpos agachados da Guarda Nacional Rèpublicana, caras façanhudas e armas aperradas, que pareciam arremedar um filme da 2ª Guerra. Na dúvida esquivámo-nos ao contacto e corremos Calçada da Glória abaixo, com todo o risco que tem, fazê-lo naquela rampa. Tínhamos caído em plena repressão de estudantes, na crise académica de 1962. Na Guiné, onde amadurecia uma guerra, não tinha visto armas apontadas a ninguém. Chegado a Lisboa, já andava a fugir à frente delas… Heróis do mar!

Depois de treze meses longe, acertar numa quinta-feira de Endoenças para voltar a Lisboa, quando tanta gente arrenega o bulício e vai pedir arrêgo junto a seus maiores, à lareira de um convívio pascal de aldeia, fez que me sentisse só e desàsado. É que, safo das espingardas, recolhido ao Alfeite e acordado cheio de viço, nada mais aconteceu nem se previa que acontecesse. Valeu-me o Cantinho, velho conhecido do liceu de Faro tornado amigo já ‘nestas casas’, que permanecia conhecedor dos meandros da noite. E foi pela mão dele que mesmo em Sexta-feira Santa, não me contive e fui pecar. Cada um com sua ‘manuela’, acordámos em tardia manhã de Aleluia ao cimo da Duque de Loulé.

E foi já lavado da pecaminosa noite que me fiz encontrado e conheci ‘Julieta’.

Apresentações

Segunda-feira, 23 de Abril, 1ª Repartição. Já tinha a guia entregue e aguardava sentado que me chamassem, quando entrou Rosa Coutinho. Abraçámo-nos sem palavras. Vinha do cativeiro de vários meses, começado em Boma, com passagem sabe-se lá por onde. Fi-lo ciente de como sentia o que havia sofrido. Num mutismo constrangido, não correspondeu senão com vagos monossílabos. Terá sido o silêncio, condição obrigatória para a liberdade? Falou-se ao tempo numa acção pouco voluntariosa dos diplomatas encartados, correndo que a libertação se devera à diplomacia popular paralela de portugueses anónimos emigrados no Congo. Estava magro, frágil e cabisbaixo. Uma sombra dele próprio. Pudera!

Disseram-me que não estava ainda decidido o meu destino, mas passados uns dez dias fui mesmo para a Escola de Fuzileiros. Ia começando mal a minha estadia. Assim que cheguei fui à inspecção médica. O inspector foi o Dr. Pinto Bastos de Morais, o ‘Almocinho’. Médico da Escola Naval enquanto lá estive, éramos velhos conhecidos. Só que me fez a pergunta errada:

- Então diga lá de que é que se queixa?

- Ó doutor eu não estou aqui p’ra me queixar, venho p’ra ser inspeccionado.

Parece que o senhor tinha razão, grande parte da malta ia ali para se queixar. As coisas compuseram-se e ‘ganhei’ uma guia para a consulta de Cirurgia do Hospital da Marinha, mor de uma rotura de ¼ do quadricípete direito feita quatro anos antes no ginásio da Escola Naval.

Ao almoço fui interpelado da cabeceira da mesa pelo Melo Cristino - companheiro de desoras ao balcão do bar do Militar Naval - com uma saüdação efusiva à minha chegada. Porque estava longe, pus os óculos enquanto falávamos. Ao meu lado o Penha, que tinha acolitado a inspecção médica:

- Ó homem, devia ter dito que usa óculos… Vou passar-lhe guia p’rá Oftalmologia.

E não é que foram os olhos o impedimento para Fuzileiro Especial? A perna direita, com uma porção rôta do músculo da coxa, que às vezes um esforço mal equilibrado fazia romper um pouco mais e me punha a coxear, essa foi aprovada. A vontade omnipresente do Almirante Roboredo nublava o julgamento dos médicos quando se tratava de aptidão para fuzileiro. Fui então chutado para o Hospital de S. José e sujeito a choques eléctricos nas duas coxas para comparação das reacções musculares de cada uma. Exame inconclusivo. O que eu sentia como uma séria limitação física para o Curso de Fuzileiro Especial e mais grave ainda para um futuro desempenho de acções  sob a bóina daquela especialização, não teria passado de imaginação. Caso estranho é que ainda hoje é visível a depressão na coxa.

Resumindo: em menos de um mês na escola, fiz duas divisões, levantei um auto e fui destacado para o Draga-Minas ‘Horta’, onde fui Imediato do Guise.

Tinha voltado ao mar.

Mezena
29 de Dezembro de 2012




















19.12.12

Entre Macuas

Habituados que estavam a suar naquela quadra, ainda se surpreendiam com o frio, em visita ao Natal que se aproximava. Despojados de conforto, desiludidos da vida que os empurrara para uma terra que muitos não conheciam e outros já pouco lembravam, carecidos de meios e de afectos, alguns mesmo vítimas de desafectos familiares – já que antes tinham tido os pretos a trabalhar por eles, agora que se amanhassem – resolveram amparar-se, reünindo-se. Aquela primeira reünião de naturais e ex-residentes em António Enes foi isso mesmo, a necessidade de serem iguais na desfortuna, de exorcizarem os seus males falando com alguém que entendesse a sua linguagem, enfim, um muro de lamentações.


Resultou. Gente que mal se conhecia tornou-se amiga. Criaram-se laços, cumplicidades, companheirismo. De tal modo, que desde o histórico  primeiro convívio no Grande Hotel da Curia, em 18 e 19 de Dezembro de 1976, o evento, que passou a ser celebrado na primeira quinzena de Outubro, já passou por vários poisos – Figueira da Foz, Vila Caia (Mira), Praia de Mira e de novo Mira, desde 2003, agora no Hotel Quinta da Lagoa, onde há dias decorreu a trigésima quarta reünião.

Ao longo de tantos anos, muitos morreram. São lembrados em cada ano na missa que também enforma o convívio. São-no ainda em o ‘Macua’ o apropriado nome de baptismo da revista que resume no papel, em escritos e fotografias - além de memórias - o curso dos saraus. Entretanto, a descendência, acompanhando pais e avós, aparece nas festas, dá-lhes alarido e alegria e vai ganhando esporas de natural ou ex-residente sem mesmo bem saber onde fica África.

A ‘trintiquátrima’ reünião teve cartas novas no baralho. Naturais de Angoche, vieram de Moçambique e engrossaram as hostes. Apresentou-mos um moço que foi meu aluno de matemática no velho Colégio de S. João de Brito, professorado quase inerente ao cargo de Capitão do Porto. Tivemos uma conversa agradável, recordámos conhecimentos comuns e ‘politicámos’ um pouco. Até que um deles, Naíta Ussene, me pediu um esclarecimento: ‘Porque se chama Rosa Coutinho ao cais de Angoche?’. Disse-lhe quanto sabia e fiquei de o escrever para eventual publicação no semanário moçambicano independente ‘Savana’. Sendo que o tema pode também interessar o ‘Macua’, aqui vai para os dois:

Esporão ‘Comandante Rosa Coutinho’



Em 1976 voltou a chamar-se Angoche (nome roubado ao arquipélago) após alguns anos de homenagem ao Comissário-Régio António Enes. Mas já antes de ser cidade ou sequer vila, fora conhecida por Parapato, o nome com que as gentes das ilhas à volta, ainda apontam o burgo.
Com este ou outro nome, quando por lá estive, a cidade, além das indústrias de descasque de caju e arroz, vivia de comércio e serviços e de duas riquezas principais: exportação de castanha de caju em bruto e captura de camarão, em grande parte exportado também. Chegavam vazios, ‘on hire’ (em aluguer), os navios-castanheiros que levavam a castanha para as índias. Com calado mínimo, entravam na barra com facilidade. As datas eram porém estudadas de modo a propiciar que depois de carregados houvesse sem perda de tempo marés com altura de água suficiente para a saída. Fundeavam no porto e recebiam a castanha de caju em sacos estivados sobre chatas quadradas de madeira, de fortíssima estrutura, onde chegavam à cabeça de carregadores



Havia uns quantos rebocadores que faziam o vai-vem entre o cais de acostagem das chatas e os navios-castanheiros, cais que ficava pequeno no pique da época da castanha. Com o aumento da frota pesqueira dedicada ao camarão, sentiu-se necessidade de ter maior área de atracação e surgiu a ideia de um novo cais, com menor dependência do regime de marés. Alfaro Cardoso, Administrador e Presidente da Câmara tornou-se entusiasta do projecto. Entre as consultas feitas pesou a opinião do capitão-de-fragata Rosa Coutinho, brilhante e dinâmico profissional, engenheiro hidrógrafo que chefiava as dragagens de Moçambique. Negociada com a Sena Sugar Estates a aquisição do velho navio-pontão ‘Anthea’, de 77 metros de comprimento, 11 de boca e fundo chato adequado ao fim em vista, 


o Comandante Rosa Coutinho assumiu a direcção da obra.

Foi em 1971, não recordo quando. Fixado o navio na posição estudada, subimos a bordo por uma escada de quebra-costas, Rosa Coutinho e eu. Os dois sòzinhos. Verificado que tudo estava em ordem, foi chamada e aproximou-se, uma draga de sucção de grande potência, disponibilizada pelo Serviço de Dragagens, que sugando de longe, passou a jorrar o dragado – água e areia – primeiro num, depois noutro dos porões abertos do Anthea. Ainda que o caudal fosse imenso, os minutos arrastaram-se por mais de uma hora até que começasse a adornar para bombordo. Inclinou-se mais e mais e mais, o casco tocou o fundo pela região de encolamento e a embarcação, endireitando-se lentamente, assentou completamente e ficou onde ainda está. Escoada a água pelas válvulas abertas, no fim restou um navio cheio de areia, a nova ponte-cais, a que faltava apenas a ligação a terra. Mais uma vez a draga, depositou areia durante dias a fio sobre o desenho do esporão, que as máquinas em terra  foram movimentando e compactando.

Alojado na residência do Administrador do Concelho, Rosa Coutinho viveu em António Enes por um bom par de meses. De sono breve, não conseguia sincronizar-se com o horário colonial de Alfaro Cardoso que se recolhia muito cedo e erguia mal acabada a madrugada. Procurava-me então e passávamos longas horas na conversa, temperada com umas ‘Laurentinas’ bem geladas, tornadas mais apetecidas ainda pelo camarão ou caranguejo postos na mesa, uma pequena mesa redonda na varanda interior que servia de sala, onde aparecia também o famoso môlho-ladrão, cujo segredo o Cândido, companheiro de teatrices, revelara a minha mulher, sob jura de silêncio. E quando por volta das duas horas eu não conseguia disfarçar um bocejo, despedíamo-nos com um até logo.

O saber, a disponibilidade, o dinamismo, a dedicação e o espírito de missão que Rosa Coutinho pôs ao serviço da cidade no planeamento e execução da obra, mereceram de Alfaro Cardoso e da sua Câmara a escolha do nome para o ‘Esporão Comandante Rosa Coutinho’.

Aqui tem, caro Naíta, a resposta à sua pergunta.

Mezena
18 de Outubro de 2012