Livro de Ordens do Comandante
Messe do Alfeite - Quarto vinte
A família que fôra a sua partira-se
com a partida da mãe.
Agora com madrasta, também ela mãe,
mas determinada em fazer jus ao significado maldoso do termo, alonginqüando do
marido os enteados, furtando-se à tarefa de ajudar a educar a enteada órfã,
sugerindo e ajudando o seu internamento num colégio distante, agora, sentia ter
perdido o lar onde fundeava desde menino.
Agora, na prática sem casa nem
família, independente e sem amarras, não tinha ninguém para procurar entre a
pequena multidão que em bicos de pés, na Doca da Marinha buscava o rosto
ansiado no meio da marujada que se atarefava na faina de atracação do ‘Sal’.
À sua espera, apenas o quarto vinte
da Messe do Alfeite, que o receberia com a indiferença do qüotidiano rotineiro
de antes da viagem… como se o tivesse visto saír de manhãzinha.
Mas uma noite bem dormida foi quanto
bastou para recuperar daquela última e agitada tirada Las Palmas – Lisboa,
coisa que não aconteceu decerto ao esforçado motor do pequeno patrulha, que
sòzinho, contra ventos e marés – aqui a expressão é de facto apropriada – o
trouxera de volta. Ele, o motor, teria de sofrer longos fabricos para se
recompor.
Havia que virar a página.
Virar a página
…E aproveitar para mudar também a
forma de discurso.
Nunca atribuí à chegada de Janeiro a
necessidade de uma comemoração. Porém, sob a influência do atribulado final de
1960 e da solidão de que me cria vítima, quis evitar a minha irmã o mesmo
sentimento de abandono. E para mudar de ano, decidi que estivéssemos juntos.
Ela passara a consoada numa aldeola da região de Leiria, em casa de uma colega,
onde permanecia de férias. Da aldeia sabia apenas o nome – que já nem lembro -
e tinha uma idèia da sua localização geográfica tão vaga como se ma
tivessem indicado com uma mão aberta sobre o mapa.
Ao escrever o parágrafo anterior não
posso deixar de sorrir; e de pensar que talvez faça sorrir também algum moço do
meu curso que porventura me leia e se lembre duma aula de Navegação do ‘Trrrim’
em que rabiscado sobre o imenso quadro, um problema se expunha à ignorância
geral; e chamado à berlinda um cadete, para responder a uma pergunta que pedia
o uso do dedo indicador sobre um ponto, espalmou a mão sobre o quadro e
disse convictamente: “Aqui!”
Precisava de encontrar minha irmã.
Ainda distante do tempo em que viria a ter carro, pedi ajuda ao Sérgio, que
como de costume se automovia num chaço cansado de mudar de mão, esquecido já de
quantos donos tivera. Mas a idade e o estado de saúde do ainda automóvel, nada
tinham a ver com a generosidade do meu circunstancial amigo que se dispôs a
embarcar comigo na aventura. Porque era uma aventura: a viagem tinha que ser
feita de madrugada (a noite de 30 começara havia horas); ao tempo, as estradas
eram muito estreitas e de bermas indefinidas que tinham de ser adivinhadas; não
se usava qualquer sinalização horizontal e a vertical era racionadíssima; e o
piso era de asfalto ralo mas muito escuro e a luz dos faróis apenas o amarelava.
Saímos do Saldanha era quase
meia-noite.
Depois de muitos enganos, paragens
para ler os marcos da estrada e alguns retôrnos, chegámos à aldeia. Foi o tempo
de bater às portas, acordar as gentes e fazer perguntas, em busca da agulha no
palheiro. Encontrámo-la eram três horas e tal da manhã.
A casa da tia Adelina era em Faro,
perto da estação. Saídos do combóio pusemo-nos lá num pulo. Quando chegámos,
esfomeados, sentados à mesa estavam nossos pai e madrasta e o Bentinho que
afinal, eles sim, tinham sido convidados para a chegada de 1961. O inesperado
da minha entrada com irmã a tiracolo provocou uma surpresa que devo confessar
me agradou.
Chegado cada novo ano com a
naturalidade do inevitável e a humildade de cada vinte e quatro horas perante o
Sol, o conceito vigente de diversão impele a ‘manada’ que não resiste ao
impulso festeiro cada vez mais exigente e traveste a data com balões e
serpentinas, pulos e gritinhos, muito barulho, raramente musical, e alguma
pompa… tudo efémero, tudo postiço… para logo cair em mais um ano de ressaca.
A nossa pequena festa não foi assim.
Algumas recordações, umas fatias de bolo-rei e uns cálices de licor… mas ao
cabo, a mesma sensação de vazio.
E agora, que fazer depois de voltar
a estar só?
NRP “Diogo Gomes”
…senão virar a página!?
Foi o que fiz na Repartição de
Oficiais ao perguntar se havia algum navio a sair para Além Mar, onde pudesse
navegar e sentir justificada a escolha da profissão. Que sim! A ‘Diogo Gomes’
aprontava-se para Angola e um navegador com prática fazia jeito. Arrematado!
Regressado a Lisboa havia pouco mais de uma semana, admiraram-se da presteza da
resposta mas aceitaram-na como boa.
Inusitado, foi o timbre de 1961.
Na madrugada de 22 de Janeiro,
Henrique Galvão deu início à Operação Dulcineia e no Mar das Caraíbas tomou de
assalto o paquete ‘Santa Maria’ da Companhia Colonial de Navegação.
Em 4 de Fevereiro, dois dias apenas
após a rendição do ‘Santa Maria’ no Recife, dá-se em Luanda o ataque às
cadeias, seguido de pesado contra-ataque.
Entretanto, nos moldes habituais
preparava-se o navio para longa comissão.
O meio ano que durara a comissão em
Angola a bordo do ‘Sal’, sem oportunidade para gastos, permitira-me amealhar à
justa os dezanove contos de réis que devia na ‘Alfaiataria Paris’, das fardas
feitas desde a promoção a guarda-marinha. Pudera! Até capa mandei fazer. Creio
que a usei três vezes.
Fui freqüentador assíduo da Sá da
Costa e foi ali que soube daquela peça do uniforme. Uma fotografia do Proença,
galão de guarda-marinha na larga gola da capa, identificava o autor do livro
‘Porque o teu querido te deixa’, exposto na montra. Deve ter tido influência na
decisão de esportular-me de tanta massa.
Com ou sem capa, senti-me aliviado
por ter saldado a dívida ao alfaiate.
Decorreram dois meses. Tempo
suficiente para mais um namôro ou algo parecido com isso. Esqueci-me de como
conheci a moça. Mas, não lhe recordar cara nem figura?!… Ainda bem que ela não
sabe. É feio dizê-lo, mas julgo que preencheu apenas um lugar vazio. Danada
coïncidência... era sobrinha de um cónego que se deixara morrer três anos
atrás, enquanto eu viajava de automotora para Faro, com o propósito de o ir
sovar. Recusara fazer um funeral religioso a minha mãe como meu pai lhe pedira.
Em termos canónicos era capaz de ter razão. Minha mãe divorciara-se de um
primeiro marido e meus pais eram casados apenas civilmente. Não obstante, minha
mãe mantinha convicções católicas e meu pai, perante a morte anunciada da
mulher, que ocorreria um mês depois, pretendeu da igreja o seu ritual de adeus.
Triste pela tristeza do meu pai,
rebusquei nos meus mais primários instintos e decidi ir bater no padre. No
último ano da Escola Naval, havia de arranjá-la bonita… Mas… tanto quanto me
julgo conhecer, não creio que o propósito ganhasse expressão quando chegasse à
fala com o senhor. Verduras… ele morreu-se… e pronto.
A ‘outra’ fez-me cerco.
Não sei porque não fiquei
surpreendido quando lhe ouvi a voz ao telefone.
Afinal, depois de um passado de dois
anos, sabia ler em mim “que a ela só, por prémio pretendia”.
Que soubera que eu ia partir no dia
seguinte, que gostaria muito de me ver e de se despedir. Claro que fiquei
contente. Mas fingi-me enfadado. Fiz-me caro. Tanto teatro… Que ia despedir-me
de outra – era verdade – mas se houvesse tempo iria lá a casa. Claro que houve
tempo, claro que fui lá casa. Estávamos sós. Muitos beijos, muitos abraços,
muito desejo mal expresso…
Éramos uns aprendizes…
Mais velho, com quase cinco anos de
avanço, esperar-se-ia de mim um aprendizado melhor, mais iniciativa, a
afirmação viva dos sentimentos e impulsos que me moviam… Depois do avanço mal
sucedido de nove meses antes, não ousei.
Não só não alcancei o patamar
seguinte, como mais uma vez borrei a pintura.
Depois de uma despedida tão fogosa,
quando, sol alto, saiu para a faculdade, lá estava eu postado frente à porta,
para renovar os adeuses, agora com beijos públicos, por força muito mais
contidos. Ela resumiu bem, numa frase: - Estragaste tudo!
Era 13 de Março de 1961, aquando
destes sucessos.
Mais umas horas e largámos do
Alfeite. Dois dias de mar depois, a Press Lusitânia dava-nos conta, de forma
ainda algo confusa, do massacre dos Dembos. Tinha recomeçado a Guerra Colonial,
em banho-maria havia umas dezenas de anos . Os assaltos ao “Santa Maria” e às
cadeias de Luanda tinham germinado.
O mundo para onde nos dirigíamos
passara a ser outro. Agora era a guerra. Os objectivos tinham mudado e cada um
de nós na sua área de acção teve que realinhar idèias, reinventariar
necessidades, tentar dar expressão ao saber teórico adquirido. Um saber tanto
melhor aceite quanto menos tivesse que se mostrar.
Cabia à nossa geração reatar, mais a
Norte, as Campanhas do Cuamato.
Depois de S. Vicente e de Bissau,
estivemos quase a ir ao Ghana.
Já no Golfo da Guiné, com São Tomé
na proa, navegando ao Sul do Ghana numa latitude aproximada de 2 graus Norte
quando o Sol alcançava o Ponto Vernal, as temperaturas atingiram valores tão
elevados como ainda não conhecera. Na casa das caldeiras estavam 70 graus e o
pessoal de quarto fazia bicha para assomar à escotilha, respirar ar menos
quente, recolher água e descer. Um cabo fogueiro já entradote não agüentou e
estava à beira de um colapso cardíaco. O Almeida e Castro, médico de bordo,
observou-o e aconselhou o comando a arribar a um porto onde pudesse ser-lhe
prestada assistência apropriada.
À beira da meridiana recebi ordem
para pôr na carta uma posição fiável. Lá consegui um ponto por circunzenitais –
uma raridade – e fizemos rumo ao porto mais próximo: Accra.
A impopularidade de Portugal no
mundo e em particular em África crescia. No Ghana, independente desde 1957 sob
a liderança de Kwame Nkrumah, éramos inimigos. Que problemas causaria uma
arribada a Accra ainda que por motivos humanitários, era uma dúvida que não aügurava
nada de bom.
Mas os deuses estavam connosco e
após umas horas de navegação para Norte, entrada a noite com algum
refrescamento da atmosfera, o médico, que mantinha o homem sob vigilância
anunciou que ele recuperava.
Estibordo leme!
Proa a São Tomé.
Chegámos a Luanda com a chegada de
Abril.
Era com ostentação que muita gente
nos cafés pousava a pistola sobre a mesa.
Na baixa da cidade, ao lado da
Livraria Lello pontapeava-se e pisava-se um preto até à morte porque alguém
gritara histèricamente tê-lo visto entre os assaltantes da sua fazenda. Sentado
num café próximo, só mais tarde soube o significado da agitação e dos gritos
que tinha presenciado.
Vivia-se um clima de medo e
exibia-se brutalidade.
Em Cabinda
Largámos para Norte e no dia doze o
navio desembarcou um pelotão em Cabinda.
Apertados em “farda de alumínio”,
polainitos, bolsas suspensas dos arreios que aos ombros vestiam sob as
passadeiras, capacete de aço e espingarda Mauser, ajoujados de
equipamento e receios, embarcámos no ‘gasolina’, perante os olhares, a um tempo
condoídos e aliviados do resto da guarnição, postada toda a bombordo para
despedir-se, adornando o navio, que pairava junto à costa em zona de menor
calema.
Dera-se um ataque algures no
Enclave. A 1ª Companhia de Caçadores Especiais, do comando do capitão Soares
Carneiro, operava no mato. Cabia-nos tomar conta da cidade.
Aquartelamento, central eléctrica e
campo de aviação eram os pontos sensíveis.
Uma secção em cada um deles e outra
de folga. Missão fácil. Durante o dia, a secção de folga que perambulava pela
cidade fazia escala onde houvesse cerveja que refrescasse. Os comerciantes,
agradecidos aos militares que lhes mitigavam o medo, dando-se magnânimos ares,
não cobravam a despesa. Cansaram-se depressa. Ao quarto dia, conquistámos o
estatuto de desconhecidos. Coïncidiu isto com o regresso à base dos
operacionais, que, pelo menos momentâneamente, tinham reposto a paz.
Era uma exemplar Companhia.
Dividia tarefas com o Gomes Lopes.
Dormia pouco porque acorria durante a noite aos postos guarnecidos, mas isso
não impedia a minha presença na mesa, ao ‘mata-bicho’. Depois de um belo duche
matinal, fresquíssimo no uniforme branco, manga curta, calção e meia alta
coloniais dava curso ao meu apetite sempre voraz. Não era só a ausência de
balanço que me estranhava. Mais do que isso, era a presença de senhoras à mesa.
É que os camaradas do Exército, tinham ali, alguns deles, as suas mulheres.
Saber que os moços, cansados,
barbados, sujos e mal alimentados, se empenhavam no combate, enquanto um
adventício, todo alinhado, lavado e perfumado, se sentava entre as suas damas,
fez-me sentir numa injusta situação de privilégio. Não é que me pavoneasse, mas
foi a impressão que colhi ao tentar e conseguir, pôr-me a ver a cena de fora,
como espectador neutro. Senti-me mal em relação a eles. Tanto, que ao terceiro
dia fui falar com o Comandante Militar de Cabinda, que era também Governador; e
pedir-lhe que me fizesse ir para o mato. O senhor, um major quarentão, ouviu-me
atentamente, lembrou-me que estava a agir à revelia do Comando do navio, mas
perante a insistência, resolveu conceder-me uma ‘excursão’.
Saí de facto para o mato, integrado
no pelotão do Moreira, um alferes ex-seminarista em cujo quarto dormi enquanto
estive no aquartelamento e de quem fiquei amigo. Fomos num jipão (ainda tinham
os bancos às ilhargas) até um ‘povo’ não muito longe, de onde se pensava que a
população tivesse fugido. Era verdade. Constatámos isso mesmo. E foi tudo.
Para além do Moreira, havia ali
gente interessante: Nelson, Azevedo e um louco singular, o Múrias. Gostei da
experiência. Durou pouco.
Azerada a situação militar,
reembarcámos.
Não tardou muito, fui de novo ‘expedido’ para Cabinda. Desta vez
entregue a mim mesmo, com um sargento e umas quantas praças, para patrulhar o
Rio Chiloango. Estacionámos em Sassa-Zau, numa propriedade e em casas cedidas
pela CUF, não sei por que interposta firma. O barco-patrulha era uma velha,
amolgada, pequena e ronceira embarcação de ferro, pleonàsticamente chamada “Loé
Pequeno”.
Todos os dias, cedinho, navegávamos
para montante, em direcção ao Pangamongo, quase ali onde se cruzam as fronteiras
do Congo ex-francês, do Congo ex-belga e de Cabinda. O ruidoso matraqueio do
motor devia ouvir-se lonjuras em redor. Os olhos pouco entravam no verde denso
e escuro das margens. De vez em quando o grito de um macaco. Aqui e além, um
pequeno jacaré ao sol, lagarteando no ramo seco de uma árvore pendente
sobre a água. Uma paisagem em que Tarzan se sentiria em casa.
Um dia, quase no Pangamongo, após
uma curva pronunciada do rio, deparámos com um cabo de aço de grande bitola
esticado entre margens, que nos impedia a passagem. A bombordo, na margem
norte, um imenso outeiro desmatado, pejado de negros, sentados. Foi tão súbito
e incongruente na paisagem, o aparecimento daquela visão simultânea que a
surpresa me provocou um frémito de medo. Não podia deixar que os meus homens
percebessem que sentira o mesmo que eles. Ordem para encostar a um improvisado
cais no sopé do outeiro. Armas destravadas, prontas para fogo.
Mesmo com as pernas pouco firmes,
saltei da embarcação, espingarda na mão, pistola à cinta.
Mal pus pé em terra, levantaram-se
todos. Empunhando catanas. Centenas.
...A saüdarem-me!
Eram trabalhadores de uma estância
de madeiras. O cabo de aço, servia para travar os toros que a montante vinham
na corrente.
Confraternizámos um pouco. Depois,
mais velozes, descemos o Chiloango.
Era nossa incumbência
aproximarmo-nos de gente que habitasse as margens, falar-lhe, ouvir queixas,
tentar resolver problemas, em suma, executar o que ao tempo se chamou Acção
Psico-social.
Mas encontrar centenas de negros de
catana erguida na mão, estava fora das nossas cogitações. Que raio de saüdação!
Ninguém nos dissera de uma indústria
madeireira em actividade.
Éramos nós, no terreno, que fazíamos
a informação. Tudo estava muito no princípio.
Já antes ali vira um enorme jacaré,
imóvel no seu solário privado - um afloramento de areia no meio do rio. À nossa
barulhenta aproximação, quando entrámos no seu perímetro de segurança,
mergulhou. Imaginei o tamanho daquela pele depois de curtida. Que troféu!
Na subida seguinte, depois de
avistar ao longe o banco de areia, inclinei os óculos de míope na esperança de
enxergar melhor e pareceu-me ver a cabeça do bicho, na mesma anterior posição:
paralelo à corrente, cauda a montante e cabeça no topo da areia, olhando
jusante, com o babadouro branco à vista. Pedi uma velocidade mais moderada e
menos barulhenta. Quando houve a certeza de que não me enganara, reduziu-se
ainda mais o andamento, o que era fácil contra a corrente. Aprontei a arma, que
mantinha bem regulada, apoiei-a no rebordo da chapa de protecção avante e meti
duzentos metros na alça, a distância aproximada a que estávamos. Apontei com
cuidado, tirei a folga ao gatilho e continuei a premir devagar. Atirei.
Estampido forte. Não aconteceu nada. O jacaré não se mexeu. Muitas bocas: o senhor tenente falhou! Atire outra vez! Agora vai fugir!
Ora bolas! Continuei sereno,
pronto a atirar ao menor movimento. Um segundo tiro, teria sido em vão.
Talvez não fosse o mesmo jacaré que
antes vira, mas era um bicho soberbo. Ficou tal qual estava. O projéctil entrou
na zona a que pode chamar-se pescoço e varou-lhe o coração. Retirada a pele
nesse dia, salgada e posta a secar, alguém ma roubou mais tarde em Luanda. Lá
se foi o troféu!
Já nos tempos da milícia tinha
conseguido um segundo ou terceiro lugar no tiro com espingarda. Fazíamos fogo
com a Mannlicher. Tinha jeito. Tanto quanto a falta dele com pistola. Durante
os dias de Cabinda gastei montes de munições e ganhei uma qualidade apreciável
a atirar quer com a Mauser – bela arma – quer com a FBP. Quis o acaso – ainda
bem - que não tivesse tido necessidade de usar as armas com o fim último para
que servem nas mãos de um militar.
A força de desembarque passou a ser
como que mais um serviço a somar às normais actividades de bordo. Integrada
pelos oficiais, sargentos e praças em cada momento e circunstância menos
dificilmente dispensáveis, actuou em algumas localidades costeiras para onde
foi chamada. Era formada por uma trintena de homens cuja ausência a bordo
obrigava a um maior esforço dos que ficavam, não deixando por isso o navio de
fazer a patrulha próxima da costa e exercer vigilância sobre pontos de maior
vulnerabilidade do interior ou mais fácil acesso por mar.
Mais tarde, com o Loureiro de Sousa,
a força voltou a desembarcar e actuou na zona do Ambriz.
Administração Naval
Mais uma vez por ser o mais moderno
oficial da classe de Marinha tinha-me cabido o primeiro ´pincel’ - o Serviço de
Administração Naval – pois não tínhamos embarcado oficial da classe. A mudança
de perspectiva que o ataque de 15 de Março trouxera ao nosso trabalho, provocou
em alguns serviços a necessidade de bens e equipamentos que não tinham sido
considerados à partida. A situação era nova e difícil avaliar a bondade dos
pedidos. Levadas as requisições ao membro seguinte do Conselho Administrativo,
o Oficial Imediato, e feita uma suave triagem, tudo seguia o seu curso. A
assinatura final do Presidente, o Comandante, raramente terá sido negada, pois
tudo o que se fazia a montante estava bem. Sempre que opus algum argumento para
que fôssemos mais contidos, visto que estávamos a exceder os nossos números,
fui confrontado com a teoria do Imediato: ‘problemas pequenos somos nós a
resolver… os grandes resolve-os Lisboa’. E tinha razão. Não tardou muito
foi destacado para a ‘Diogo Gomes’ um oficial de Administração Naval. Estávamos
em Cabinda e fui num jipe ao campo de aviação buscar o Carocho que ainda levou
algum tempo a compor o que tínhamos descomposto.
Enquanto fui ‘escriba’ vivi uma
experiência que ajudou a conhecer-me melhor.
Logo após a chegada a Luanda, o
Estado Maior reüniu algumas vezes na câmara de oficiais. Entre outras coisas o
Imediato disse-nos da sua pretensão de que o pessoal de licença obrigado a sair
uniformizado se apresentasse em terra num branco impecável. Consciente de
que o navio não oferecia condições que facilitassem esse desígnio, havia que
criar uma lavandaria. O espaço seria o parque do ‘Squid’ e os lavadeiros os
torpedeiros-detectores, já que não havendo na área notícia do ‘submarino soviético’,
aquela arma se tornava algo supérflua e os homens se limitariam aos serviços de
escala e às rotinas de manutenção do ‘asdic’ (Allied Submarine Detection
Investigation Committee).
Máquinas de lavar, pelo menos duas a
serem adquiridas por mim.
Lá fui com o fiel ao Quintas &
Irmão onde encontrei duas Hoover iguais que considerei boas e aprecei, pedindo
um desconto que o homem solícito concedeu sem regatear.
De novo com o fiel, ao voltar mais
tarde para pagar e levar as máquinas, enquanto manuscrevia a factura, o
vendedor perguntou-me se devia ali registar os 10%. Claro que sim, claro que
regista! Foi quando de soslaio percebi a troca de olhares entre os dois que caí
em mim e medi o tamanho da minha ingenüidade e do incómodo da minha presença.
Nunca mais me mostrei em qualquer compra.
Alojamentos
Sendo embora o mais moderno de
Marinha, nunca fui sócio da ‘cova da onça’, o camarote mais avante, incómodo
porque mais sujeito à arfagem e porque dois pares de beliches num espaço tão
exíguo tornavam a coabitação difícil. A necessidade de ter o navegador perto
das cartas e do sextante levou-me para um dos dois camarotes duplos, a bombordo
por debaixo da ponte. O de ré. Dividi-o com o tenente Braga, um 1º tenente da
Marinha do Brasil que embarcara connosco como parte brasileira da execução de
um programa de cooperação entre as duas Armadas. Era um mero observador, embora
lhe pudessem ser distribuídas tarefas que não tivessem a ver com o conflito
angolano. Integrou-se bem e talvez pudesse vir a ser um de nós, mas o governo
de João Goulart que sucedera a Jânio Quadros após a renúncia deste, pôs fim ou
aligeirou a cooperação e o Braga regressou a penates. Em Setembro de 1968, numa
ida ao Brasil a bordo da ‘Gago Coutinho’, antes de umas manobras com navios da
Armada Brasileira visitei-o no Rio de Janeiro. Falou com alguma nostalgia do
tempo passado connosco. Foi agradável revê-lo.
No camarote passei a ter por
companheiro o Gomes Lopes que antes dormia do outro lado da antepara de vante,
devendo ter havido ou um ‘up grade’ para alguém da ‘cova da onça’ ou uma despromoção
nos camarotes individuais.
Novo Comandante
Não sei em que mês, talvez Setembro,
em Luanda, chegou novo comandante.
Na última meia dúzia de anos em
funções de governação em Macau e em Moçambique regressara pouco antes à
Marinha. Ciente do desfasamento provocado pela ausência dos navios e de que lhe
caberia ir comandar uma fragata, entregou-se ao estudo e terá mesmo solicitado
um embarque de familiarização em ‘barca’ semelhante.
Chegou num dia de canícula. Na
camarinha, pequena para todos nós, assisti a um interessantíssimo exercício de
exibição de perfis entre os dois comandantes, oficiais do mesmo curso,
sublinhado apenas pelo ruído sincopado da grande ventoïnha pendurada sobre a
mesa quadrada:
‘Ó Pedro, tira o casaco! Não
Paulino, deixa estar. Despe o casaco, homem… com o calor que está!? Agüento
bem, Paulino. Insisto, Pedro, ficas melhor se o tirares. Ó Paulino, se
não vires inconveniente, prefiro
ficar assim!’ .
‘Pedro’, sempre com o mesmo tom e
intensidade lineares de voz, quase melífluo e ‘Paulino’ mais solto, mais
‘gajo’, mantiveram um diálogo que terá sido maior do que alinhavei, mas de que
estas falas chegam para caricaturar os feitios dos homens em presença.
‘Pedro’ manteve-se encasacado.
Aquela ventoïnha poderia contar mais
histórias.
Passou a ser uso o Comandante
convidar para a camarinha, um oficial para almoçar na sua companhia. Padecendo
de alguma timidez, defendia-se assumindo uma postura rígida e um discurso
formal. De olhos cinzentos que não pestanejavam, atravessava-nos com o olhar. O
estado do serviço, a sua eficiência e como melhorá-la, eram o mote das suas
conversas, aproveitando todas as ocasiões para fazer doutrina. Só em casos de
excepção viria à baila um assunto pessoal ou um sorriso aos lábios estreitos.
Embora o Verão de Angola se
mostrasse inclemente, a ventoïnha estava parada ou na velocidade mais lenta que
mal agitava o ar quente. Se algum suor lhe assomava à face em camarinhas,
puxava discretamente de um fino lenço branco e com toques pequenos e elegantes,
enxugava-o.
Ao tempo, o Semedo já começara a
inchar e tinha um suor fácil.
- Senhor Comandante, não gostaria de
ligar a ventoinha?
- Não me parece necessário Senhor
Tenente.
Suando em bica, encharcado, incapaz
de agüentar mais o suplício, ia a refeição a meio, teve de arquitectar a
‘lembrança’ de uma mensagem urgente a enviar. Pediu licença e desceu ao
camarote, à ‘cova da onça’. Tomou um banho rápido, vestiu um uniforme seco e
regressou para o resto do almoço.
Postos de Emergência
A eficiência do pessoal e portanto
do navio, foi desde o primeiro momento o seu norte. E a maneira de o conseguir,
às vezes singular, foi ela própria sempre eficiente. Julgo que logo ao mexer no
navio pela primeira vez – já a devia ter engatilhada - ainda durante a faina,
disse-me para chamar o Imediato. Mandei a Ronda ao castelo. A conversa foi na
minha presença:
- Imediato, vamos simular um
incêndio. No balde com
areia que está na tolda
mande pôr um pedaço de
desperdício a arder e ordene postos
de emergência.
A expressão que vi no Imediato não
deixava enganar: tínhamos sido apanhados descalços.
A cada um de nós era entregue um
cartão – o Cartão de Detalhe - em que vinha assinalada a função e o lugar em
que a desempenhávamos na situação em que o navio estivesse envolvido.
Sei que conservo entre as minhas
‘coisinhas’ um ou dois dos cartões de detalhe que tive. Como não sei onde,
socorri-me do Google e encontrei postado num blogue da ‘Álvares Cabral’, imagem
do Cartão de Detalhe do então 688/67, primeiro-grumete Artilheiro, Moleiro. Grato por me teres valido.
Não o sabendo de còr, devíamos
trazer o cartão connosco, o que raramente acontecia.
O anúncio de ‘Postos de Emergência’
foi feito através do ETO (Equipamento Transmissor de Ordens) e surpreendeu toda
a gente.
Postos de emergência? Eh pá! Que
terá acontecido? Onde é o meu posto? Onde pus eu o Cartão de Detalhe? Tenho
qu’ir à coberta…
Primeiro, ouviram-se frases curtas
de preocupação como estas. Depois um corrupio mais ou menos generalizado em
todos os sentidos, em busca do posto a ocupar. A marinhagem, de capacete,
enjorcada nos velhos e incómodos coletes salva-vidas, ia olhando as mangueiras,
agulhetas e extensores-pulverizadores espalhados pelos convèses com ar
cerimonioso e aguardava. Pequeno jacto dum extintor de antepara pusera fim ao
‘incêndio’. Da ponte, o Comandante observava com ar seráfico. Quando entendeu
não terem ficado dúvidas em ninguém àcerca do fiasco do exercício virou-se para
o Imediato que mantivera sempre a seu lado e disse-lhe de mansinho:
- Parece-me que temos de treinar um
pouco mais.
Todos percebemos e entranhámos a
necessidade de ser melhores.
Emergência
Logo de seguida, uma ocorrência
infeliz, tornou mais evidente ainda, a obrigação individual e colectiva de tal
melhoria.
Estávamos atracados por estibordo no
pontão da Ilha de Luanda. Íamos largar. Durante a manobra de desatracação, o
Comandante deu ordem para as máquinas rodarem a ré sem que uma das espias
tivesse sido completamente alada e recolhida na tolda. Tratava-se de um cabo de
pita, muito denso, pesado e de grande bitola – só com as duas mãos se lhe
abraçava todo o diâmetro – de tal modo que era por norma alado à lupa (aos
puxões). A água sugada e empurrada para vante pelo hélice de bombordo trouxe
consigo o cabo, atraindo-o às pás que fizeram o resto. Apanhada pelo seio, a
espia foi enrolada à volta do cubo numa mòlhada que travou o ´parafuso’.
Havia consternação na cara de todos.
O Comandante começara a ganhar a nossa simpatia. A situação era delicada.
Tornar clara a clara do hélice era
tarefa para profissionais. Não havia mergulhadores. Tampouco escafandro.
Homens-rãs? – Nem sei se já se usava o termo.
Mas havia que agir.
- Quem é voluntário para mergulhar e
desempachar o hélice?
Três voluntários: um marinheiro de
Manobra, o Avilez e eu.
É certo que nunca me coïbi de ser
voluntário sempre que entendi dever sê-lo. Desta vez nem me dei tempo para
pensar. A pergunta ecoou na cabeça como um detonador. Se calhar, o mesmo se
passou com os outros. Não falámos disso.
Nunca tinha mergulhado para além das
amonas de empurrão nas brincadeiras de praia, das exibições juvenis ao entrar
na água com moças por perto, ou no máximo, nadar debaixo de água e ver até onde
ia sem respirar.
Nos nossos calções de banho e com
uma faca presa ao pulso – se calhar navalhas da ordem com fiel – estávamos
equipados. Embarcados numa chata logo ali arranjada para apoio, combinámos como
actuar. Não sei quem foi avaliar a situação. À vez, cada um mergulhava aqueles
quase quatro metros e meio e fazia do cabo enrolado no cubo do hélice o seu
maior inimigo, esfaqueando-o com quanta força tinha, a água deixava e durante o
tempo que o fôlego permitia.
Tive medo. Por um lado, medo de não
saber avaliar o momento de vir à superfície respirar e ficar tempo demais. Por
outro, medo de que os tubarões dessem por nós. Pelo rabo do olho não deixava de
me preocupar com os ‘simpáticos’ bichos. Havia uma explicação:
Era um mocinho de onze anos quando
na baía do Lobito um tubarão assinalado pela clássica barbatana, decidiu nadar
p’ra mim. O grito de àlerta de um marinheiro da Capitania e o facto de estar a
umas três braçadas de ter pé e poder fugir, puseram-me a salvo. Mas não mais
esqueci a ameaça e agora o incidente vinha-me à lembrança. De cada vez que me
atirava, ainda o mergulho ia meio e só me ocorria um pensamento: ‘onde raio me
meti eu?’
Porém, tenho que dizer, com alguma
imodéstia: fomos uns valentes! Mal se adivinhava a cabeça do que vinha a subir
e já o seguinte mergulhava para o alvo. Não sei quanto tempo durou a função. De
certeza, menos do que pensei que demorasse. Não deve ter excedido meia hora.
Seguimos viagem.
Objectivo, Índia!
Era do maior interesse manter
segredo sobre os movimentos do navio.
As tarefas a executar, fosse qual
fosse o ponto da costa onde actuássemos não diferiam na essência. Mas o
conhecimento por parte do inimigo das zonas da costa tornadas alvos potenciais
dessa acção, era para nós uma vantagem perdida.
Reduzia-se a uma meia dúzia o número
dos que a bordo tinham acesso às ordens recebidas do Comando Naval. E deles não
havia fuga possível.
Imagine-se a surpresa com que
ouvíamos dos civis, comentários definitivos sobre a largada deste ou daquele
navio.
Em vésperas de uma saída de Luanda
era certo e sabido muita gente de fora saber se o nosso destino ficava a Norte
ou a Sul. Pode parecer pouco, mas metade da beira-mar de Angola ficava de
sobreaviso; e a outra… descansava.
Não obstante o segredo, a cada
viagem, tudo se repetia.
Afinal, era tão simples! A verdade
dependia apenas das espécie e quantidade de compras que os ranchos faziam no
mercado: mais frescos, Norte; menos frescos, Sul. Um segredo de Polichinelo.
Desta vez foi diferente.
Era Novembro e estávamos em Cabinda.
Reunião de todos os oficiais na
câmara. Comandante presente. Portas fechadas.
Recebêramos ordem para seguir para
Goa, p’ra render o “Afonso de Albuquerque”.
Todos os oficiais tiveram acesso em
primeira mão às ordens recebidas. Segredo absoluto. Desde logo em relação à
guarnição. Seguimos de imediato para Luanda.
Satyagraha (insistência na verdade)
foi o nome de baptismo que Gandhi deu ao movimento de resistência civil não
violenta que adoptou para se opor ao domínio britânico na Índia, de que fez
aliás um ensaio na África do Sul. Esta estratégia, que veio a inspirar Luther
King e Mandela, teve sempre resultados finais vitoriosos.
Em 1953, os satyagraha
intensificaram a sua acção contra o poder estabelecido nas possessões sob
administração portuguesa na península indostânica: Goa, Damão, Diu, Dadra,
Nagar-Aveli e Angediva.
Em 21 de Julho de 1954, uma Frente
Unida de Goeses força os portugueses a retirarem-se do pequeníssimo enclave de
Dadra, junto à fronteira norte do enclave de Nagar-Aveli.
Em 28 de Julho de 1954, a Organização
do Movimento Nacional de Libertação atacou Nagar-Aveli, que conseguiu tomar em
2 de Agosto.
Tropas nossas terão retaliado
fazendo baixas entre os satyagraha.
Estes eventos deram ânimo aos que
pretendiam que abandonássemos a Índia.
Formaram-se seis partidos políticos
regionais que foram pressionando o governo indiano no sentido de que assumisse
uma posição de força e acelerasse o fim do poder português.
Já em 1961, aquele governo declarara
que Goa seria libertada a bem ou a mal.
A 1 de Dezembro, Nehru afirmou que a
Índia não se calaria em relação à situação de Goa e que já havia tropas em
posições estratégicas junto às fronteiras.
A despeito, Lisboa continuava a
acreditar que Nehru se manteria fiel à não violência.
Muito pela rama, era este o cenário
para que nos dirigíamos.
Chegados a Luanda - a fragata
atracada na testa do cais - presenciámos ainda a chegada do Destacamento nº 1
de Fuzileiros Especiais, comandado pelo Metzner e o seu desfile pela cidade sob
os esperançosos olhares dos circunstantes.
Em pouco tempo ultimámos os
preparativos – não eram poucos – e partimos.
Já necessitado de limpar o casco, o
navio passaria uma semana na Cidade do Cabo para docar. Ali encontrámos o
‘Carvalho Araújo’, também ele em reparações.
Como Rosa Coutinho continuava
seqüestrado no Congo ex-belga, era Luciano Bastos, o anterior Comandante,
repescado em Lisboa, que chefiava de novo a Missão Hidrográfica de Angola.
Com a ‘Diogo Gomes’ aprontada, os
oficiais foram convidados pelos seus pares do ‘Carvalho Araújo’ para um almoço
de despedida. Os brindes foram pródigos em votos de uma cruzada bem sucedida.
Quando deixámos o navio todos vieram à prancha – e, não mais esquecerei a
imagem – havia olhos húmidos entre os camaradas que ficavam. Aí, só aí, tive
noção do que nos esperava.
Como de costume, tinha andado a
tocar violino.
Perambulando pelo Cabo encontrei
finalmente os pequenos blocos de notas que o Comandante tanto queria que
trouxesse sempre no bolso da camisa para registo de observações e de tarefas a
executar. Ainda guardo um ou dois como recordação. Não sendo da minha natureza
cultivar rotinas de procedimento, nem sempre fazia os registos, nem sempre
trazia o bloco. Pedagogo, o Comandante, sem azedume, lá conseguia processo de
me encaminhar. Ensinou-me muito. Claro que fui por acúmulo de tempo, crescendo,
ganhando experiência, sendo melhor… mas estou crente que também houve nisso
muita mão dele. Guardo-o na memória.
Numa vasta extensão da costa Leste
da África do Sul – até às imediações de Durban – navegámos a muito pequena
distância da costa. Houve um dia em que chegámos a fazer um percurso extenso a
apenas 800 jardas. Razão disto: aumentar a velocidade.
A ‘Diogo Gomes’, era uma fragata da
classe ‘River’ construída na Escócia em 1943, para servir na 2ª Guerra com o
jaque britânico, o que fez com o nome de ‘Awe’ e o número de amura K 526.
Comprada por nós em 1948, serviu até 1969, tendo acabado renomeada ‘D.
Fernando’. Desenhada para uma velocidade de 16,5 nós, estava muito longe de
consegui-lo no fim de 1961, mesmo depois da limpeza do casco qua fizera dias
antes.
A corrente das Agulhas é uma
corrente quente que vem Índico abaixo, bifurca-se a Norte de Madagáscar volta a
unir-se a Sul da imensa ilha e desce pela costa Sueste de África em direcção ao
extremo Sul do continente, o cabo das Agulhas, que lhe deu nome. Curiosa, é a
razão do nome do próprio cabo: quando Bartolomeu Dias ali passou, na ida como
na volta verificou ser nula a declinação magnética, razão porque em todas as
caravelas as agulhas marcavam o Norte sem necessidade de
mais contas.
Corrente de velocidade apreciável,
atrasaria o navio se navegássemos sobre o seu maior fluxo. Navegando tão rente
à costa quanto uma navegação segura permitisse, não só lhe fugíamos como
ganhávamos um pequeno bónus que a corrente reversa, presente perto de terra,
nos concedia. Foi assim que conseguimos médias diárias de 15 nós.
A velocidade era um dos dados
contidos no PIM (Position and Intended Movements), enviado religiosamente para
o Estado Maior todos os dias à hora da meridiana. A diferença daquele parâmetro
em relação aos números habituais, fez luz nalguma das cabeças ainda pensantes
em Lisboa; e em consequência, recebeu-se uma mensagem ordenando que não se
puxasse tanto pelo navio e não se excedessem 12 nós.
Livro de Ordens do Comandante
Caído em desuso na Armada, foi na
‘Diogo Gomes’ recuperado pelo novo Comandante.
Descoberto num arquivo, era pouco
espesso, tinha o título em letras já gastas na capa preta de cartão rijo e o
miolo eram umas quantas folhas de papel almaço pautado. Um livro modesto.
O Comandante usava uma bonita caneta
estilográfica de tinta permanente que enchia de uma côr assaz conspícua: não
era preta, nem verde nem roxa, mas uma mistura delas.
A letra, antiguinha, era inclinada e
firme, angulosa e bem desenhada. Se na caligrafia não recordava o cursivo que
Júlio Dinis atribuiu a Manuel Quintino em ‘Uma família inglesa’, recordava-mo
no meticuloso do gesto, no culto do pormenor, na arrumação de tudo à sua volta,
no pensamento organizado…
As ordens passadas ao livro não
foram muitas; quase todas relativas a tarefas a executar durante os períodos
diurnos de navegação pelo pessoal que estivesse de quarto (turno), eram
redigidas com poucas e concisas palavras.
Exercitar a guarnição, torná-la mais
eficiente, trazer ao de cimo a vaidade do marujo, o brio de fazer bem, eram a
meta a atingir.
Eis algumas:
Simular a queda de alguém ao mar.
Dar o alerta, lançar uma bóia à água, executar a manobra de Boutakov e recolher
a bóia.
Arriar a baleeira (complementar da
anterior). Não ficava nos turcos. O pessoal saltava, arriava-se mesmo a
baleeira, davam-se umas remadas e era içada.
Havia outros itens em que não me vou
deter.
Reservei para o fim a simulação de
avaria do leme e utilização dos dois processos alternativos de governar.
Este exercício, executado no quarto
do meio-dia às quatro, tinha em vista preparar-nos para a eventualidade sermos
atingidos em combate e o sistema de transmissão hidráulica do sinal da roda ao
leme à máquina do leme ser danificado (rotura da tubagem).
Numa primeira hipótese, muito
simples, descia-se à casa da máquina do leme, bem à popa, mesmo sobre o leme; e
com uma pequena alavanca de comando de uma válvula reguladora do sentido e
intensidade da pressão do óleo sobre a máquina, posicionava-se o leme onde
pretendido.
O segundo e definitivo
processo, muito mais primário, requeria a utilização de aparelhos de força.
Retiravam-se as cavilhas que ligavam
a meia-lua do leme aos gualdropes e substituíam-se estes por duas talhas já
sujeitas ao cavername no extremo oposto. Depois havia que alar o chicote de uma
das talhas e brandear na outra.
Deixem-me fazer um curto desvio…
Foi por esta altura que resolvi ter
vinte e cinco anos.
Desta vez, a moça surpreendeu-me.
Rejubilei com o inesperado telegrama-nav que o sinaleiro me veio entregar. Não
que se ouvisse nas palavras o canto dos passarinhos, viessem coloridas de azul
ou rescendessem a rosmaninho… mas tinham chegado. Alguém se lembrara do meu aniversário…
de mim.
Mal sabia ela como estávamos perto.
É que dias antes, as tais cabeças
pensantes de Lisboa mandaram que entrássemos em Lourenço Marques para embarcar
munições.
Foi agradecida a resposta ao
telegrama, mas não lhe disse que estávamos a quatro ou cinco dias de um
reencontro.
…e retomar agora o fio à meada.
O mar que até se mostrava bem
disposto numa área tão associada a tormentas, no dia 13 de Dezembro de 1961,
resolveu mudar de cariz. Mesmo com o Sol à mostra e mesmo sem grande vento, a vaga
deu em cavar; e só o facto de vir de alheta e o navio agüentar bem o mar que
daí vinha, deixou que quase passasse despercebida.
Mas não o suficiente para que não
vislumbrássemos o perigo de levar a cabo o exercício de leme avariado com vagas
de 5 metros.
É que ao descavilhar um gualdrope e
antes de o substituir pela talha, havia um instante em que esse lado da
meia-lua ficava completamente liberto; momento bastante para a eventualidade de
uma pancada de mar na porta do leme a trancar no bordo oposto.
Falámos entre nós e dissemos ao
Imediato da nossa preocupação. Como o exercício era uma ordem expressa do
Comandante, só ele a deveria anular.
O Imediato distava treze anos do
Comandante e seis do Chefe de Serviço mais velho. Era um homem muito próximo de
nós independentemente da idade. Ao tempo ainda solteiro, aliás solteiro
militante, era um companheirão e conseguia a simpatia de toda a câmara de
oficiais. Tinha a confiança do Comandante, fazia muito bem a ligação entre as
duas câmaras e desempenhava a abrangente e difícil função que lhe cabia com um
saber caldeado por muita experiência temperada de bonomia. Acresce que em terra
nos acompanhava amiúde em sortidas aos bares na moda. E quando o fazia era um
polo de atracção entre o miudame da casa, que acorria à mesa a prestar-lhe
vassalagem – beijinho ao João
Paulo – mesa, onde por norma
só se servia espumante.
Ouviu atentamente o relato da nossa
apreensão acerca do exercício de leme avariado, concordou connosco e subiu à
Camarinha do Comandante. Ficámos à espera do resultado da diligência, que o
quarto do meio-dia já levava algum tempo.
A cara fechada com que o Imediato
desceu era resposta bastante.
Mas relatou-nos o diálogo. O
Comandante entendia que devíamos estar preparados para enfrentar as piores
condições e rematou a conversa com uma pergunta:
- Senhor Imediato: que está escrito
no Livro de Ordens do Comandante?
Leme trancado
Subi à ponte e fui para a cabina de
navegação. O Sol continuava visível. Mais uns minutos e seria possível a
observação de uma altura post-meridiana que desse uma boa intersecção.
Foi quando um balanço súbito deitou
ao chão compassos, réguas, pesos e o que mais estava sobre a mesa das cartas.
Eu próprio quase caí, não fôra a exigüidade do espaço atrás de mim. Assomei à
porta e gritei p’ró oficial de quarto:
- Q’é que foi, Semedo?
- O leme ‘tá trancado!
- Vou já ver…
Ver o quê? Como se ir ver resolvesse
alguma coisa!...
Não passava do habitual impulso:
estar presente, mexer-me, ajudar.
Havia cabos de mau tempo passados,
onde isso era possível. Em cada troço pendiam do cabo de aço alças vestidas em
sapatilhos de bico. Com o navio em guinada permanente aumentava o balanço
bombordo-estibordo à medida que o casco mais paralelo ficava à vaga.
Contrariando o balanço,
equilibrando-me como podia, sem o tormento do enjôo de que nas sortes fiquei
isento, lá fui, cantando e
rindo, em direcção à casa do leme.
Mal tinha ainda descido a escada de
bombordo, do convés principal para a tolda, quando aconteceu.
A popa inclinada do navio chegara a
uma cava funda e daquele bordo erguia-se, silenciosa, uma montanha de água.
Muito alta, enorme. Foi a última imagem que a consciência registou. No instante
seguinte, submerso, era agora de verde claro a àgua que pouco antes fôra azul.
Senti-a de uma textura espessa,
integrando-me em si, como se eu e ela fôssemos a mesma matéria, joguetes da
mesma dinâmica hidráulica, como um jacto espremido, qual Venturi veloz, entre
as paredes do escoadouro de uma barragem.
Enquanto ali estive, um tempo muito
breve, perdi a disponibilidade mental. Não deu sequer para ter medo. Não tive
medo, porque – penso - não pude ter tido medo.
Tal como não tive disponibilidade
muscular para qualquer movimento voluntário.
Momentos… instantes, serão as
expressões que mais se adeqüam à duração do que se passou. Porque não fiquei
com noção do tempo decorrido. Se tivesse a obrigação de quantificar, arriscaria
não mais que dois ou três segundos entre a submersão e o encalhe na peça de
artilharia.
Sim. Pendurado pelo pé esquerdo na
grelha do alimentador de munições da peça anti-aérea Bofors, de 40 milímetros,
fixada num reduto, à popa, uns quinze metros a ré do meu ponto de mergulho.
Não sei como me libertei, não sei se
me doeu… mas deixei-me cair no convés. Do mesmo bombordo já ameaçava outra
imensa massa de água. Corri para vante e encolhi-me entre dois cofres de
munições prontas, estruturas fixadas mesmo ao lado do gabinete do oficial de
dia.
Agarrei-me aos fechos de um dos
cofres com quanta força tinha, enquanto sobre mim rebentavam mais umas quantas
toneladas de Oceano Índico.
Do reduto da peça de 4 polegadas por
cima da minha cabeça, ouvi vozes gritadas:
- Senhor tenente, dê cá a mão!
É o dás!
Toda a minha força estava
concentrada nas mãos, que se agarravam infrenes aos fechos do cofre. Talvez o
corpo pudesse ser dali arrancado… as mãos não.
Empoleirar-me, esticar-me,
entregar-me a quem quer que fosse, naquelas condições, estava fora de hipótese.
Deixei que desabassem sobre mim mais
uma boa meia dúzia daquelas catadupas e só quando o navio, continuamente a
rodar, ganhou um rumo de balanço aceitável, me decidi a subir ao convés acima,
onde me aguardavam as mãos que há pouco se me tinham oferecido.
Eram do sargento electricista Miguel
e do mesmo marinheiro de manobra que também mergulhara para desenrascar o cabo
no hélice. Tinham presenciado o que acontecera e queriam certificar-se de que
estava bem. Estava. Pequena ferida sangrando junto à articulação do pé e nada
mais.
Estranha aliança aquela entre a
artilharia e o mar que sob o olhar cúmplice dos deuses me salvara e permitia
que a vida recomeçasse com nova contagem.
O leme ter-se-á destrancado com a
redução de balanço e foi possível ligar de novo o gualdrope à meia-lua,
voltando a haver governo.
Deparei com o Imediato que já sabia
do incidente e vinha inteirar-se do ocorrido com a vítima. Depois de me
ouvir achou por bem levar-me ao Comandante para um relato na primeira pessoa.
Entrámos na Camarinha e o Imediato
fez um prólogo durante o qual o Comandante, com ar de quem serenamente o ouvia,
me ia medindo de alto a baixo e olhava com ar incrédulo a figura ali postada,
com hábito de oficial daquele ofício, é certo, usando até galões de 2º tenente,
mas que todo molhado do cabelo às solas, lhe ia encharcando o chão no salso
líquido.
Então, acabado o sumário do
Imediato, num tom de voz entre a interrogação, a desilusão, a dúvida e o
desdém, sentenciou com a pergunta, que ficou a pairar:
- Caiu ao mar!?...
E eu… caí em mim.
De facto o compromisso era servir a
bordo, os pés assentes num chão e não em vesperais saídas sem licença, mar
adentro… oficial de marinha não era p’ra cair ao mar!
- O Senhor Comandante determina
alguma coisa?
Saí e fui escorrer-me longe dali.
Obs. Na leitura de revisão que
fiz, notei que ‘bombordo’
é nomeado várias vezes e
‘estibordo’ nenhuma, parecendo
que nada neste outro bordo se
passava. Mas foi assim mesmo.
Mezena
4 de Agosto de 2012